Sabe,
vó, apesar de dizer que jamais me casaria, vivi uma busca romântica
pelo amor. Como fui preterida na escola, sonhava com o dia em que
seria desejada como minhas colegas. Na maioria das vezes, eu era
aquela que fazia a ponte entre o menino e uma amiga minha. “Agita
ela aí pra mim”, era o que eu mais ouvia dos meninos, brancos e
negros.
Eu
era aquela que sempre “segurava vela”. Quando adolescente, a moda
era fazer o baile da vassoura, festas em que se tirava uma pessoa
para dançar ao entregar uma vassoura ao par com quem ela estava
dançando. Nunca ninguém me tirou para dançar nesses bailes. O
máximo que acontecia era eu sobrar com a vassoura. Sabendo disso,
minha mãe organizou alguns bailes na nossa pequena sala com os
amigos do bairro — e eu tinha que dançar sob a vigilância rígida
da dona Erani — e nosso apartamento virou uma espécie de point. A
maioria dos meus colegas adorava minha mãe e gostava de ficar em
casa durante o dia. Dormir, só quem fosse bem próximo.
Eu
dei o meu primeiro beijo quando tinha dezesseis anos. Minha mãe
passou a autorizar que Dara, minha prima e eu fôssemos à praia
sozinhas sem a vigilância dos meus irmãos. Eu era obediente quanto
a ficar ou não com rapazes, mas naquele dia resolvi quebrar a regra.
Estava no mar quando um jovem se aproximou e começou a conversar
comigo. Eu me lembro que ele disse se chamar Júnior e que morava em
um bairro próximo ao meu; era alto, deveria ter uns dezoito anos e
seu hálito cheirava a cerveja. Um rapaz bonito, de cabelos
cacheados, negro claro — para o meu rápido julgamento de quinze
minutos, pareceu legal.
Conversa
vai, conversa vem, decidi que era hora de dar o primeiro beijo, ter
alguma história pra contar. Minha prima, mais velha do que eu,
sempre falava de suas aventuras. Beijei, então, o rapaz. Não sei se
foi minha falta de experiência, mas o beijo simplesmente não
encaixou, foi bem ruim. Não houve delicadeza, o menino enfiou a
língua na minha boca sem saber direito o que estava fazendo e, para
completar, ele tentou abaixar o top do meu biquíni mais de uma vez.
Precisei ser taxativa quanto a não querer aquilo. “Do que você
tem medo?”, ele perguntou. “Não tenho medo de nada, só não
quero”, respondi.
Quando
cansei daquilo, falei que precisava ir embora, inventei alguma
desculpa sobre meus irmãos estarem chegando, saí do mar e me
deparei com irmã e prima boquiabertas. Elas estavam surpresas porque
eu sempre fui a “certinha” e até tentaram colocar a situação
como inapropriada — mas eu sabia das experiências delas e a
história parou por ali. Ao chegar em casa fui acometida por um
sentimento de culpa por estar escondendo algo da minha mãe — mas
eu não podia contar.
Nunca
mais vi aquele rapaz, nem quis manter contato. Meses depois, tive uma
segunda experiência. Um amigo do meu irmão queria “agitar” um
amigo dele pra mim. Aquela foi a primeira vez que isso aconteceu.
Lembro bem da situação, combinamos de nos encontrar no calçadão
da praia do Embaré para passear e eu conhecer o menino. Ele devia
ter a mesma idade que eu, dezesseis anos, e se chamava Allan.
Enquanto conversávamos, andando pelo calçadão, tudo correu bem —
até o garoto avançar pra cima de mim. Enquanto me beijava, ficava
levantando meu vestido, passando a mão no meu corpo. Ao mesmo tempo,
eu tentava desviar das mãos dele e puxava meu vestido pra baixo.
Lembro de ficar naquela situação por alguns minutos até dar a
desculpa de que precisava voltar. Foi muito ruim, não gostei nada.
Os que nos esperavam comemoraram, e Allan pediu para me ver uma
próxima vez. Eu ainda não entendia que aquilo havia sido violento,
só sabia que não tinha gostado. E não queria repetir.
Eu
não sei como você e minha mãe conversaram sobre sexo, vó, se
houve espaço e tempo pra isso. Acredito que não. Vocês duas sempre
diziam que o exemplo ensina, e eu concordo. Os olhares cúmplices de
vocês moldaram muito do que eu sou, mas ter visto a infelicidade da
minha mãe, também. Eu não queria repetir os mesmos erros, queria
ter a chance de fazer minhas próprias escolhas.
Lembro
quando minha mãe me levou à ginecologista pela primeira vez. Eu
tinha dezesseis anos e fomos ao postinho de saúde do bairro.
Enquanto eu aguardava a consulta, a recepcionista me perguntou,
rindo: “Está de quantos meses?”. Dona Erani, claro, ficou brava
com a pergunta da mulher. Na época eu não havia entendido, mas hoje
vejo o quanto a mulher foi preconceituosa. Eu era virgem, ainda não
tinha dado o primeiro beijo, só estava ali porque havia começado a
menstruar só um ano antes e minha mãe queria saber se estava tudo
bem. A médica ficou surpresa quando eu disse que era virgem, mesmo
assim recomendou que eu tomasse pílulas anticoncepcionais — o que
soou como ofensa pra minha mãe, uma vez que ela acreditava que eu e
minha irmã deveríamos casar virgens. Tudo era rodeado de muito
tabu.
Esse
ciclo eu rompi. Educo Thulane para se conhecer, não ter vergonha do
corpo. Consegui tirar o peso do não dito, da vergonha em falar sobre
menstruação. Conversamos sobre sexo, sem tabus. Ao mesmo tempo, a
educo para não acreditar que liberdade sexual é só dizer sim.
Também é sobre dizer não, se respeitar, não acreditar que é
careta porque nunca namorou. São dois extremos muito perigosos que
tentamos evitar. Uma coisa nós ainda temos de você: a força dos
olhares cúmplices.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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