sexta-feira, 10 de março de 2023

A celebridade de Kafka

A expressão exemplar da celebridade de Kafka é o adjetivo kafkiano, que encontrou acolhida em várias línguas e vários dicionários, inclusive o Aurélio.
Mas o uso dessa palavra cria problemas diante da hipertrofia que ela tem sofrido. É comum dizer que “kafkiano” é tudo aquilo que parece estranho, inusual, impenetrável e absurdo — o que descaracterizaria o realismo de base da prosa desse autor. Pois a rigor é kafkiana a situação de impotência do indivíduo moderno que se vê às voltas com um superpoder (Übermacht) que controla sua vida sem que ele ache uma saída para essa versão planetária da alienação — a impossibilidade de moldar seu destino segundo uma vontade livre de constrangimentos, o que transforma todos os esforços que faz num padrão de iniciativas inúteis.
Num mundo de alto a baixo regulado por forças que parecem seguir o curso de uma história cega, cujo traçado ele desconhece, embora pressinta que existe, mas não é capaz de discernir, o que impera é a distância entre o superpoder e o ponto de vista particular do personagem kafkiano. Trocando em miúdos, se for possível, é o ângulo pessoal de inclinação do herói ou anti-herói inventado por Kafka que o impede de ter clareza sobre o que o rodeia ou o que o invade por dentro.
Essa visão, ou falta de visão das coisas, não só é tema da obra, mas também está introjetada nela através de um narrador literariamente qualificado, mas antionisciente (ou insciente) que se torna, assim, a formalização estética do que ocorre no plano da matéria narrada.
De volta à celebridade do escritor tcheco, é útil lembrar que ela está historicamente assentada num ato de rejeição da obra. Pois tendo dedicado a vida à ficção, Kafka, antes de morrer, deu-lhes as costas, exigindo (felizmente sem êxito) que quase tudo o que escrevera fosse destruído. O conjunto do que consentiu em legar à posteridade representa apenas uma sexta parte do que produziu e nós conhecemos. Foi o escrúpulo de consciência de Max Brod, o amigo e testamenteiro que se recusou a executar o ímpeto de destruição do poeta de Praga, que abriu as portas para muitos enigmas cuja solução a bibliografia e o público tentam desvendar. Isso explica, pelo menos em parte, por que cada conto, novela, romance, parábola ou objeto inventado por Kafka é a matriz de uma proliferação de comentários, análises, hipóteses, teses e interpretações que circulam pelo mundo. Para dar um exemplo, escreve-se hoje mais sobre a obra de Kafka do que sobre o Fausto de Goethe. Compreende-se, nesse aspecto, que ele seja um dos autores mais lidos, analisados e discutidos da literatura mundial do após-guerra. Seria possível perguntar ingenuamente por quê. A resposta também pode ser ingênua e direta: por muitos motivos — porque ele escreve bem, porque é inteligente, original etc. Mas igualmente porque várias gerações já reconheceram em seus escritos a imagem mais poderosa e penetrante de nosso mundo vincado pela falsa consciência.
Acontece que quando morreu, em 1924, aos quarenta anos e onze meses, num sanatório em Kierling, perto de Viena, Franz Kafka era conhecido como autor de algumas narrativas muito estranhas, publicadas em sete magros volumes entre 1913 e o ano de sua morte. São eles: O foguista (1913), O veredicto (1913), Na colônia penal (1915), A metamorfose (1915), Um médico rural (1919) e Um artista da fome (1924).
Todas essas novelas foram publicadas também em revistas literárias importantes da época expressionista (tipicamente alemã), editadas na Alemanha e na Boêmia. Para os seus contemporâneos, porém — com honrosas exceções, como Brod, Werfel, Rilke, Musil, Sternheim etc. —, ele era apenas um jovem doutor em direito, judeu de língua alemã, que vivia em Praga.
O curioso é que o escritor sempre esteve preocupado com o destino de seus escritos, que ele chamava de “garranchos”. Esse fato pode ser comprovado pelas cartas que escreveu ao seu editor, Kurt Wolff (que esteve no Brasil como funcionário de um banco), a respeito de Contemplação, A metamorfose, O veredicto e Um médico rural — sem mencionar os lances dramáticos da revisão do último livro, Um artista da fome, já no leito de morte.
Além disso — e a despeito de ser um intelectual tímido e esquivo —, dispôs-se também a fazer leituras de suas narrativas. É o caso de O veredicto, no Palace Hotel, um hotel art nouveau de Praga, e de Na colônia penal, na galeria Goltz de Munique, que causou tumulto entre as senhoras presentes, duas das quais desmaiaram ao ouvir o relato sinistro e sangrento.
Quanto à decisão de Max Brod de não destruir a totalidade dos manuscritos kafkianos — que hoje se encontram em sua maioria na Bodleian Library, de Oxford, nos arquivos de Marbach, na Alemanha, e também nos de Israel e de Nova York —, vale a pena lembrar que não fosse essa desobediência o mundo letrado não conheceria hoje O processo, O castelo, O desaparecido ou América, A construção, Durante a construção da muralha da China etc., nem os Diários e as Cartas. Como disse um crítico francês, imaginem um Kafka sem seu O processo... Para os intérpretes e o público, por sua vez, não existiriam os problemas das edições de um dos maiores romances do século xx, nem o nó górdio de seu sentido ou as dificuldades para traduzi-lo. Isso nos leva à história das publicações da obra de Kafka.

A história das publicações

Os manuscritos não publicados até 1924 eram em geral fragmentos, mas a maior parte deles estava bem estruturada. Max Brod, que os editou em primeiro lugar, foi obrigado a realizar verdadeiras montagens a partir dos cadernos de notas deixados pelo escritor. Até o ano de 1927, Brod publicou O processo, O castelo e O desaparecido, cujo primeiro capítulo, bem-acabado, foi objeto de uma edição isolada em vida do autor: O foguista, ao qual Kafka dedicava estima especial, ao contrário do resto do livro, que ele não conseguiu terminar. Os volumes de contos e novelas — embora essas designações sejam problemáticas em relação a Kafka — apareceram em 1931, seguindo-se os Diários e as Cartas, em 1937.
A publicação da obra completa foi iniciada em 1935, logo interrompida pelo interregno nazista; em 1946 ela apareceu em Nova York (daí certamente a falsa informação de que a primeira tradução brasileira de A metamorfose foi feita a partir do original “norte-americano”) e de 1951 a 1957 na Alemanha pela editora S. Fischer, de Frankfurt. O último volume foi Cartas a Felice, de 1967. É importante salientar que, desde 1982, uma equipe internacional de especialistas tem se dedicado a uma edição crítica da obra.
A difusão da ficção e de outros escritos de Kafka pelo mundo começou cedo. Na França, algumas narrativas isoladas saíram em 1928 (A metamorfose) e em 1930 (O veredicto); O processo foi traduzido em 1933 e O castelo em 1938. Nos países de língua inglesa as traduções começaram a surgir no início dos anos 30, em versões que se tornaram clássicas. Na América do Sul, o primeiro tradutor de Kafka foi Jorge Luis Borges, que verteu A metamorfose para o espanhol em 1938. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial Kafka ficou conhecido no mundo todo, e pelo menos A metamorfose e O processo passaram a ser leituras obrigatórias do cidadão civilizado do nosso tempo. A publicação da obra do autor em tcheco está atualmente em vias de terminar.
A interpretação dos textos kafkianos é de toda espécie — teológica, existencialista, psicanalítica, sociológica, socioestética, estilística, linguística, estrutural e histórica. A bibliografia mais avançada continua sendo o livro de Günther Anders (Kafka: pró e contra) e os ensaios desbravadores de Walter Benjamin e Theodor Adorno. No Brasil é importante destacar a de Otto Maria Carpeaux, a de Sérgio Buarque de Holanda e a de Anatol Rosenfeld. O ensaio de Carpeaux introduziu Kafka no país em 1942, e nele se manifesta a exegese teológico-metafísica reinante na Europa da época. O livro de Sérgio Buarque de Holanda, O espírito e a letra, organizado por Antonio Arnoni Prado, contém ensaios de uma surpreendente atualidade: escritos em 1952, passam em revista as tendências da crítica sobre o autor publicadas no ano anterior na Alemanha, como o livro de Anders, além de comentar as Conversas com Kafka, de Gustav Janouch — sem esquecer que o historiador e literato brasileiro encaixa a ficção “onírica” e “religiosa” de Kafka na sociedade técnica, avaliando criticamente sua congruência com o novo estado do mundo. O belo ensaio de Anatol Rosenfeld, do início dos anos 60, é uma leitura sagaz que chama a atenção para as questões de estilo e técnica narrativa, e talvez seja a melhor visão de conjunto elaborada no Brasil sobre a obra de Kafka. Mesmo sem entrar em detalhes sobre as linhas de interpretação dos escritos kafkianos, nenhuma delas se legitima a não ser quando amarrada aos textos. Adorno adverte que o pressuposto para ler Kafka é a lealdade ao texto, embora no autor tcheco cada palavra pareça dizer: interprete-me, e se recuse a admiti-lo.
O fato, no entanto, é que Kafka não é fantástico, mágico, surrealista ou mestre do absurdo. Basta, para chegar a essa conclusão, consultar o livro de Anders e lembrar que, para um crítico da envergadura de Walter Benjamin, as “deformações” de Kafka são sempre muito precisas.
Seja como for, não é leviandade considerar o escritor um artista difícil, seja no plano literal, estético ou histórico-literário. Até hoje ele não figura na história da literatura tcheca porque escreveu em alemão, e é muito trabalhoso situá-lo sem maiores problemas nas vertentes modernas da literatura de língua alemã. Pois, apesar de ser legítimo contemporâneo do expressionismo — cuja manifestação mais eloquente é o “grito primevo” (na linha do quadro de E. Munch) —, sua linguagem é sóbria e seca e adota o corte sintático da escrita clássica, alheia à afetação, ao lirismo e ao colorido da fala cotidiana. Visto por esse aspecto, Kafka é um escritor de vanguarda que se inspira em Kleist, elege Flaubert como modelo, vai na contracorrente do impressionismo art nouveau vienense e se apropria literariamente do jargão jurídico do império dos Habsburgo. É compreensível, nesse sentido, a existência de um quase consenso de que, para entender Kafka, é necessário renunciar às exegeses totalizantes para estabelecer, primeiro, alguns parâmetros capazes de descrever o seu estilo e, por meio dele, seu modo de compor ficção, tarefa que muitas vezes coincide com os limites da análise filológica e a questão da língua alemã burocrática de Praga e da Boêmia, para entender a partilha artística que fez dela com o famoso “protocolo kafkiano”.
De qualquer forma, não se deve perder de vista que o escritor é considerado um “outsider” plantado no centro da arte moderna.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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