A
expressão exemplar da celebridade de Kafka é o adjetivo kafkiano,
que encontrou acolhida em várias línguas e vários dicionários,
inclusive o Aurélio.
Mas
o uso dessa palavra cria problemas diante da hipertrofia que ela tem
sofrido. É comum dizer que “kafkiano” é tudo aquilo que parece
estranho, inusual, impenetrável e absurdo — o que
descaracterizaria o realismo de base da prosa desse autor. Pois a
rigor é kafkiana a situação de impotência do indivíduo moderno
que se vê às voltas com um superpoder (Übermacht) que
controla sua vida sem que ele ache uma saída para essa versão
planetária da alienação — a impossibilidade de moldar seu
destino segundo uma vontade livre de constrangimentos, o que
transforma todos os esforços que faz num padrão de iniciativas
inúteis.
Num
mundo de alto a baixo regulado por forças que parecem seguir o curso
de uma história cega, cujo traçado ele desconhece, embora pressinta
que existe, mas não é capaz de discernir, o que impera é a
distância entre o superpoder e o ponto de vista particular do
personagem kafkiano. Trocando em miúdos, se for possível, é o
ângulo pessoal de inclinação do herói ou anti-herói inventado
por Kafka que o impede de ter clareza sobre o que o rodeia ou o que o
invade por dentro.
Essa
visão, ou falta de visão das coisas, não só é tema da obra, mas
também está introjetada nela através de um narrador literariamente
qualificado, mas antionisciente (ou insciente) que se torna, assim, a
formalização estética do que ocorre no plano da matéria narrada.
De
volta à celebridade do escritor tcheco, é útil lembrar que
ela está historicamente assentada num ato de rejeição da obra.
Pois tendo dedicado a vida à ficção, Kafka, antes de morrer,
deu-lhes as costas, exigindo (felizmente sem êxito) que quase tudo o
que escrevera fosse destruído. O conjunto do que consentiu em legar
à posteridade representa apenas uma sexta parte do que
produziu e nós conhecemos. Foi o escrúpulo de consciência de Max
Brod, o amigo e testamenteiro que se recusou a executar o ímpeto de
destruição do poeta de Praga, que abriu as portas para muitos
enigmas cuja solução a bibliografia e o público tentam desvendar.
Isso explica, pelo menos em parte, por que cada conto, novela,
romance, parábola ou objeto inventado por Kafka é a matriz de uma
proliferação de comentários, análises, hipóteses, teses e
interpretações que circulam pelo mundo. Para dar um exemplo,
escreve-se hoje mais sobre a obra de Kafka do que sobre o Fausto
de Goethe. Compreende-se, nesse aspecto, que ele seja um dos autores
mais lidos, analisados e discutidos da literatura mundial do
após-guerra. Seria possível perguntar ingenuamente por quê. A
resposta também pode ser ingênua e direta: por muitos motivos —
porque ele escreve bem, porque é inteligente, original etc. Mas
igualmente porque várias gerações já reconheceram em seus
escritos a imagem mais poderosa e penetrante de nosso mundo vincado
pela falsa consciência.
Acontece
que quando morreu, em 1924, aos quarenta anos e onze meses, num
sanatório em Kierling, perto de Viena, Franz Kafka era conhecido
como autor de algumas narrativas muito estranhas, publicadas em sete
magros volumes entre 1913 e o ano de sua morte. São eles: O
foguista (1913), O veredicto (1913), Na colônia penal
(1915), A metamorfose (1915), Um médico rural (1919) e
Um artista da fome (1924).
Todas
essas novelas foram publicadas também em revistas literárias
importantes da época expressionista (tipicamente alemã), editadas
na Alemanha e na Boêmia. Para os seus contemporâneos, porém —
com honrosas exceções, como Brod, Werfel, Rilke, Musil, Sternheim
etc. —, ele era apenas um jovem doutor em direito, judeu de língua
alemã, que vivia em Praga.
O
curioso é que o escritor sempre esteve preocupado com o destino de
seus escritos, que ele chamava de “garranchos”. Esse fato pode
ser comprovado pelas cartas que escreveu ao seu editor, Kurt Wolff
(que esteve no Brasil como funcionário de um banco), a respeito de
Contemplação, A metamorfose, O veredicto e Um médico rural
— sem mencionar os lances dramáticos da revisão do último livro,
Um artista da fome, já no leito de morte.
Além
disso — e a despeito de ser um intelectual tímido e esquivo —,
dispôs-se também a fazer leituras de suas narrativas. É o caso de
O veredicto, no Palace Hotel, um hotel art nouveau de
Praga, e de Na colônia penal, na galeria Goltz de Munique,
que causou tumulto entre as senhoras presentes, duas das quais
desmaiaram ao ouvir o relato sinistro e sangrento.
Quanto
à decisão de Max Brod de não destruir a totalidade dos manuscritos
kafkianos — que hoje se encontram em sua maioria na Bodleian
Library, de Oxford, nos arquivos de Marbach, na Alemanha, e também
nos de Israel e de Nova York —, vale a pena lembrar que não fosse
essa desobediência o mundo letrado não conheceria hoje O processo,
O castelo, O desaparecido ou América, A construção, Durante a
construção da muralha da China etc., nem os Diários e as Cartas.
Como disse um crítico francês, imaginem um Kafka sem seu O
processo... Para os intérpretes e o público, por sua vez, não
existiriam os problemas das edições de um dos maiores romances do
século xx, nem o nó górdio de seu sentido ou as dificuldades para
traduzi-lo. Isso nos leva à história das publicações da obra de
Kafka.
A
história das publicações
Os
manuscritos não publicados até 1924 eram em geral fragmentos, mas a
maior parte deles estava bem estruturada. Max Brod, que os editou em
primeiro lugar, foi obrigado a realizar verdadeiras montagens a
partir dos cadernos de notas deixados pelo escritor. Até o ano de
1927, Brod publicou O processo, O castelo e O desaparecido,
cujo primeiro capítulo, bem-acabado, foi objeto de uma edição
isolada em vida do autor: O foguista, ao qual Kafka dedicava
estima especial, ao contrário do resto do livro, que ele não
conseguiu terminar. Os volumes de contos e novelas — embora essas
designações sejam problemáticas em relação a Kafka —
apareceram em 1931, seguindo-se os Diários e as Cartas,
em 1937.
A
publicação da obra completa foi iniciada em 1935, logo interrompida
pelo interregno nazista; em 1946 ela apareceu em Nova York (daí
certamente a falsa informação de que a primeira tradução
brasileira de A metamorfose foi feita a partir do original
“norte-americano”) e de 1951 a 1957 na Alemanha pela editora S.
Fischer, de Frankfurt. O último volume foi Cartas a Felice,
de 1967. É importante salientar que, desde 1982, uma equipe
internacional de especialistas tem se dedicado a uma edição crítica
da obra.
A
difusão da ficção e de outros escritos de Kafka pelo mundo começou
cedo. Na França, algumas narrativas isoladas saíram em 1928 (A
metamorfose) e em 1930 (O veredicto); O processo
foi traduzido em 1933 e O castelo em 1938. Nos países de
língua inglesa as traduções começaram a surgir no início dos
anos 30, em versões que se tornaram clássicas. Na América do Sul,
o primeiro tradutor de Kafka foi Jorge Luis Borges, que verteu A
metamorfose para o espanhol em 1938. A partir do fim da Segunda
Guerra Mundial Kafka ficou conhecido no mundo todo, e pelo menos A
metamorfose e O processo passaram a ser leituras
obrigatórias do cidadão civilizado do nosso tempo. A publicação
da obra do autor em tcheco está atualmente em vias de terminar.
A
interpretação dos textos kafkianos é de toda espécie —
teológica, existencialista, psicanalítica, sociológica,
socioestética, estilística, linguística, estrutural e histórica.
A bibliografia mais avançada continua sendo o livro de Günther
Anders (Kafka: pró e contra) e os ensaios desbravadores de
Walter Benjamin e Theodor Adorno. No Brasil é importante destacar a
de Otto Maria Carpeaux, a de Sérgio Buarque de Holanda e a de Anatol
Rosenfeld. O ensaio de Carpeaux introduziu Kafka no país em 1942, e
nele se manifesta a exegese teológico-metafísica reinante na Europa
da época. O livro de Sérgio Buarque de Holanda, O espírito e a
letra, organizado por Antonio Arnoni Prado, contém ensaios de
uma surpreendente atualidade: escritos em 1952, passam em revista as
tendências da crítica sobre o autor publicadas no ano anterior na
Alemanha, como o livro de Anders, além de comentar as Conversas
com Kafka, de Gustav Janouch — sem esquecer que o historiador e
literato brasileiro encaixa a ficção “onírica” e “religiosa”
de Kafka na sociedade técnica, avaliando criticamente sua
congruência com o novo estado do mundo. O belo ensaio de Anatol
Rosenfeld, do início dos anos 60, é uma leitura sagaz que chama a
atenção para as questões de estilo e técnica narrativa, e talvez
seja a melhor visão de conjunto elaborada no Brasil sobre a obra de
Kafka. Mesmo sem entrar em detalhes sobre as linhas de interpretação
dos escritos kafkianos, nenhuma delas se legitima a não ser quando
amarrada aos textos. Adorno adverte que o pressuposto para ler Kafka
é a lealdade ao texto, embora no autor tcheco cada palavra pareça
dizer: interprete-me, e se recuse a admiti-lo.
O
fato, no entanto, é que Kafka não é fantástico, mágico,
surrealista ou mestre do absurdo. Basta, para chegar a essa
conclusão, consultar o livro de Anders e lembrar que, para um
crítico da envergadura de Walter Benjamin, as “deformações” de
Kafka são sempre muito precisas.
Seja
como for, não é leviandade considerar o escritor um artista
difícil, seja no plano literal, estético ou
histórico-literário. Até hoje ele não figura na história da
literatura tcheca porque escreveu em alemão, e é muito trabalhoso
situá-lo sem maiores problemas nas vertentes modernas da literatura
de língua alemã. Pois, apesar de ser legítimo contemporâneo do
expressionismo — cuja manifestação mais eloquente é o “grito
primevo” (na linha do quadro de E. Munch) —, sua linguagem é
sóbria e seca e adota o corte sintático da escrita clássica,
alheia à afetação, ao lirismo e ao colorido da fala cotidiana.
Visto por esse aspecto, Kafka é um escritor de vanguarda que se
inspira em Kleist, elege Flaubert como modelo, vai na contracorrente
do impressionismo art nouveau vienense e se apropria
literariamente do jargão jurídico do império dos Habsburgo. É
compreensível, nesse sentido, a existência de um quase consenso de
que, para entender Kafka, é necessário renunciar às exegeses
totalizantes para estabelecer, primeiro, alguns parâmetros capazes
de descrever o seu estilo e, por meio dele, seu modo de compor
ficção, tarefa que muitas vezes coincide com os limites da análise
filológica e a questão da língua alemã burocrática de Praga e da
Boêmia, para entender a partilha artística que fez dela com o
famoso “protocolo kafkiano”.
De
qualquer forma, não se deve perder de vista que o escritor é
considerado um “outsider” plantado no centro da arte
moderna.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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