sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Quando não fui para Buenos Aires

Paula resolveu fazer sua despedida de solteira em Buenos Aires, durante o feriado da Páscoa. Ficaríamos, nove mulheres, num hotel-butique e teríamos quatro dias para encher a cara, dançar, comer, fazer compras e relaxar no spa do hotel.
Boa parcela das pessoas saudáveis do planeta leria o parágrafo acima como “momentão alegria”, sucedido de “vou com tudo”. Mas eu já estava sem dormir fazia dez dias, temendo o tamanho da dor e da angústia que o périplo me traria.
Primeiro: eu não encho a cara (devido a medo de vômito, de perder o controle e à quase nula curiosidade por “ficar doidona” — seria apenas mais do mesmo). Segundo: tenho medo de estar num grupo que vomita e perde o controle e “fica doidão”. Terceiro: grupo. A palavra encerra em si o pior que a existência pode produzir: acúmulo humano. Ter a arrogância de pescar no mundo “os meus” e sorrir com a debilidade dos apaziguados pela segurança do pertencimento. Pressentia minhas fezes agendadas e protocoladas e despachadas pelo grupo. “Não, Tati, cocô onze da manhã ferra com nove pessoas. Tente duas da madrugada porque o grupo decidiu que esse é o horário livre. Não seja egoísta!” Tirar de um ser humano seu direito a cagar quando bem entender é cem vezes pior que qualquer solidão.
Paula chamou também suas amigas do “ballet”, garotas que eu conhecia de um frio e entediado “oi, como é que tá?” (os olhares clamando tímidos, por cima de sorrisos embotados: “por favor, não responda à minha pergunta pro forma e desinteressada, não vou com a sua cara”) das festinhas na casa dela. Qual a chance de alguém que estava lendo Kierkegaard, O conceito de angústia, ser feliz com “as amigas do ballet da Paula”? Não que eu não goste de balé (eu falo balé, a Paula fala ballet), mas tratava-se de ex-alunas de um balé perdido na infância que se converteram em esposinhas doidas para discutir as dicas quentes de como fazer o mais prático enxoval em Miami.
Quatro dias com essas pessoas. Encontrando no elevador do hotel, no café da manhã, vendo essas pessoas levarem garfos à boca, darem goles em líquidos, gastarem solados. Decorando o cheiro dessas pessoas, decorando como é o nariz cheio de cravos dessas pessoas depois de uma base vencida. Vendo essas estranhas, no mais amplo sentido da palavra, dizerem: “já venho”, “ai, tô acabada”, “nossa, que legal” e me acostumando a elas. E pegando amor por elas, me agarrando a elas porque seriam “tudo o que eu tinha” em quatro dias que durariam uma vida. Amando essas pessoas que eu jamais amaria num contexto seguro, apenas porque fico como uma criança em carne viva quando estou longe de casa.
Quatro dias fazendo parte do teatro “vamos brindar de forma muito intensa nessa foto, com nossas tacinhas da alegria, e vamos também chupar a bochecha pra dentro da boca, pra parecer que temos a ossatura facial das modelos”. Comecei a temer a morte.
Não vou mais, desculpa.” Eu tomava banho, lavava louça, regava plantas, dobrava folhas de alface, pegava trânsito e fazia bolinhas de meia pensando essa frase maravilhosa. A frase mais maravilhosa da língua portuguesa. Eu sussurrava baixinho, embaixo das cobertas, só para mim: “não vou mais”. E depois, espreguiçando o corpo embaixo das cobertas, dizia, agora um pouco mais alto: “desculpa”. Me sentia tão humana, tão passível de perdão. “Não vou mais” magoaria minha amiga. Mas “desculpa” (eu lançaria a ela um olhar tridimensionalmente ensimesmado, misto de “eu sou assim, fazer o quê?” e “não queria ser assim, percebe?” e, “sendo assim, sofro mais que você, que só tem que me perdoar por eu ser assim”) talvez a sensibilizasse.
Não tive como falar com Paula, ela estava superocupada com o casamento. Ocupada em emagrecer, ocupada em provar doces, ocupada em escolher entre o convite rococó vintage e o convite moderno romântico. Sério que algumas mulheres param meses para isso? Tenho horror a festas de casamento.
Tenho horror a mulher superocupada com o casamento. Horror a mulher que está ficando louca com a festa do casamento. Sério? Temos aí vírus ebola, Estado Islâmico, volta da inflação, amigos que contam sobre “um câncer silencioso”, a certeza absoluta de que todos morrerão e que nós somos todos… e a Paula estava louca com a festa do casamento.
Casar é chato, por favor, não festeje. Mas, se festejar, tudo bem, só não dê trabalho aos outros. Não faça listinha de casamento, não faça listinha de coisas de cozinha antes da listinha de casamento. Não faça listinha de lingerie entre a listinha das coisas de cozinha e a listinha oficial. Não case longe da casa das pessoas. Não obrigue seu amigo a pegar avião, reservar hotel. Já não bastam as inúmeras listas de presentes e os inúmeros encontrinhos entre amigos antes do casamento? Você está casando, mas isso não lhe dá o direito de ser insuportável. E o mais importante: por favor, não tire foto romântica P&B na Paulista. Não obrigue aquele bando de convidados com fome a ver, “antes de poder atacar os doces”, suas fotinhos quando criança magrela em Santos. Não deixe tocar um hino de futebol na entrada do noivo, no dia do enlace. Não chame um padre e, sobretudo, não deixe um padrinho “falar à vontade” no lugar de um padre. Os padrinhos não são padres, mas também são bem chatos.
A Paula não podia falar comigo porque estava supertensa, medicada de tão tensa, com pressão alta de tão tensa, porque estava escolhendo músicas com o DJ. E eu não conseguia dizer a ela: “desculpa, mas não vou na despedida de solteira. Chega de me dar trabalho, o.k.? O que você quer de mim? Que amor é esse que você me pede? Que eu ature suas amigas do ‘ballet’ num avião, num hotel, num almoço com tango? Cospe catarro na minha cara, mas não me peça isso. Já basta aturar você ‘superocupada, há mais de seis meses, com um casamento’. Não é com um doutorado, não é com uma reforma para otimizar a casa, não é com um trabalho. É só porque você resolveu fazer uma festa e há um ano só fala dela. É só porque chegou o século XXI e você fez a desentendida”.
Tentei ligar, mandar mensagem, e-mail, encontrar pessoalmente. Tentei de todas as formas avisar que não iria, mas a Paula estava ficando louca com a empresa “das flores”. Que tipo de criatura fica louca de quase infartar com uma empresa de flores? Percebi que a única maneira de dizer a Paula: “desculpa, não vou, eu sou assim, desculpa” era ir até o fim e, daí, não ir.
Fiz a pior mala de toda a minha vida. Esqueci desodorante, chinelo e carregador do celular. Esqueci o passaporte. Esqueci que tinha lido uma matéria dizendo: “só com identidade não embarca”, tem que levar o passaporte mesmo sendo tão pertinho. Fui, até chegar minha vez no check-in. E daí a atendente da Gol proferiu a santa sentença: “sem passaporte não embarca”. Promovi um escândalo. “Como não!? Então o quê? Pelo amor de Deus. Eu preciso ir. É uma viagem muito importante pra mim!” E começou a juntar gente. E as amigas do “ballet” começaram a me acalmar. Até que madame noiva apareceu. Só assim para chamar a atenção da superestrela de Hollywood. Puta da vida que teve que desligar o celular: estava discutindo o orçamento com o “bartender malabarista”. Expliquei que eu não poderia embarcar, pois não trouxera o passaporte. Ela respondeu: “tudo bem, vai buscar”. Coloquei “casa” no Waze e mostrei o tamanho do caos em que nossa cidade vivia fazia anos. Ela não devia saber, porque fazia anos que estava ocupada pensando no casamento. De Guarulhos até “casa” estava dando mais de uma hora, fora a volta. Ela respondeu: “tudo bem, a gente contrata o serviço de um motoboy”. Antes que ela prosseguisse, tratando minha impossibilidade de viajar como mais um dos inúmeros problemas contornáveis relacionados ao seu casamento, expliquei, encerrando a discussão, que não tinha ninguém em casa. Pois ela deu continuidade ao martírio, concluindo que minha mãe devia ter uma cópia da minha chave. E foi ligando para a casa da minha mãe. Expliquei que minha mãe estava internada no hospital havia dias, com crises fortes de labirintite. Mas, no meio da minha explicação, minha mãe atendeu o telefone. Foi quando segurei os bracinhos agora finos de Paula e pude experimentar um prazer único e maravilhoso, que me deixaria para todo o sempre viciada: “eu não quero ir. Eu não quero ir. EU NÃO QUERO IR”.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

Nenhum comentário:

Postar um comentário