Paula
resolveu fazer sua despedida de solteira em Buenos Aires, durante o
feriado da Páscoa. Ficaríamos, nove mulheres, num hotel-butique e
teríamos quatro dias para encher a cara, dançar, comer, fazer
compras e relaxar no spa do hotel.
Boa
parcela das pessoas saudáveis do planeta leria o parágrafo acima
como “momentão alegria”, sucedido de “vou com tudo”. Mas eu
já estava sem dormir fazia dez dias, temendo o tamanho da dor e da
angústia que o périplo me traria.
Primeiro:
eu não encho a cara (devido a medo de vômito, de perder o controle
e à quase nula curiosidade por “ficar doidona” — seria apenas
mais do mesmo). Segundo: tenho medo de estar num grupo que vomita e
perde o controle e “fica doidão”. Terceiro: grupo. A palavra
encerra em si o pior que a existência pode produzir: acúmulo
humano. Ter a arrogância de pescar no mundo “os meus” e sorrir
com a debilidade dos apaziguados pela segurança do pertencimento.
Pressentia minhas fezes agendadas e protocoladas e despachadas pelo
grupo. “Não, Tati, cocô onze da manhã ferra com nove pessoas.
Tente duas da madrugada porque o grupo decidiu que esse é o horário
livre. Não seja egoísta!” Tirar de um ser humano seu direito a
cagar quando bem entender é cem vezes pior que qualquer solidão.
Paula
chamou também suas amigas do “ballet”, garotas que eu conhecia
de um frio e entediado “oi, como é que tá?” (os olhares
clamando tímidos, por cima de sorrisos embotados: “por favor, não
responda à minha pergunta pro forma e desinteressada, não vou com a
sua cara”) das festinhas na casa dela. Qual a chance de alguém que
estava lendo Kierkegaard, O conceito de angústia, ser feliz
com “as amigas do ballet da Paula”? Não que eu não goste de
balé (eu falo balé, a Paula fala ballet), mas
tratava-se de ex-alunas de um balé perdido na infância que se
converteram em esposinhas doidas para discutir as dicas quentes de
como fazer o mais prático enxoval em Miami.
Quatro
dias com essas pessoas. Encontrando no elevador do hotel, no café da
manhã, vendo essas pessoas levarem garfos à boca, darem goles em
líquidos, gastarem solados. Decorando o cheiro dessas pessoas,
decorando como é o nariz cheio de cravos dessas pessoas depois de
uma base vencida. Vendo essas estranhas, no mais amplo sentido da
palavra, dizerem: “já venho”, “ai, tô acabada”, “nossa,
que legal” e me acostumando a elas. E pegando amor por elas, me
agarrando a elas porque seriam “tudo o que eu tinha” em quatro
dias que durariam uma vida. Amando essas pessoas que eu jamais amaria
num contexto seguro, apenas porque fico como uma criança em carne
viva quando estou longe de casa.
Quatro
dias fazendo parte do teatro “vamos brindar de forma muito intensa
nessa foto, com nossas tacinhas da alegria, e vamos também chupar a
bochecha pra dentro da boca, pra parecer que temos a ossatura facial
das modelos”. Comecei a temer a morte.
“Não
vou mais, desculpa.” Eu tomava banho, lavava louça, regava
plantas, dobrava folhas de alface, pegava trânsito e fazia bolinhas
de meia pensando essa frase maravilhosa. A frase mais maravilhosa da
língua portuguesa. Eu sussurrava baixinho, embaixo das cobertas, só
para mim: “não vou mais”. E depois, espreguiçando o corpo
embaixo das cobertas, dizia, agora um pouco mais alto: “desculpa”.
Me sentia tão humana, tão passível de perdão. “Não vou mais”
magoaria minha amiga. Mas “desculpa” (eu lançaria a ela um olhar
tridimensionalmente ensimesmado, misto de “eu sou assim, fazer o
quê?” e “não queria ser assim, percebe?” e, “sendo assim,
sofro mais que você, que só tem que me perdoar por eu ser assim”)
talvez a sensibilizasse.
Não
tive como falar com Paula, ela estava superocupada com o casamento.
Ocupada em emagrecer, ocupada em provar doces, ocupada em escolher
entre o convite rococó vintage e o convite moderno romântico. Sério
que algumas mulheres param meses para isso? Tenho horror a festas de
casamento.
Tenho
horror a mulher superocupada com o casamento. Horror a mulher que
está ficando louca com a festa do casamento. Sério? Temos aí vírus
ebola, Estado Islâmico, volta da inflação, amigos que contam sobre
“um câncer silencioso”, a certeza absoluta de que todos morrerão
e que nós somos todos… e a Paula estava louca com a festa
do casamento.
Casar
é chato, por favor, não festeje. Mas, se festejar, tudo bem, só
não dê trabalho aos outros. Não faça listinha de casamento, não
faça listinha de coisas de cozinha antes da listinha de casamento.
Não faça listinha de lingerie entre a listinha das coisas de
cozinha e a listinha oficial. Não case longe da casa das pessoas.
Não obrigue seu amigo a pegar avião, reservar hotel. Já não
bastam as inúmeras listas de presentes e os inúmeros encontrinhos
entre amigos antes do casamento? Você está casando, mas isso não
lhe dá o direito de ser insuportável. E o mais importante: por
favor, não tire foto romântica P&B na Paulista. Não obrigue
aquele bando de convidados com fome a ver, “antes de poder atacar
os doces”, suas fotinhos quando criança magrela em Santos. Não
deixe tocar um hino de futebol na entrada do noivo, no dia do enlace.
Não chame um padre e, sobretudo, não deixe um padrinho “falar à
vontade” no lugar de um padre. Os padrinhos não são padres, mas
também são bem chatos.
A
Paula não podia falar comigo porque estava supertensa, medicada de
tão tensa, com pressão alta de tão tensa, porque estava escolhendo
músicas com o DJ. E eu não conseguia dizer a ela: “desculpa, mas
não vou na despedida de solteira. Chega de me dar trabalho, o.k.? O
que você quer de mim? Que amor é esse que você me pede? Que eu
ature suas amigas do ‘ballet’ num avião, num hotel, num almoço
com tango? Cospe catarro na minha cara, mas não me peça isso. Já
basta aturar você ‘superocupada, há mais de seis meses, com um
casamento’. Não é com um doutorado, não é com uma reforma para
otimizar a casa, não é com um trabalho. É só porque você
resolveu fazer uma festa e há um ano só fala dela. É só porque
chegou o século XXI e você fez a desentendida”.
Tentei
ligar, mandar mensagem, e-mail, encontrar pessoalmente. Tentei de
todas as formas avisar que não iria, mas a Paula estava ficando
louca com a empresa “das flores”. Que tipo de criatura fica
louca de quase infartar com uma empresa de flores? Percebi que a
única maneira de dizer a Paula: “desculpa, não vou, eu sou assim,
desculpa” era ir até o fim e, daí, não ir.
Fiz
a pior mala de toda a minha vida. Esqueci desodorante, chinelo e
carregador do celular. Esqueci o passaporte. Esqueci que tinha lido
uma matéria dizendo: “só com identidade não embarca”, tem que
levar o passaporte mesmo sendo tão pertinho. Fui, até chegar minha
vez no check-in. E daí a atendente da Gol proferiu a santa sentença:
“sem passaporte não embarca”. Promovi um escândalo. “Como
não!? Então o quê? Pelo amor de Deus. Eu preciso ir. É uma
viagem muito importante pra mim!” E começou a juntar gente. E as
amigas do “ballet” começaram a me acalmar. Até que madame noiva
apareceu. Só assim para chamar a atenção da superestrela de
Hollywood. Puta da vida que teve que desligar o celular: estava
discutindo o orçamento com o “bartender malabarista”. Expliquei
que eu não poderia embarcar, pois não trouxera o passaporte. Ela
respondeu: “tudo bem, vai buscar”. Coloquei “casa” no Waze e
mostrei o tamanho do caos em que nossa cidade vivia fazia anos. Ela
não devia saber, porque fazia anos que estava ocupada pensando no
casamento. De Guarulhos até “casa” estava dando mais de uma
hora, fora a volta. Ela respondeu: “tudo bem, a gente contrata o
serviço de um motoboy”. Antes que ela prosseguisse, tratando minha
impossibilidade de viajar como mais um dos inúmeros problemas
contornáveis relacionados ao seu casamento, expliquei, encerrando a
discussão, que não tinha ninguém em casa. Pois ela deu
continuidade ao martírio, concluindo que minha mãe devia ter uma
cópia da minha chave. E foi ligando para a casa da minha mãe.
Expliquei que minha mãe estava internada no hospital havia dias, com
crises fortes de labirintite. Mas, no meio da minha explicação,
minha mãe atendeu o telefone. Foi quando segurei os bracinhos agora
finos de Paula e pude experimentar um prazer único e maravilhoso,
que me deixaria para todo o sempre viciada: “eu não quero ir. Eu
não quero ir. EU NÃO QUERO IR”.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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