O
ano, propriamente, se compõe de onze meses. Dezembro não conta: é
só para desejar que os restantes sejam propícios. Parece que o
sistema está longe da perfeição; chegaríamos a ela num calendário
que abrangesse onze meses de bons augúrios e um de execução deles.
Como está, os trinta e um dias não chegam para imaginarmos tudo de
ótimo em benefício de todo mundo. Fica sempre uma fração larga de
mundo a que não atingem os nossos desejos fraternos. China, Costa do
Ouro, Oceania… Mas não é preciso ir tão longe. Mesmo perto de
nós, mesmo dentro de nós, as lembranças costumam esquivar-se à
apresentação espontânea, e até à convocação formal. Julgamos
ter no coração um canteiro de afetos; contudo, uma grande área,
nele, permanece inculta e cheia de ervas, não direi daninhas, mas
ervas. O que admira não é a quantidade de pessoas a quem dedicamos
um pensamento amigo, mas a multidão, o número realmente infinito,
de outras em cuja existência nem sequer reparamos.
Foi
para suavizar as lacunas da memória sentimental que se inventaram
mensagens de boas-festas, e entre elas esses cartõezinhos onde há a
vinheta de um pássaro, saltitando sobre versos, que começam a
aparecer-nos por baixo da porta:
Este
canarinho que canta
com
tanta melodia
tantas
saudades revela
perante
este dia.
Desejo-lhe
felicidades.
Aqui
lhe venho saudar.
Se
de mim tiverem queixa,
pois
queiram me desculpar.
Numa
terceira quadra, a assinatura: “Do vosso fiel lixeiro”. Este ano,
passou a ser “vosso efetivo lixeiro”, porque até nesse ofício a
concorrência se torna feroz.
E
lá também “o vosso humilde leiteiro”, realmente tão humilde
que o atual, de nossa rua, chegado há pouco da Paraíba, nem sequer
sabia da existência desses cartões, e quando alguém lhe falou em
festas, perguntou, espantado: “Festas? Que é festas? Vou conversar
com o meu colega”. Os carteiros costumam exprimir-se em prosa, mas
o entregador da tinturaria e o varredor de rua utilizam a nobre arte
do verso, que abre picada até o sentimento burguês.
Contudo,
seria desejável que as saudações de Natal oferecessem maior
variedade, ou pelo menos exprimissem anseios mais concretos,
definindo a situação particular de cada classe ou componente dela,
e não apenas um vago ideal de felicidade. Penso que cada homem tem
direito de pedir determinada coisa a seu semelhante.
É
também o parecer de João Brandão, poeta “nas horas vagas porém”,
que aqui ao lado propõe estas novas mensagens natalinas:
Do
carteiro:
Votos
mentais, apenas,
formule
ao mundo inteiro.
Não
multiplique as penas
do
seu velho carteiro.
Do
gari:
Pertence-lhe
o apartamento?
E
joga cascas na rua?
A
vassourinha (um momento)
dou-lhe
de festas. É sua.
Do
lixeiro:
Posso,
ilustre morador,
pedir-lhe,
neste Natal,
que
o seu lixo, por favor,
cheire
um pouco menos mal?
Do
leiteiro:
Meio
litro, nesta semana,
ofereça,
caro banqueiro,
do
leite da bondade humana
a
este seu humilde leiteiro.
Aí
ficam as sugestões. Boas-festas a todos. E agora, amigos, meto a
viola no saco, dizendo como frei Vicente do Salvador, ao terminar sua
História do Brasil: “E darei fim a esta história, porque sou de
sessenta e três anos, e já é tempo de tratar só da minha vida, e
não das alheias”.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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