sábado, 24 de dezembro de 2022

Musa natalina

O ano, propriamente, se compõe de onze meses. Dezembro não conta: é só para desejar que os restantes sejam propícios. Parece que o sistema está longe da perfeição; chegaríamos a ela num calendário que abrangesse onze meses de bons augúrios e um de execução deles. Como está, os trinta e um dias não chegam para imaginarmos tudo de ótimo em benefício de todo mundo. Fica sempre uma fração larga de mundo a que não atingem os nossos desejos fraternos. China, Costa do Ouro, Oceania… Mas não é preciso ir tão longe. Mesmo perto de nós, mesmo dentro de nós, as lembranças costumam esquivar-se à apresentação espontânea, e até à convocação formal. Julgamos ter no coração um canteiro de afetos; contudo, uma grande área, nele, permanece inculta e cheia de ervas, não direi daninhas, mas ervas. O que admira não é a quantidade de pessoas a quem dedicamos um pensamento amigo, mas a multidão, o número realmente infinito, de outras em cuja existência nem sequer reparamos.
Foi para suavizar as lacunas da memória sentimental que se inventaram mensagens de boas-festas, e entre elas esses cartõezinhos onde há a vinheta de um pássaro, saltitando sobre versos, que começam a aparecer-nos por baixo da porta:

Este canarinho que canta
com tanta melodia
tantas saudades revela
perante este dia.

Desejo-lhe felicidades.
Aqui lhe venho saudar.
Se de mim tiverem queixa,
pois queiram me desculpar.

Numa terceira quadra, a assinatura: “Do vosso fiel lixeiro”. Este ano, passou a ser “vosso efetivo lixeiro”, porque até nesse ofício a concorrência se torna feroz.
E lá também “o vosso humilde leiteiro”, realmente tão humilde que o atual, de nossa rua, chegado há pouco da Paraíba, nem sequer sabia da existência desses cartões, e quando alguém lhe falou em festas, perguntou, espantado: “Festas? Que é festas? Vou conversar com o meu colega”. Os carteiros costumam exprimir-se em prosa, mas o entregador da tinturaria e o varredor de rua utilizam a nobre arte do verso, que abre picada até o sentimento burguês.
Contudo, seria desejável que as saudações de Natal oferecessem maior variedade, ou pelo menos exprimissem anseios mais concretos, definindo a situação particular de cada classe ou componente dela, e não apenas um vago ideal de felicidade. Penso que cada homem tem direito de pedir determinada coisa a seu semelhante.
É também o parecer de João Brandão, poeta “nas horas vagas porém”, que aqui ao lado propõe estas novas mensagens natalinas:

Do carteiro:

Votos mentais, apenas,
formule ao mundo inteiro.
Não multiplique as penas
do seu velho carteiro.

Do gari:

Pertence-lhe o apartamento?
E joga cascas na rua?
A vassourinha (um momento)
dou-lhe de festas. É sua.

Do lixeiro:

Posso, ilustre morador,
pedir-lhe, neste Natal,
que o seu lixo, por favor,
cheire um pouco menos mal?

Do leiteiro:

Meio litro, nesta semana,
ofereça, caro banqueiro,
do leite da bondade humana
a este seu humilde leiteiro.

Aí ficam as sugestões. Boas-festas a todos. E agora, amigos, meto a viola no saco, dizendo como frei Vicente do Salvador, ao terminar sua História do Brasil: “E darei fim a esta história, porque sou de sessenta e três anos, e já é tempo de tratar só da minha vida, e não das alheias”.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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