terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Deus e os Deuses

 


Assim esteve Deus, para mim: primeiro, ausente; depois, desaparecido.

Fulano Malta

Não é que esteja errada, estou é mal corrigida. A Avó insiste. Desde que saímos de casa que vai teclando o mesmo: é domingo e ela não quer ser tratada como inválida. Na realidade, apesar do volume e da idade, Dulcineusa vai seguindo ao meu lado, marcha acertada no meu lento andamento.
Em velho, é o que mais tememos: a queda! Não é a queda no escuro da cova. Mas o cair no próprio passo, como se o osso já obedecesse à convocatória do chão.
É por isso que ando assim, a soletrar a perna. Veste de preto. Não é apenas agora por motivo de luto. Vestuário escuro é o que ela sempre enverga quando sai à rua. Desde há anos que o universo dela se divide, simples: a casa e a igreja. Sempre que lhe dizem que vai sair, ela se arranja para a missa.
Hoje acordou insistindo que era domingo. Concedi o dia de mão beijada. Que importância tinha? Dulcineusa tinha sido educada em igreja. O que a fazia crer não era o que o padre falava. Mas porque ele falava cantando. Alguém mais fala cantando? Algum branco o fazia? O Padre Nunes era o único. Cantava, e quando cantava, no recinto da igreja, em coro e com eco, aquilo era tudo verdade. E isso lhe dava remédio.
A cruz, por exemplo, sabe o que me parece? Uma árvore, um canhoeiro sagrado onde nós plantamos os mortos.
A palavra que usara? Plantar. Diz-se assim na língua de Luar-do-Chão. Não é enterrar. É plantar o defunto. Porque o morto é coisa viva. E o túmulo do chefe de família como é chamado? De yindlhu, casa. Exactamente a mesma palavra que designa a moradia dos vivos. Talvez por isso não seja grande a diferença entre o Avô Mariano estar agora todo ou parcialmente falecido.
Passamos pelo administrador da Ilha. A Avó pára, suspende-se sobre uma perna como se fosse ajoelhar. Embaraçado, o administrador diz: – Dona Dulcineusa, eu já disse para não fazer isso! – Sim, senhor administrador. Por favor, não me bata, eu não tenho idade para palmatória! O administrador sacode a cabeça. Ele não acredita que se trate de demência. Pensa que se trata de chacota com intenção política bem determinada: Dulcineusa faz de conta que o confunde com o administrador colonial. Apressadamente o governante atravessa a rua, antes que se juntem os curiosos.
A Avó não deixa nunca de falar, convencendo-me de que não há, na nossa família, quem detenha mais juízo. O que ela quer dizer é que devo apoiá-la na sua luta maior: que o moribundo seja abençoado pela religião católica. E que o padre tome conta dos restantes preceitos e cerimónias. Afinal, o encomendado caixão ainda está lá, em casa, à espera do corpo e da derradeira bendição.
É por isso que vamos tomar palavra com o Padre Nunes, que há mais de trinta anos presta serviço na Ilha. Não posso imaginar Luar-do-Chão sem a sua serena presença, como se ele fosse já essência do nosso lugar.
Quando entro na igreja entendo melhor a insistência da Avó. Em contraste com a decadência do bairro, a igreja está pintada, mantida, e até um pequeno jardim envaidece a cercania. É o mais antigo dos edifícios, um templo contra o tempo. Num mundo de dúvidas, onde tudo se desmorona, a igreja surge como a memória mais certa e permanente.
Padre Nunes saúda-me com seu modo fraterno, suas falas mansas. Os “esses” se arredondam em “xis” e o idioma se torna mais doce. Aquele sossego no interior da igreja sempre produziu em mim o mesmo instantâneo efeito: uma enorme sonolência. Nunca pude ceder a essa vontade de me deitar e ali dormir dias a fio. Não será agora que cumprirei esse desejo. O padre me conduz à sacristia enquanto a Avó vai rezando junto ao altar.
Os estudos, Mariano? É o primeiro a querer saber do que faço na cidade. Foi ele quem me baptizou, ele me ajudou nas primeiras leituras. Nunes é como que um tio para além da família, da raça e da crença.
E como está o teu pai? Pergunta-me antes de eu responder à sua primeira questão. Ele sabe que meu pai há muito que perdeu fé no deus dos católicos. Para ele era claro: Fulano tinha a sua fé exclusiva, fizera uma igreja dentro de si mesmo.
Teu pai lutou para que fôssemos todos ricos, partilhando essa grande riqueza que é, simplesmente, não haver pobreza.
Tinham tido sérias desavenças. No entanto, ninguém para ele merecia maior respeito em toda a Ilha. Na altura em que meu pai decidiu juntar-se à guerrilha, o Padre Nunes foi chamado pela família a pedido de Dulcineusa. O português pediu a meu pai que reconsiderasse. Mas fazia-o a contragosto. É isso que agora me confessa: na altura, lhe apeteceu estar no lugar de Fulano Malta. Uma secreta inveja o roía por dentro. Queria ser ele a partir, a romper com tudo, em trânsito para um outro ser. Não era que concordasse com os ideais de Fulano. Estava era cansado. A injustiça não podia ser mando divino. E a sua instituição se acomodara tanto, que parecia ajoelhar-se mais perante os poderosos que perante Deus.
Imagino quanto teu pai sofre a ver tudo o que está acontecer.
Mas a miséria em Luar-do-Chão era, para o sacerdote, somente uma antevisão do que iria acontecer com as nações ricas. A violência dos atentados nas grandes capitais? Para ele era apenas um presságio. Não era só gente inocente que morria. Era o colapso de todo um modo de viver. Pena era não haver uma crença para onde fugir, como fizera Fulano Malta há vinte anos.
Mas não tem esperança, padre? – Se disser que não tenho esperança como é que posso manter crença em Deus? Baixa os olhos como se fechasse a conversa. Levanta-se e mostra-me o caminho para irmos ter com Dulcineusa. Um cheiro estranho me invade o peito. Um eflúvio de bicho, tenho quase receio em reconhecer.
Não vos cheira a animal? A Avó não permite a resposta. Interpela o Padre Nunes: – Posso pedir para extremar a unção em Dito Mariano? – Isso eu já fiz, Dona Dulcineusa. Não se recorda? – É melhor passar os óleos mais uma vez. Uma segunda demão. O senhor padre não conhece o meu marido. Aquele não é de olear facilmente.
O padre sorri para mim, indulgente. A Avó aponta uma vela sobre o parapeito: – Esta acendi agora para o meu defunto marido.
Mas, afinal, confirma-se que ele já morreu? Ficava como prevenção, responde a Avó. Para acordar o anjo da guarda. O padre sorri. Sabia Dulcineusa o que seu marido sempre dizia? Pois ele passava a vida repetindo: – O meu anjo, felizmente, nunca me guardou. Nunes sabia que as rezas do nosso patriarca nunca foram voltadas para nenhum deus. Ou talvez tivesse outros deuses só dele. Essas divindades, de qualquer modo, deveriam ser bonitas. Que não o abandonavam nesse período em que ele se suspendia entre a vida mortal e a vida imortal.
Nos retiramos quando, de supetão, dou de caras com um burro. Salto, de susto, ante o inesperado da visão. O que fazia uma alimária no recinto sagrado das almas? Estava explicada a origem do cheiro que ainda há pouco senti. O padre desafia-me: – Dou-lhe um prémio se o conseguir tirar daqui.
Nem faço tenção. O burro me contempla com seus olhos de água empoçada. Havia tal quietude naquele olhar que fiquei em dúvida se a igreja seria, afinal, sua natural moradia.
A tua avó te explica, depois, os motivos da presença deste burro.
À porta da igreja nos despedimos de Nunes. Ele me saúda, à maneira do lugar, volte ando a mão em redor do polegar.
Vou de férias, saio amanhã – anuncia. E lendo o meu rosto, adianta: – Também temos férias.
Entendo que esteja cansado.
O que mais o fatigava não eram os afazeres religiosos. Era o desrespeito pela vida, pelos homens. Como fora esse caso em que um barco naufragara e morreram dezenas de pessoas.
O quanto sofremos nós nesse dia, lembra,Dulcineusa? – Nem fale, senhor padre.
E ainda está preocupada que eu não encaminhe a alma do velho Mariano? Não esqueça desses, tantos, que não tiveram enterro.
É assim a ganância, padre: uns possuem, outros são possuídos pelo dinheiro.
Dulcineusa já me havia falado desse barco que afundara, a poucos minutos de ter saído do cais, sobrecarregado de pessoas, madeiras e mercadorias. O padre tinha escrito para o jornal a denunciar os responsáveis. A partir desse dia, ele passou a receber ameaças. Acusavam-no de ser branco, de ser racista, de não se ater a suas obrigações religiosas. Isso provocara nele um cansaço de que nunca se iria restabelecer. Sua voz é frágil quando me indaga: – E tu, Ma ria no, vais ficar por aqui? Que remédio, me apeteceu responder. Pode-se dar férias ao parentesco? Em silêncio, olho em volta.
Cercado pelo sossego da pequena igreja me apetecia, naquele momento, deixar de ser filho, neto, sobrinho. Deixar de ser gente. Suspender o coração como quem pendura um casaco velho. Fazer como o velho Mariano. Ou ficar por ali, suspenso no sossego da igrejinha, fazendo companhia ao burrico. Dulcineusa me apressa: – Vamos, que o seu Avô está lá sozinho.
Lhe ofereço o ombro para ela se apoiar enquanto vai vencendo os degraus. Por nós passa o tractor carregado de troncos. O motorista acena simpatias, engordando um sorriso no rosto já largo. A Avó está parada, sacode uma sandália. Recuo para a ajudar. A sua fala desfocada me surpreende: – Muito obrigado, senhor padre.
Avó, sou eu, seu neto.
Bate com a sandália para fazer cair a areia. Tem um só pé no chão, vai bamboleando amparada no meu corpo.
Mas você não quer ser padre? – Nunca pensei nisso, Avó.
É pena, você é tão bom escutador.
As ruas estão cheias de crianças que voltam da escola. Algumas me olham intensamente. Reconhecem em mim um estranho. E é o que sinto. Como se a Ilha escapasse de mim, canoa desamarrada na corrente do rio. Não fosse a companhia da Avó, o que eu faria naquele momento era perder-me por atalhos, perder-me tanto até estranhar por completo o lugar.
De novo me chegam os sinais de decadência, como se cada ruína fosse uma ferida dentro de mim. Custa a ver o tempo falecer assim. Levassem o passado para longe, como um cadáver. E deixassem-no lá, longe das vistas, esfarelado em poeira. Mas não.
A nossa ilha está imitando o Avô Mariano, morrendo junto a nós, decompondo-se perante o nosso desarmado assombro. Ao alcance de uma lágrima ou de um voo de mosca.
Posso lhe pedir uma coisa, meu neto? – Claro que pode, Avó.
Quando dissermos as boas-noites, lá em casa, posso tratá-lo de “senhor padre”? É que ela tinha uma confissão para ser ajoelhada em troca de clemência. Eu seria o primeiro a escutar esse abrir de peito. Afinal, nem esperou que chegássemos a casa porque logo ali, de adiantado, ela desabafou: – Fui eu que matei o seu Avô! Sorrio, mas sem vontade. O sorriso é minha resposta por não saber como reagir. Dulcineusa não dá tempo, prosseguindo: – Eu sempre o quis matar, senhor padre. Sempre. Esse homem fez-me tanto mal, com essas amantes dele. E agora, sabe o que aconteceu? – Diga, diga sem medo.
Agora, que está morto, só quero que fique vivo outra vez.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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