Beto
fingia que estava lendo, mas observava Milí vestir a roupa, colocar
os enfeites brilhantes no rosto, pintar a boca, limpar o piercing do
lábio inferior com um cotonete. A bolsa, onde ela guardou uma
chupeta, estava incrustada com miçangas coloridas.
Que
cara é essa? Está chateado porque vou sozinha? Você não quer ir,
prefere ficar agarrado nesse livro.
Para
que você vai levar a chupeta?
Curtição,
charme.
Sem
essa.
Milí
tirou a chupeta da bolsa e pôs no colo de Beto.
Está
satisfeito? Não sei a que horas vou voltar.
Leva
essa bobagem. Sei que você pode arranjar outra lá.
Milí
sentou ao lado de Beto, no sofá.
Beto,
temos que acertar a nossa vida.
Eu
disse para levar a chupeta. Não quero que você quebre os dentes.
Você
sabe que eu não fico rilhando os dentes, são poucos os que fazem
isso, depende do temperamento, eu acho. Beto, temos que acertar a
nossa vida.
Como?
Eu também pego uma chupeta e vou lá ranger os dentes com a turma?
Beto,
deixa de ser chato. Raramente vou a uma festa. Gosto de festas, você
sabia que eu era assim.
A
gente pode mudar.
Você
mudou depois que passou a frequentar aquele lugar aonde as pessoas
vão se confessar e dizer que ficaram limpas. Nunca pensei que você
fizesse uma coisa dessas, tão pouco científico. Virou um velho de
trinta anos. Não quero virar uma velha de vinte e dois anos.
Vou
chegar aos cinquenta. Você vai chegar aos quarenta?
Beto,
eu só quero viver com entusiasmo. E nós dois vamos chegar aos
oitenta, juntos. Antes, quero me divertir um pouco.
Tomando
E, rangendo os dentes, dançando com o corpo em fogo e surda
de tanto ouvir música barulhenta.
Estou
levando aqueles abafadores de ruído que dão no avião. Beto, por
favor, você deve procurar me entender como eu procuro te entender.
Não quero passar a noite lendo, sentada num sofá, como uma múmia.
Eu gosto de você, mas precisamos acertar a nossa vida. Eu não me
incomodo de você ficar lendo e correndo em volta da lagoa. Mas você
deve me deixar fazer o que gosto. Você fazia as suas loucuras,
piores que as minhas, agora não faz mais, só toma guaraná e
vitaminas, eu estou reclamando?
Eu
era um jovem imbecil.
Tenho
só vinte e dois anos. Talvez eu também fique cansada aos vinte e
oito, como aconteceu com você, ou antes, então a gente engrena
normal. Mas agora, agora eu quero me divertir um pouco, não se
preocupe, na festa só uso E.
Mas
tem muita porcaria vendida como E que tem um excesso de PMA ou DPMA.
Em pequenas doses...
Já
sei que vou ouvir uma lição...
Deixa
eu terminar, por favor. Em pequenas doses criam uma euforia leve,
alucinações agradáveis, dão energia para dançar a noite inteira,
alguns usuários sentem inspirações poéticas, êxtases místicos...
É
isso que acontece comigo...
Mas
uma dose maior pode elevar demais a temperatura, a pressão, os
batimentos cardíacos e a pessoa entra em convulsão, em coma e
morre.
Ih,
cara, você está didaticamente sinistro, hoje.
Cuidado
com as chinesas, também conhecidas como technos.
Lá
não tem nada disso. É uma festa de família.
E
também com as mitsubishi, umas vermelhas.
Lá
são todas brancas.
Essas
com PMA são brancas.
Eu
não abuso.
Um
dia você teve que ir direto da festa para o hospital, lembra?
Foi
uma vez só. Eu tinha tomado muito pouca água naquela noite. E você
foi um anjo, indo me pegar no Miguel Couto.
Não
mistura E com baseado.
Você
me disse isso quando eu usei E pela primeira vez, lembra? Ou
devo dizer quando nós usamos pela primeira vez?
Foi
a maior estupidez da minha vida. Você tinha só dezesseis anos.
E
você só tinha vinte e quatro, era um garoto.
Um
adulto, que agiu como um sórdido corruptor de menores.
Não
faz essa cara, até parece que cometeu um crime horrível. Você
abriu o mundo para mim, mudou minha vida para melhor. E eu estou bem,
estou estudando para o vestibular, não estou? Vou passar, vou ser
uma profissional competente, igual a você. Tudo isso graças ao meu
namorado querido, que me estimula sempre. Fica tranquilo.
Você
está muito magra.
Você
gosta de mulher magra.
Promete
que vai fazer aqueles exames.
Eu
estou bem. Não sou nenhuma viciada.
Vou
marcar o médico. Ele é amigo meu, fomos colegas na faculdade. É o
Jorge, acho que já te falei dele.
Está
bem, está bem, marca o médico. Mas diga a ele que eu não quero que
faça a minha cabeça. Já tenho a cabeça feita. Eu estou bonita?
Parece
uma árvore de natal, com todo esse glitter no rosto.
Eu
te amo. Só não te dou um beijo na boca porque já me pintei.
Desculpe ter te chamado de múmia. Você é o homem mais lindo do
mundo. Na volta cuido de você. Eu te acordo, quando chegar. Tchau.
Beto
voltou a pegar o livro. Mas não conseguia ler, apenas olhava as
páginas. Ele era o culpado, tinha que fazer alguma coisa. Casar com
Milí, ter um filho? Um filho causa profundas modificações numa
mulher. Mas ele estaria mesmo disposto a fazer esse sacrifício?
Ouviu barulho de chuva e foi à janela, olhar a rua. As luzes dos
postes brilhavam no asfalto molhado. De manhã ia correr em volta da
lagoa, com chuva seria até melhor.
Rubem Fonseca, in Pequenas criaturas
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