terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A verdade acerca do Zito | 2




Xoxombo, você lembra aquele dia do Santo António?
Ená, Zito! Não posso lhe esquecer!
Foi num Carnaval. Todos os meninos do musseque fabricaram suas máscaras de papelão e arrumavam a fuba uns nos outros. Satisfeitos, fugindo, gritando ou pelejando, quando um sacrista punha mesmo nos olhos, que não valia. Toneta estava na porta da cubata, nesse tempo ainda não estava amigada no sô Amaral, e os meninos pararam suas brincadeiras para lhe olharem, vestida de Carmen Miranda, como ela gostava sair nas farras.
Pópilas, Zito! Você lembra a cara do Zeca Bunéu, quando lhe viu? Até parecia maluco, a rir!
Nunca mais esqueci, palavra!
A Toneta tinha chamado os meninos que andavam brincar. O Zeca Bunéu e o Xoxombo foram logo mas o Biquinho correu na zuna, procurar o Zito, a Carmindinha e Tunica falando a neta de vavó Xica estava chamar para mostrar um feitiço. Sá Domingas ainda resmungou qualquer coisa dessa sem-vergonha, mas os meninos correram para olhar o feitiço da rapariga. Era um Santo António de madeira, vestido com um pano castanho amarrado com barbante na cintura. Tinha os olhos roxos, pintados com lápis de tinta e cuspo. Toneta pegou o boneco, muito séria, todos sentaram na esteira, quando ela falou:
Toda a gente fecha os olhos e pensa uma coisa, para pedir no Santo António. Mas não fala alto!
Obedecendo, cada qual pediu, dentro da cabeça, seu desejo para Santo António.
Pronto! Podem olhar já...
Ajoelhada na frente de todos, Toneta segurava o Santo António pela corda pequena na cintura e punha uma cara muito séria mas, sem querer, Zito olhou-lhe nos olhos e viu a malandrice lá no fundo deles. O boneco tinha um fio pendurado debaixo dos pés e Toneta olhando as caras curiosas e sérias, os olhos parados no Santo António, escolheu:
Você! Já pensou sua prenda?... Então puxa neste fio, vai sair!...
Era o Zito. Os outros meninos olharam o amigo cheio de sorte, era mesmo o primeiro a levar a prenda e começaram falar uns nos outros.
Xê!... — calou a Toneta. — Com barulho não vai sair!
Um bocado atrapalhado, Zito estendeu a mão para o fio, agarrou-lhe e parou. Olhou os outros meninos, viu a malandrice no fundo dos olhos grandes da Toneta e começou a rir:
Pópilas! Pedi mesmo uma bicicleta! — e puxou com depressa.
O que sucedeu custa contar. Se as gargalhadas do malandro do Zeca Bunéu se juntaram logo nas de Toneta, o ar sério e zangado de Carmindinha era irmão da cara banzada do Zito, aldrabado. E só as lágrimas e o choro de Tunica é que faziam pena. Solto, o Santo António caiu na esteira, mostrando ainda o grosso pau com cabeça encarnada que tinha saído debaixo do pano castanho, quando Zito puxou o fio.
Sukuama! Essa Toneta tinha cada partida!...
Não posso esquecer esse dia, Xoxombo!
Dessa conversa do Santo António é que saiu tudo. Zito precisava alguém para falar e, mesmo miúdo como era Xoxombo, foi-lhe contando a confusão daquela manhã e o medo, agora de tarde, o coração pequenininho no peito, vergonha de ir espreitar Toneta. Se ela lhe chamasse no quarto, como ia fazer então?
Xoxombo era miúdo ainda mas tinha irmãs e lhe aconselhou:
Não sei, Zito. Mas se fosse você, arranjava mesmo uma prenda e ia lhe levar nessa hora...
Era um meio de tarde abafado. Nos dias de grande chuva a areia molhada respira a água toda com o sol amarelo que aparece, depois, no céu azul sem nuvens. E mesmo com o fresco da água da chuva, toda a gente começava sentir um calor sem vento, de fazer noite quente, noite de sunguilar até tarde e dormir a janela aberta. No ar limpo voavam as andorinhas e os ferrões, os pardais cantavam nos zincos. Capins verdes lavados, muxixes e imbondeiros riam para o sol, as raízes cheias de água. Caminhando para baixo, esquivando para sá Domingas não dar conta, descendo nas corridas a Rua da Pedreira, é que Xoxombo viu mesmo o Zito era aquele menino mais-velho que todos falavam. As horas estavam a passar, cinco e meia quase, e o menino ia depressa com Xoxombo cheio de medo ao lado dele, olhando para todos os lados da Ingombota, podia ser as amigas da mãe iam-lhe contar. Pópilas, para quê falar as coisas no Zito? Quer fazer tudo logo-logo. E como é que ele arranjou assim aquela nota de vinte angolares?
Com esses pensamentos a saltar na cabeça e o coração cheio de medo, Xoxombo nem deu conta estavam chegar na Baixa. As ruas, as casas, eram bonitas, não eram cubatas de zinco, não, e as estradas, cheias de carros e pessoas, estavam tapadas pelo alcatrão, a areia dos musseques não tinha ali. Zito andava nessas ruas sem medo, não esquivava os carros, parecia era mesmo o dono desses sítios, nada que lhe admirava. Mas o medo no coração de Xoxombo era grande e não podia esquecer sá Domingas, nessa hora, cadavez na porta da cubata, chamando como toda a gente já conhecia no musseque:
Xoxombo, Xoxomboééé!
O menino não aparecia, sá Domingas ia para dentro arranjar o pau de funji para a hora de ele voltar, se calhar já tinha adiantado na mamã Sessá, já falavam com suas vizinhas a fuga dos meninos. E os vinte angolares, como é Zito arranjou então? Essas conversas sempre na cabeça não deixavam-lhe olhar bem a alegria do amigo, desembrulhando e embrulhando os pequenos brincos de lata, de flores amarelas. Só os pés é que andavam depressa agora, a subir a Ingombota, no meio da gente já estava voltar no serviço. Cadavez nessa hora, andavam-lhe procurar por todo o musseque, toda a tarde sem lhe verem. Zito assobiava feliz, punha o embrulho no bolso, tirava o pacotinho, desembrulhava, mirava as florzinhas amarelas, falava no Xoxombo:
Pópilas, Xoxombo! P’ra quê você é assim miúdo ainda?...
Xoxombo não respondia. Ele gostava ser mesmo é monandengue, miudinho, para entrar na casa sem lhe verem, deitar na esteira e quando mamã começava gritar, sete horas ou oito horas, aparecer, sair no quarto, fingindo, falar toda a tarde estava lá dentro a dormir, cansado da brincadeira da manhã de chuva. Mas como ia entrar assim, sem lhe verem?
Mas nosso musseque estava quieto e calado. Só o barulho das galinhas, com seus pintos, os pássaros voando ou pousando nos zincos e nos paus, vozes tapadas das pessoas dentro das cubatas, enquanto o sol, vermelho como a areia, borrava o céu cheio de azul da manhã, descendo para o mar, é que lhes recebeu.
Xoxombo, obrigado. Você é um amigo. Agora vou embora!...
Já? E se me perguntarem?
Tu é que sabes! Mas não fala esta conversa, a prenda. Toma! No sábado, se a gente pode fugir, te levo-te na matiné do Nacional...
Xoxombo ficou com a moeda na mão a ver o Zito avançar com seu passo de onça para o tambarineiro lá em cima. Ia se esconder até na hora que costumava, já com as sombras, ir espreitar a Toneta, esquivado atrás do quintal de vavó Xica. Guardando a moeda no calção, Xoxombo saltou as aduelas, atravessou devagar, subiu na mulemba e depois, sem vergonha e sem medo já, começou assobiar. Sá Domingas não estava, tinha saído na casa de nga Xica e Carmindinha apareceu debaixo do pau, para perguntar:
Xoxombo, viu a Tunica?...
O menino continuou assobiar como se fosse mais velho, sem ligar na irmã lá em baixo e, depois, descarado e satisfeito, respondeu-lhe:
Escondi-lhe no mataco!
Carmindinha insultou-lhe e foi embora.

José Luandino Vieira, in Nosso Mussuque

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