— Xoxombo,
você lembra aquele dia do Santo António?
— Ená,
Zito! Não posso lhe esquecer!
Foi
num Carnaval. Todos os meninos do musseque fabricaram suas máscaras
de papelão e arrumavam a fuba uns nos outros. Satisfeitos, fugindo,
gritando ou pelejando, quando um sacrista punha mesmo nos olhos, que
não valia. Toneta estava na porta da cubata, nesse tempo ainda não
estava amigada no sô Amaral, e os meninos pararam suas brincadeiras
para lhe olharem, vestida de Carmen Miranda, como ela gostava sair
nas farras.
— Pópilas,
Zito! Você lembra a cara do Zeca Bunéu, quando lhe viu? Até
parecia maluco, a rir!
— Nunca
mais esqueci, palavra!
A
Toneta tinha chamado os meninos que andavam brincar. O Zeca Bunéu e
o Xoxombo foram logo mas o Biquinho correu na zuna, procurar o Zito,
a Carmindinha e Tunica falando a neta de vavó Xica estava chamar
para mostrar um feitiço. Sá Domingas ainda resmungou qualquer coisa
dessa sem-vergonha, mas os meninos correram para olhar o feitiço da
rapariga. Era um Santo António de madeira, vestido com um pano
castanho amarrado com barbante na cintura. Tinha os olhos roxos,
pintados com lápis de tinta e cuspo. Toneta pegou o boneco, muito
séria, todos sentaram na esteira, quando ela falou:
— Toda
a gente fecha os olhos e pensa uma coisa, para pedir no Santo
António. Mas não fala alto!
Obedecendo,
cada qual pediu, dentro da cabeça, seu desejo para Santo António.
— Pronto!
Podem olhar já...
Ajoelhada
na frente de todos, Toneta segurava o Santo António pela corda
pequena na cintura e punha uma cara muito séria mas, sem querer,
Zito olhou-lhe nos olhos e viu a malandrice lá no fundo deles. O
boneco tinha um fio pendurado debaixo dos pés e Toneta olhando as
caras curiosas e sérias, os olhos parados no Santo António,
escolheu:
— Você!
Já pensou sua prenda?... Então puxa neste fio, vai sair!...
Era
o Zito. Os outros meninos olharam o amigo cheio de sorte, era mesmo o
primeiro a levar a prenda e começaram falar uns nos outros.
— Xê!...
— calou a Toneta. — Com barulho não vai sair!
Um
bocado atrapalhado, Zito estendeu a mão para o fio, agarrou-lhe e
parou. Olhou os outros meninos, viu a malandrice no fundo dos olhos
grandes da Toneta e começou a rir:
— Pópilas!
Pedi mesmo uma bicicleta! — e puxou com depressa.
O
que sucedeu custa contar. Se as gargalhadas do malandro do Zeca Bunéu
se juntaram logo nas de Toneta, o ar sério e zangado de Carmindinha
era irmão da cara banzada do Zito, aldrabado. E só as lágrimas e o
choro de Tunica é que faziam pena. Solto, o Santo António caiu na
esteira, mostrando ainda o grosso pau com cabeça encarnada que tinha
saído debaixo do pano castanho, quando Zito puxou o fio.
— Sukuama!
Essa Toneta tinha cada partida!...
— Não
posso esquecer esse dia, Xoxombo!
Dessa
conversa do Santo António é que saiu tudo. Zito precisava alguém
para falar e, mesmo miúdo como era Xoxombo, foi-lhe contando a
confusão daquela manhã e o medo, agora de tarde, o coração
pequenininho no peito, vergonha de ir espreitar Toneta. Se ela lhe
chamasse no quarto, como ia fazer então?
Xoxombo
era miúdo ainda mas tinha irmãs e lhe aconselhou:
— Não
sei, Zito. Mas se fosse você, arranjava mesmo uma prenda e ia lhe
levar nessa hora...
Era
um meio de tarde abafado. Nos dias de grande chuva a areia molhada
respira a água toda com o sol amarelo que aparece, depois, no céu
azul sem nuvens. E mesmo com o fresco da água da chuva, toda a gente
começava sentir um calor sem vento, de fazer noite quente, noite de
sunguilar até tarde e dormir a janela aberta. No ar limpo voavam as
andorinhas e os ferrões, os pardais cantavam nos zincos. Capins
verdes lavados, muxixes e imbondeiros riam para o sol, as raízes
cheias de água. Caminhando para baixo, esquivando para sá Domingas
não dar conta, descendo nas corridas a Rua da Pedreira, é que
Xoxombo viu mesmo o Zito era aquele menino mais-velho que todos
falavam. As horas estavam a passar, cinco e meia quase, e o menino ia
depressa com Xoxombo cheio de medo ao lado dele, olhando para todos
os lados da Ingombota, podia ser as amigas da mãe iam-lhe contar.
Pópilas, para quê falar as coisas no Zito? Quer fazer tudo
logo-logo. E como é que ele arranjou assim aquela nota de vinte
angolares?
Com
esses pensamentos a saltar na cabeça e o coração cheio de medo,
Xoxombo nem deu conta estavam chegar na Baixa. As ruas, as casas,
eram bonitas, não eram cubatas de zinco, não, e as estradas, cheias
de carros e pessoas, estavam tapadas pelo alcatrão, a areia dos
musseques não tinha ali. Zito andava nessas ruas sem medo, não
esquivava os carros, parecia era mesmo o dono desses sítios, nada
que lhe admirava. Mas o medo no coração de Xoxombo era grande e não
podia esquecer sá Domingas, nessa hora, cadavez na porta da cubata,
chamando como toda a gente já conhecia no musseque:
— Xoxombo,
Xoxomboééé!
O
menino não aparecia, sá Domingas ia para dentro arranjar o pau de
funji para a hora de ele voltar, se calhar já tinha adiantado na
mamã Sessá, já falavam com suas vizinhas a fuga dos meninos. E os
vinte angolares, como é Zito arranjou então? Essas conversas sempre
na cabeça não deixavam-lhe olhar bem a alegria do amigo,
desembrulhando e embrulhando os pequenos brincos de lata, de flores
amarelas. Só os pés é que andavam depressa agora, a subir a
Ingombota, no meio da gente já estava voltar no serviço. Cadavez
nessa hora, andavam-lhe procurar por todo o musseque, toda a tarde
sem lhe verem. Zito assobiava feliz, punha o embrulho no bolso,
tirava o pacotinho, desembrulhava, mirava as florzinhas amarelas,
falava no Xoxombo:
— Pópilas,
Xoxombo! P’ra quê você é assim miúdo ainda?...
Xoxombo
não respondia. Ele gostava ser mesmo é monandengue, miudinho, para
entrar na casa sem lhe verem, deitar na esteira e quando mamã
começava gritar, sete horas ou oito horas, aparecer, sair no quarto,
fingindo, falar toda a tarde estava lá dentro a dormir, cansado da
brincadeira da manhã de chuva. Mas como ia entrar assim, sem lhe
verem?
Mas
nosso musseque estava quieto e calado. Só o barulho das galinhas,
com seus pintos, os pássaros voando ou pousando nos zincos e nos
paus, vozes tapadas das pessoas dentro das cubatas, enquanto o sol,
vermelho como a areia, borrava o céu cheio de azul da manhã,
descendo para o mar, é que lhes recebeu.
— Xoxombo,
obrigado. Você é um amigo. Agora vou embora!...
— Já?
E se me perguntarem?
— Tu
é que sabes! Mas não fala esta conversa, a prenda. Toma! No sábado,
se a gente pode fugir, te levo-te na matiné do Nacional...
Xoxombo
ficou com a moeda na mão a ver o Zito avançar com seu passo de onça
para o tambarineiro lá em cima. Ia se esconder até na hora que
costumava, já com as sombras, ir espreitar a Toneta, esquivado atrás
do quintal de vavó Xica. Guardando a moeda no calção, Xoxombo
saltou as aduelas, atravessou devagar, subiu na mulemba e depois, sem
vergonha e sem medo já, começou assobiar. Sá Domingas não estava,
tinha saído na casa de nga Xica e Carmindinha apareceu debaixo do
pau, para perguntar:
— Xoxombo,
viu a Tunica?...
O
menino continuou assobiar como se fosse mais velho, sem ligar na irmã
lá em baixo e, depois, descarado e satisfeito, respondeu-lhe:
— Escondi-lhe
no mataco!
Carmindinha
insultou-lhe e foi embora.
José Luandino Vieira, in Nosso Mussuque
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