terça-feira, 23 de agosto de 2022

Entra, sai e acaba

O problema de uma chegada às onze horas da manhã e um recital de poesia às oito da noite é que isso às vezes reduz a gente a uma coisa que eles levam para o palco apenas para ser olhada, gozada, abatida, que é o que eles querem – não esclarecimento, mas entretenimento.
O professor Kragmatz me recebeu no aeroporto, conheci seus dois cachorros no carro, conheci Pulholtz (que lia minha obra há anos) e dois jovens estudantes – um especialista em caratê e outro com uma perna quebrada – na casa de Howard. (Howard era o professor que mandara o convite para que eu fizesse o recital.)
Fiquei sentado macambúzio e contrito, tomando cerveja, e aí quase todo mundo, menos Howard, teve de ir para uma aula. Portas bateram, os cachorros latiram e partiram, e as nuvens se fecharam e eu, Howard, a mulher dele e um jovem estudante ficamos sentados por ali. Jacqueline, a esposa de Howard, jogava xadrez com o estudante.
Consegui um novo estoque – disse Howard.
Abriu a mão com um punhado de pílulas.
Não. É meu estômago – eu disse. – Fora de forma ultimamente.
Às oito horas, eu subi. “Está bêbado, está bêbado” – ouvia as vozes na plateia. Levava minha vodca com suco de laranja. Dei uma golada de abertura para provocar a repugnância deles. Li durante uma hora.
Os aplausos foram bastante bons. Um jovem se aproximou, trêmulo. – Sr. Chinaski, preciso lhe dizer o seguinte: o senhor é um belo homem! – Apertei a mão dele. – Obrigado, garoto, continue comprando meus livros. – Alguns tinham meus livros e eu fiz desenhos neles. Acabou. Eu tinha vendido o rabo.
A festa depois do recital foi o mesmo de sempre, professores e alunos, suaves e ruidosos. O professor Kragmatz me pegou num canto e começou a fazer perguntas, enquanto as fanzocas deslizavam em torno. Não, eu dizia a ele, não, bem, sim, partes de T. S. Eliot eram boas. Éramos duros demais com T. S. Eliot. Pound, sim, bem, estávamos descobrindo que Pound não era exatamente o que pensávamos. Não, eu não me lembrava de nenhum grande poeta americano contemporâneo, me desculpasse. Poesia concreta? Bem, sim, poesia concreta era exatamente igual a qualquer outra coisa concreta. Quê, Céline? Um velho maluco de testículos murchos. Só um livro bom, o primeiro. Como? Sim, claro, já basta. Quer dizer, você não escreveu nem mesmo um, escreveu? Por que empombo com Creeley? Não empombo mais. Creeley construiu um conjunto de obra, isso é mais que os críticos dele fizeram. Sim, bebo, todo mundo não bebe? Como diabos se vai conseguir de outro jeito? Mulheres? Ah, sim, mulheres, ah, sim, é claro. Não se pode escrever sobre hidrantes e tinteiros vazios. Sim, eu sei do carrinho de mão vermelho na chuva. Escuta, Kragmatz, não quero que você me monopolize inteiramente. É melhor eu circular por aí...
Fiquei e dormi na parte debaixo de um beliche, debaixo do garoto que era especialista em caratê. Acordei-o por volta das seis da manhã coçando minhas hemorroidas. Subiu um fedor, e a cachorra que tinha dormido comigo a noite toda começou a fuçar. Virei de costas e fui dormir de novo.

Quando acordei, todo mundo tinha ido embora, menos Howie. Eu me levantei, tomei um banho, me vesti e saí para vê-lo. Ele estava muito doente.
Meu deus, você é resistente – ele disse. – Tem um corpo de vinte anos.
Não tomo drogas, estimulantes, muito pouca coisa da pesada a noite passada... só cerveja e erva. Dei sorte – eu disse.
Sugeri uns ovos moles. Howard os pôs no fogo. Começou a escurecer. Parecia meia-noite. Jacqueline telefonou e disse que vinha chegando um tornado do norte. Começou a cair granizo. Comemos nossos ovos.
Aí chegou o poeta do recital da noite seguinte com sua namorada e Kragmatz. Howard correu para o quintal e vomitou os ovos. O novo poeta, Blanding Edwards, se pôs a falar. Era bem intencionado. Falou de Ginsberg, Corso, Kerouac. Depois Blanding Edwards e sua namorada, Betty (que também escrevia poesia), puseram-se a falar um com outro num francês rápido.
Foi ficando mais escuro, relampejava, mais granizo, e o vento, o vento era terrível. Apareceu a cerveja, Kragmatz lembrou a Edwards que tivesse cuidado, tinha de recitar naquela noite. Howard montou em sua bicicleta e saiu pedalando na tempestade para ir ensinar inglês para os calouros na universidade. Jacqueline chegou.
Cadê Howie?
Levou seu duas rodas para dentro do tornado – eu disse.
Ele está bem?
Parecia um garoto de dezessete anos quando saiu. Tomou duas aspirinas.
O resto da tarde foi esperar e evitar papo literário. Peguei uma carona para o aeroporto. Tinha meu cheque de 500 dólares e minha mochila de poemas. Disse a eles que não precisavam saltar e que um dia eu lhes mandaria um postal.
Entrei na sala de espera e ouvi um cara dizer ao outro:
Olha só aquele cara!
Todos os nativos usavam o mesmo corte de cabelo, as mesmas fivelas nos sapatos de saltos altos, casacos leves, ternos de uma só fileira de botões metálicos, camisas listradas, gravatas que corriam toda a escala do dourado ao verde. Até os rostos eram iguais: narizes, orelhas, bocas e expressões iguais. Lagos rasos cobertos de gelo fino. Nosso avião estava atrasado. Fiquei atrás de uma máquina de café, tomei dois cafés pretos e comi umas bolachas. Depois saí e fiquei parado na chuva.
Partimos com uma hora e meia de atraso. O avião sacudiu e corcoveou. Não havia revista New Yorker. Pedi um drinque à aeromoça. Ela disse que não tinha gelo. O piloto nos disse que haveria um atraso no pouso em Chicago. Não conseguiam liberação. Ele era um homem de palavra. Chegamos a Chicago e lá estava o aeroporto, e nós ficamos rodando e rodando, e eu disse:
Bem, acho que não há nada a fazer. Pedi um terceiro drinque. Os outros começaram a fazer o mesmo. Sobretudo depois que os dois motores tossiram ao mesmo tempo. Eles recomeçaram e alguém riu. Bebemos, e bebemos, e bebemos. Quando já estávamos mais para lá do que para cá, disseram-nos que íamos pousar.
O’Hare de novo. O gelo fino partiu-se. As pessoas corriam de um lado para outro, fazendo perguntas óbvias e recebendo respostas óbvias. Eu vi que meu voo não tinha hora de partida marcada. Eram oito e meia da noite. Liguei para Ann. Ela disse que ia ficar ligando para o aeroporto internacional de Los Angeles para saber a hora da chegada. Perguntou-me como tinha sido o recital. Respondi que era muito difícil enrolar um público de poesia universitário. Só enrolara metade deles. – Ótimo – ela disse. – Nunca confie num homem que usa macacão – eu disse a ela.
Fiquei parado olhando as pernas de uma japonesa por quinze minutos. Depois encontrei um bar. Tinha um negro lá vestido com uma roupa de couro vermelho e gola de pele. Estavam gozando da cara dele, rindo como se ele fosse um besouro se arrastando sobre o balcão. Faziam isso muito bem. Tinham tido séculos de prática. O negro tentava ficar frio, mas estava todo empertigado.
Quando fui checar o voo de novo, um terço do aeroporto estava bêbado. Os penteados desfaziam-se. Um homem andava de costas, muito bêbado, tentando cair com a nuca no chão e fraturar o crânio. Todos acendemos cigarros e esperamos, olhando, na esperança de que ele desse uma boa porrada na cabeça. Eu me perguntava qual de nós ia pegar a carteira dele. Vi-o cair, e então a horda saltou para limpá-lo. Ele estava longe demais para me ser de alguma utilidade. Voltei ao bar. O negro sumira. Dois caras à minha esquerda discutiam. Um deles se virou para mim.
Que é que você acha da guerra?
Não tem nada de errado com a guerra – respondi.
Ah é, é?
É. Quando você entra num táxi, isso é guerra. Quando você compra um pão, é guerra. Quando você compra uma puta, é guerra. Às vezes eu preciso de pão, táxi e puta.
Ei, caras – disse o homem –, tem aqui um cara que gosta de guerra.
Outro cara se aproximou, vindo da ponta do balcão. Vestia-se como os outros.
Você gosta de guerra?
Não tem nada errado com ela; é uma extensão natural de nossa sociedade.
Quantos anos você esteve lá?
Nenhum.
De onde é?
Los Angeles.
Bem, eu perdi meu melhor amigo com uma mina de terra. BAM! E ele se foi.
Não fosse pela graça de Deus, podia ter sido você.
Não faça piada.
Andei bebendo. Tem fogo?
Ele pôs o isqueiro na ponta de meu cigarro com óbvia repugnância. Depois voltou para a ponta do balcão.
Partimos no voo das 7h15 às 11h15. Cruzamos o ar. A prostituição da poesia chegava ao fim. Eu ia chegar a Santa Anita na sexta e voltar ao romance. A Filarmônica de Nova York se apresentava com Ives no domingo. Havia uma chance. Pedi outro drinque.
As luzes se apagaram. Ninguém conseguia dormir, mas todo mundo fingiu. Eu não me dei o trabalho. Tinha um assento de janela e fiquei olhando a asa e as luzes lá embaixo. Tudo arrumadinho em belas linhas retas. Ninhos de formigas.
Descemos no Internacional de Los Angeles. Ann, eu te amo. Espero que meu carro pegue. Espero que a pia não esteja entupida. Estou feliz por não ter comido uma fanzoca. Estou feliz por não ser muito bom em me meter na cama com estranhas. Estou feliz por ser um idiota. Estou feliz por não saber nada. Estou feliz por não ter sido assassinado. Quando olho para minhas mãos e elas ainda estão nos pulsos, penso comigo mesmo: sou um cara de sorte.
Desci do avião arrastando o casaco de meu pai e minha pilha de poemas. Ann veio ao meu encontro. Olhei o rosto dela e pensei: merda, eu a amo. Que vou fazer? O melhor que podia fazer era bancar o indiferente, depois seguir com ela para o estacionamento. A gente nunca deve deixá-las saber que está ligando, senão elas nos matam. Curvei-me, dei-lhe um beijinho na bochecha.
Foi bom pra caralho você ter vindo.
Tudo bem – ela disse.
Saímos de carro do Internacional de Los Angeles. Eu tinha feito meu número sujo. A prostituição da poesia. Eu jamais fazia propostas aos fregueses. Queriam seu prostituto: tinham-no.
Garota – eu disse a ela – , senti falta de seu rabo mesmo.
Estou com fome – disse Ann.

Fomos a um lugar chicano na Alvarado com Sunset. Comemos burritos com chili verde. Acabou-se. Eu ainda tinha uma mulher, uma mulher com quem eu me importava. Uma mágica dessas não é para ser levada na brincadeira. Olhei o cabelo e o rosto dela quando voltamos para casa. Olhei-a de soslaio quando achava que ela não estava vendo.
Como foi o recital? – ela perguntou.
O recital foi muito bem – respondi.
Subimos a Alvarado, para o norte. Depois para o Glendale Boulevard. Tudo estava bom. O que eu odiava era que algum dia tudo se reduziria a nada, os amores, os poemas, os gladíolos. Acabaríamos recheados de terra como um taco barato.
Ann entrou na estradinha de acesso à nossa casa. Saltamos, subimos os degraus, abrimos a porta e o cachorro saltou em cima da gente. A lua ergueu-se, a casa cheirava a linho e a rosas, o cachorro saltou em cima de mim. Puxei as orelhas dele, dei-lhe palmadas na barriga, ele arregalou os olhos e sorriu.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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