segunda-feira, 11 de julho de 2022

Vanka

Vanka Júkov[1], um menino de nove anos que fora entregue três meses antes como aprendiz ao sapateiro Aliákhin, não se deitou para dormir na noite da véspera de Natal. Ele esperou que os donos da casa e os outros aprendizes saíssem para o ofício das matinas, apanhou no armário do patrão um tinteiro e uma caneta com uma pena enferrujada e, estendendo na sua frente uma folha de papel amassada, pôs-se a escrever. Antes de traçar a primeira letra, olhou algumas vezes amedrontado para as portas e janelas, deu uma espiada de esguelha no ícone escuro, de cujo canto, para ambos os lados, partiam prateleiras onde ficavam as formas de madeira, e deu vários suspiros entrecortados. O papel estava estendido sobre o banco, e o menino, ajoelhado diante dele.
Querido vovô Konstantin Makárytch!” – escreveu. “Eu estou escrevendo para você uma carta. Cumprimento o senhor pelo Natal e desejo para ti tudo do Senhor Deus. Não tenho pai, nem mãezinha, só ficou você para mim.”
Vanka desviou o olhar para a janela escura, onde tremulava o reflexo de sua vela, e vivamente imaginou seu avô, Konstantin Makárytch, que trabalhava como vigia noturno para a família dos Jivariov. Era um velhinho pequenininho, magro, habitualmente ágil e inquieto, de uns 65 anos, com um rosto sempre sorridente e olhos de pinguço. Durante o dia, dormia na cozinha dos empregados ou gracejava com as cozinheiras, e à noite, enrolado num longo tulup[2] a velha cadela Kachtanka e o cachorrinho Viún[3], que recebeu esse nome por ter cor escura e corpo comprido como o de uma doninha. Viún é extraordinariamente respeitoso e amigável, tem um olhar humilde, tanto para os seus como para os estranhos, mas não goza da confiança de ninguém. Por baixo do seu ar respeitoso e submisso, esconde-se uma dissimulação de jesuíta. Ninguém melhor do que ele para se aproximar sorrateiramente e dar uma mordida no pé de alguém, meter-se na despensa fria[4] ou roubar uma galinha de um camponês. Já quebraram em várias ocasiões suas pernas traseiras, já o enforcaram umas duas vezes, surraram-no semanalmente até deixá-lo semimorto, mas ele sempre se safou.
Naquele momento, o avô provavelmente está sentado junto ao portão, olhando com os olhos apertados para as janelas muito vermelhas da igrejinha da aldeia, batendo com as botas de feltro no chão e gracejando com a criadagem. Sua matraca fica amarrada no cinto. Ele levanta os braços, encolhe-se de frio e, dando risadinhas senis, belisca ora a arrumadeira, ora a cozinheira.
Que tal cheirar um rapezinho? – diz ele, oferecendo às mulheres sua tabaqueira.
As mulheres cheiram o rapé e espirram. O avô fica numa alegria indescritível, dá gargalhadas gostosas e grita:
Arranque, congelou!
Também fazem os cachorros cheirar rapé. Kachtanka espirra, vira o focinho e afasta-se ofendida. Já Viún, em sinal de respeito, não espirra e fica abanando o rabo. Faz um tempo maravilhoso, o ar está parado, transparente e fresco. A noite está escura, mas se pode ver toda a aldeia com seus telhados brancos e rolos de fumaça saindo das chaminés, as árvores prateadas de geada, os montes de neve. O céu está alegremente salpicado de estrelas cintilantes, e a Via Láctea destaca-se com tal claridade, como se antes da festa alguém a tivesse lavado e esfregado com neve...
Vanka deu um suspiro, molhou a pena e continuou a escrever:
E ontem eu levei uma surra. O patrão me arrastou pelo cabelo para o pátio e me surrou com uma correia porque eu estava balançando o nenezinho deles no berço e sem querer caí no sono. E na outra semana a dona me mandou limpar arenque, eu comecei pelo rabo, então ela pegou o arenque e começou a cutucar a minha cara com o focinho dele. Os aprendizes vivem rindo de mim, me mandam comprar vodca no botequim, me mandam roubar pepinos dos patrões, e o dono bate em mim com a primeira coisa que vê. E não tem nenhuma comida. De manhã dão pão, no almoço, cacha[5], e de noite, pão também, e se tem chá ou schi[6], só os patrões é que devoram. Eu tenho de dormir no vestíbulo, e quando o nenezinho deles chora, eu não durmo de jeito nenhum e fico balançando o berço. Querido vovô, faz essa caridade em nome de Deus, me tira daqui, me leva para casa, para a aldeia, para mim não tem jeito de ficar aqui... Eu me curvo aos seus pés, vou rezar a Deus pelo senhor eternamente, me leva daqui, senão vou morrer...”
Vanka fez beicinho, enxugou os olhos com as mãos pretas de tinta e deu um soluço.
Eu vou ralar tabaco para você” – continuou – “vou rezar a Deus, e se eu fizer alguma coisa errada, pode me surrar para valer. E se você achar que estou desocupado, juro por Cristo que vou pedir ao administrador para me dar botas para engraxar ou para me deixar ser ajudante de pastor no lugar de Fedka. Vovô querido, não posso ficar aqui de jeito nenhum, senão vou morrer. Tive vontade de fugir para a aldeia a pé, mas não tenho botas e tenho medo do gelo. E quando eu crescer, vou te dar comida e não vou deixar que ninguém te maltrate, e quando você morrer, vou rezar pelo descanso de sua alma, como faço pela minha mãezinha Pelaguéia.
E Moscou é uma cidade grande. Só tem casas grandes de gente rica, tem muitos cavalos, mas não tem ovelhas, e os cachorros não são bravos. Os meninos daqui não andam com a estrela[7] e não deixam eles cantarem no coro da igreja, e uma vez eu vi numa loja, na vitrine, uns anzóis, eles vendem anzóis com linha para qualquer tipo de peixe, são muito bons, tem até um que aguenta um bagre de um pud [8]. Já vi também umas lojas onde tem todo tipo de espingarda, das que os senhores usam, mas devem custar uns cem rublos cada... E nos açougues tem tetraz, perdiz, lebre, mas onde eles caçam, eles não dizem.
Querido vovô, quando fizerem a árvore de Natal na casa dos patrões e puserem as guloseimas, pega para mim uma noz dourada e esconde no bauzinho verde. Pede para a senhorita Olga Ignátievna, diz que é para o Vanka”.
Vanka suspirou convulsivamente e fitou de novo a janela. Lembrou-se de que era sempre o avô que ia ao bosque buscar um pinheirinho para os patrões, levando o neto consigo. Que época feliz! O avô grasnava, a neve dura grasnava e, vendo isso, Vanka também grasnava. Às vezes, antes de derrubar a árvore, o avô fumava o cachimbo, cheirava sem pressa o rapé, zombando do pobre Vaniúchka[9], que congelava... Os pinheirinhos jovens, cobertos de geada, estavam ali, imóveis, esperando para ver qual deles ia morrer. De repente, não se sabe de onde, passa uma lebre, correndo como uma flecha... O avô não consegue ficar calado e dá um grito:
Pega, pega... Segura! Ah, diabo cotó!
O avô arrastava o pinheirinho cortado para a casa dos senhores e lá começavam a enfeitá-lo. Quem mais se empenhava era a senhorita Olga Ignátievna, a preferida de Vanka. Quando a mãe de Vanka, Pelaguéia, ainda era viva e trabalhava como arrumadeira na casa dos senhores, Olga Ignátievna dava balas para o menino e, por falta do que fazer, ensinou-o a ler, escrever e contar até cem, e até a dançar quadrilha. Mas quando Pelaguéia morreu, despacharam o órfão Vanka para viver com o avô, na cozinha dos empregados e, da cozinha, o mandaram para Moscou, para a casa do sapateiro Aliákhin...
Venha, querido vovô” – continuou Vanka – “eu te imploro por Cristo Deus, me leva daqui. Tem dó de mim, órfão infeliz, porque aqui todos me surram, tenho uma fome danada e fico tão triste que nem sei dizer, choro o tempo todo. Um dia desses o dono me bateu na cabeça com uma forma de madeira com tanta força que eu caí e custei a acordar... Minha vida está perdida, vivo pior que qualquer cachorro... E ainda estou mandando cumprimentos a Aliona, ao Iegorka zarolho e ao cocheiro, e não dê minha harmônica para ninguém. Serei sempre seu neto Ivan Júkov, vovô querido, venha.”
Vanka dobrou em quatro o papel escrito e enfiou no envelope comprado na véspera por um copeque. Depois de pensar um pouquinho, molhou a pena e escreveu o endereço:
Para o vovô, na aldeia.
Depois coçou-se, pensou e acrescentou: “Para Konstantin Makárytch”. Feliz porque ninguém o impedira de escrever, ele colocou o gorro e, sem mesmo atirar nas costas o casaquinho, saiu correndo para a rua, apenas de camisa...
Os caixeiros do açougue, a quem ele na véspera pedira informações, haviam dito que as cartas são colocadas nas caixas de correio, de onde elas são distribuídas para todos os cantos da terra, nas tróicas[10] postais, guiadas por cocheiros bêbados, tilintando seus sininhos. Vanka correu até a caixa de correio mais próxima e enfiou a preciosa carta na fenda...
Embalado por doces esperanças, uma hora depois ele dormia pesadamente... Ele viu em sonhos o fogão[11] acima do qual estava sentado o avô, com os pés descalços pendentes, lendo a carta para as cozinheiras... Perto do fogão caminhava Viún, balançando a cauda…

[1] Diminutivo com nuance pejorativa de Vânia, apelido de Ivan. Esse tipo de diminutivo é comumente usado para denominar pessoas que têm status inferior na sociedade e aqueles que são órfãos de pai. (N.T.)
[2] Capote comprido feito de pele, geralmente de ovelha, com o pêlo para dentro e apertado com cinto. (N.T.)
[3] Viún significa “enguia” em russo. (N.T.)
[4] Buraco cavado no chão, com alçapão, que se enchia de gelo e onde no verão se conservavam alimentos perecíveis. (N.T.)
[5] Prato feito de cereal cozido, parecido com a nossa forma de cozinhar arroz (usa-se especialmente trigo sarraceno, mas também pode ser cevada, trigo, arroz ou, então, pode ser feito com leite e açúcar, de semolina, aveia etc.). (N.T.)
[6] Sopa de repolho, que pode ser fresco ou azedo. (N.T.)
[7] Antigamente, nas aldeias russas, as crianças saíam na véspera de Natal ou na noite de Reis com uma estrela presa na ponta de um ramo de pinheiro e cantavam diante das casas, esperando ganhar moedinhas ou doces. (N.T.)
[8] Medida russa de massa, equivalente a 16,3 kg. (N.T.)
[9] Outro diminutivo de Vânia, apelido de Ivan. (N.T.)
[10] Três cavalos atrelados a algum tipo de carro (carruagem, caleche, etc.), ou, no inverno, a um trenó; esse meio de transporte alcança grande velocidade. (N.T.)
[11] O fogão típico russo é feito de tijolos e serve a várias finalidades: é fogão, forno, lareira, pois aquece a habitação no inverno, e ainda tem prateleiras largas por cima que servem de camas aquecidas. (N.T.)

Anton Tchékhov, in A Dama do Cachorrinho (e Outras Histórias)

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