Vanka
Júkov[1], um menino de nove anos que fora entregue três meses antes
como aprendiz ao sapateiro Aliákhin, não se deitou para dormir na
noite da véspera de Natal. Ele esperou que os donos da casa e os
outros aprendizes saíssem para o ofício das matinas, apanhou no
armário do patrão um tinteiro e uma caneta com uma pena enferrujada
e, estendendo na sua frente uma folha de papel amassada, pôs-se a
escrever. Antes de traçar a primeira letra, olhou algumas vezes
amedrontado para as portas e janelas, deu uma espiada de esguelha no
ícone escuro, de cujo canto, para ambos os lados, partiam
prateleiras onde ficavam as formas de madeira, e deu vários suspiros
entrecortados. O papel estava estendido sobre o banco, e o menino,
ajoelhado diante dele.
“Querido
vovô Konstantin Makárytch!” – escreveu. “Eu estou escrevendo
para você uma carta. Cumprimento o senhor pelo Natal e desejo para
ti tudo do Senhor Deus. Não tenho pai, nem mãezinha, só ficou você
para mim.”
Vanka
desviou o olhar para a janela escura, onde tremulava o reflexo de sua
vela, e vivamente imaginou seu avô, Konstantin Makárytch, que
trabalhava como vigia noturno para a família dos Jivariov. Era um
velhinho pequenininho, magro, habitualmente ágil e inquieto, de uns
65 anos, com um rosto sempre sorridente e olhos de pinguço. Durante
o dia, dormia na cozinha dos empregados ou gracejava com as
cozinheiras, e à noite, enrolado num longo tulup[2] a velha cadela
Kachtanka e o cachorrinho Viún[3], que recebeu esse nome por ter cor
escura e corpo comprido como o de uma doninha. Viún é
extraordinariamente respeitoso e amigável, tem um olhar humilde,
tanto para os seus como para os estranhos, mas não goza da confiança
de ninguém. Por baixo do seu ar respeitoso e submisso, esconde-se
uma dissimulação de jesuíta. Ninguém melhor do que ele para se
aproximar sorrateiramente e dar uma mordida no pé de alguém,
meter-se na despensa fria[4] ou roubar uma galinha de um camponês.
Já quebraram em várias ocasiões suas pernas traseiras, já o
enforcaram umas duas vezes, surraram-no semanalmente até deixá-lo
semimorto, mas ele sempre se safou.
Naquele
momento, o avô provavelmente está sentado junto ao portão, olhando
com os olhos apertados para as janelas muito vermelhas da igrejinha
da aldeia, batendo com as botas de feltro no chão e gracejando com a
criadagem. Sua matraca fica amarrada no cinto. Ele levanta os braços,
encolhe-se de frio e, dando risadinhas senis, belisca ora a
arrumadeira, ora a cozinheira.
– Que
tal cheirar um rapezinho? – diz ele, oferecendo às mulheres sua
tabaqueira.
As
mulheres cheiram o rapé e espirram. O avô fica numa alegria
indescritível, dá gargalhadas gostosas e grita:
– Arranque,
congelou!
Também
fazem os cachorros cheirar rapé. Kachtanka espirra, vira o focinho e
afasta-se ofendida. Já Viún, em sinal de respeito, não espirra e
fica abanando o rabo. Faz um tempo maravilhoso, o ar está parado,
transparente e fresco. A noite está escura, mas se pode ver toda a
aldeia com seus telhados brancos e rolos de fumaça saindo das
chaminés, as árvores prateadas de geada, os montes de neve. O céu
está alegremente salpicado de estrelas cintilantes, e a Via Láctea
destaca-se com tal claridade, como se antes da festa alguém a
tivesse lavado e esfregado com neve...
Vanka
deu um suspiro, molhou a pena e continuou a escrever:
“E
ontem eu levei uma surra. O patrão me arrastou pelo cabelo para o
pátio e me surrou com uma correia porque eu estava balançando o
nenezinho deles no berço e sem querer caí no sono. E na outra
semana a dona me mandou limpar arenque, eu comecei pelo rabo, então
ela pegou o arenque e começou a cutucar a minha cara com o focinho
dele. Os aprendizes vivem rindo de mim, me mandam comprar vodca no
botequim, me mandam roubar pepinos dos patrões, e o dono bate em mim
com a primeira coisa que vê. E não tem nenhuma comida. De manhã
dão pão, no almoço, cacha[5], e de noite, pão também, e se tem
chá ou schi[6], só os patrões é que devoram. Eu tenho de dormir
no vestíbulo, e quando o nenezinho deles chora, eu não durmo de
jeito nenhum e fico balançando o berço. Querido vovô, faz essa
caridade em nome de Deus, me tira daqui, me leva para casa, para a
aldeia, para mim não tem jeito de ficar aqui... Eu me curvo aos seus
pés, vou rezar a Deus pelo senhor eternamente, me leva daqui, senão
vou morrer...”
Vanka
fez beicinho, enxugou os olhos com as mãos pretas de tinta e deu um
soluço.
“Eu
vou ralar tabaco para você” – continuou – “vou rezar a Deus,
e se eu fizer alguma coisa errada, pode me surrar para valer. E se
você achar que estou desocupado, juro por Cristo que vou pedir ao
administrador para me dar botas para engraxar ou para me deixar ser
ajudante de pastor no lugar de Fedka. Vovô querido, não posso ficar
aqui de jeito nenhum, senão vou morrer. Tive vontade de fugir para a
aldeia a pé, mas não tenho botas e tenho medo do gelo. E quando eu
crescer, vou te dar comida e não vou deixar que ninguém te
maltrate, e quando você morrer, vou rezar pelo descanso de sua alma,
como faço pela minha mãezinha Pelaguéia.
“E
Moscou é uma cidade grande. Só tem casas grandes de gente rica, tem
muitos cavalos, mas não tem ovelhas, e os cachorros não são
bravos. Os meninos daqui não andam com a estrela[7] e não deixam
eles cantarem no coro da igreja, e uma vez eu vi numa loja, na
vitrine, uns anzóis, eles vendem anzóis com linha para qualquer
tipo de peixe, são muito bons, tem até um que aguenta um bagre de
um pud [8]. Já vi também umas lojas onde tem todo tipo de
espingarda, das que os senhores usam, mas devem custar uns cem rublos
cada... E nos açougues tem tetraz, perdiz, lebre, mas onde eles
caçam, eles não dizem.
“Querido
vovô, quando fizerem a árvore de Natal na casa dos patrões e
puserem as guloseimas, pega para mim uma noz dourada e esconde no
bauzinho verde. Pede para a senhorita Olga Ignátievna, diz que é
para o Vanka”.
Vanka
suspirou convulsivamente e fitou de novo a janela. Lembrou-se de que
era sempre o avô que ia ao bosque buscar um pinheirinho para os
patrões, levando o neto consigo. Que época feliz! O avô grasnava,
a neve dura grasnava e, vendo isso, Vanka também grasnava. Às
vezes, antes de derrubar a árvore, o avô fumava o cachimbo,
cheirava sem pressa o rapé, zombando do pobre Vaniúchka[9], que
congelava... Os pinheirinhos jovens, cobertos de geada, estavam ali,
imóveis, esperando para ver qual deles ia morrer. De repente, não
se sabe de onde, passa uma lebre, correndo como uma flecha... O avô
não consegue ficar calado e dá um grito:
– Pega,
pega... Segura! Ah, diabo cotó!
O
avô arrastava o pinheirinho cortado para a casa dos senhores e lá
começavam a enfeitá-lo. Quem mais se empenhava era a senhorita Olga
Ignátievna, a preferida de Vanka. Quando a mãe de Vanka, Pelaguéia,
ainda era viva e trabalhava como arrumadeira na casa dos senhores,
Olga Ignátievna dava balas para o menino e, por falta do que fazer,
ensinou-o a ler, escrever e contar até cem, e até a dançar
quadrilha. Mas quando Pelaguéia morreu, despacharam o órfão Vanka
para viver com o avô, na cozinha dos empregados e, da cozinha, o
mandaram para Moscou, para a casa do sapateiro Aliákhin...
“Venha,
querido vovô” – continuou Vanka – “eu te imploro por Cristo
Deus, me leva daqui. Tem dó de mim, órfão infeliz, porque aqui
todos me surram, tenho uma fome danada e fico tão triste que nem sei
dizer, choro o tempo todo. Um dia desses o dono me bateu na cabeça
com uma forma de madeira com tanta força que eu caí e custei a
acordar... Minha vida está perdida, vivo pior que qualquer
cachorro... E ainda estou mandando cumprimentos a Aliona, ao Iegorka
zarolho e ao cocheiro, e não dê minha harmônica para ninguém.
Serei sempre seu neto Ivan Júkov, vovô querido, venha.”
Vanka
dobrou em quatro o papel escrito e enfiou no envelope comprado na
véspera por um copeque. Depois de pensar um pouquinho, molhou a pena
e escreveu o endereço:
Para
o vovô, na aldeia.
Depois
coçou-se, pensou e acrescentou: “Para Konstantin Makárytch”.
Feliz porque ninguém o impedira de escrever, ele colocou o gorro e,
sem mesmo atirar nas costas o casaquinho, saiu correndo para a rua,
apenas de camisa...
Os
caixeiros do açougue, a quem ele na véspera pedira informações,
haviam dito que as cartas são colocadas nas caixas de correio, de
onde elas são distribuídas para todos os cantos da terra, nas
tróicas[10] postais, guiadas por cocheiros bêbados, tilintando seus
sininhos. Vanka correu até a caixa de correio mais próxima e enfiou
a preciosa carta na fenda...
Embalado
por doces esperanças, uma hora depois ele dormia pesadamente... Ele
viu em sonhos o fogão[11] acima do qual estava sentado o avô, com
os pés descalços pendentes, lendo a carta para as cozinheiras...
Perto do fogão caminhava Viún, balançando a cauda…
[1]
Diminutivo com nuance pejorativa de Vânia, apelido de Ivan. Esse
tipo de diminutivo é comumente usado para denominar pessoas que têm
status inferior na sociedade e aqueles que são órfãos de pai.
(N.T.)
[2]
Capote comprido feito de pele, geralmente de ovelha, com o pêlo para
dentro e apertado com cinto. (N.T.)
[3]
Viún significa “enguia” em russo. (N.T.)
[4]
Buraco cavado no chão, com alçapão, que se enchia de gelo e onde
no verão se conservavam alimentos perecíveis. (N.T.)
[5]
Prato feito de cereal cozido, parecido com a nossa forma de cozinhar
arroz (usa-se especialmente trigo sarraceno, mas também pode ser
cevada, trigo, arroz ou, então, pode ser feito com leite e açúcar,
de semolina, aveia etc.). (N.T.)
[6]
Sopa de repolho, que pode ser fresco ou azedo. (N.T.)
[7]
Antigamente, nas aldeias russas, as crianças saíam na véspera de
Natal ou na noite de Reis com uma estrela presa na ponta de um ramo
de pinheiro e cantavam diante das casas, esperando ganhar moedinhas
ou doces. (N.T.)
[8]
Medida russa de massa, equivalente a 16,3 kg. (N.T.)
[9]
Outro diminutivo de Vânia, apelido de Ivan. (N.T.)
[10]
Três cavalos atrelados a algum tipo de carro (carruagem, caleche,
etc.), ou, no inverno, a um trenó; esse meio de transporte alcança
grande velocidade. (N.T.)
[11]
O fogão típico russo é feito de tijolos e serve a várias
finalidades: é fogão, forno, lareira, pois aquece a habitação no
inverno, e ainda tem prateleiras largas por cima que servem de camas
aquecidas. (N.T.)
Anton Tchékhov, in A Dama do Cachorrinho (e Outras Histórias)
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