Sei
que o que eu vou falar é difícil, mas que é que eu vou fazer, se
me ocorreu com tanta naturalidade e precisão? É assim:
Não
era nada mais que um impulso. Para ser mais precisa, era impulso
apenas, e não um impulso. Não se pode dizer que este impulso
mantinha a mulher porque manter lembraria um estado e não se
poderia falar em estado quando o impulso o que fazia era
continuamente levá-la. É claro que, por hábito de chegar, ela
fazia com que o impulso a levasse a alguma parte ou a algum ato. O
que dava o ligeiríssimo desconforto de uma traição à natureza
intransitiva do impulso. No entanto, não se pode nem de longe falar
em gratuidade de impulso, apenas por se ter falado de alguma coisa
intransitiva. Com o hábito de “comprar e vender”, atos que dão
o suspiro de uma conclusão, terminamos pensando que aquilo que não
se conclui, o que não se finda, fica em fio solto,
fica interrompido. Quando, na verdade, o impulso ia sempre. O que, de
novo, pode levar a se querer presumir o problema de distância: ia
longe ou perto. E aonde. Quando isso na verdade já cairia no caso em
que falamos acima, sobre o ligeiríssimo desconforto que vem de se
confundir a aplicação do impulso com o impulso propriamente dito.
Não, não se quer dizer que a aplicação do impulso dá mal-estar.
Pelo contrário, o impulso não aplicado durante um certo tempo pode
se tornar de uma intensidade cujo incômodo só se alivia com uma
aplicação factual dele. Depois que a intensidade dele é aliviada,
o que nós chamaríamos de resíduo de impulso não é resíduo, é o
impulso propriamente dito – é o impulso sem a carga de choro
(choro no sentido de acúmulo, acúmulo no sentido de quantidade
superposta), é o impulso sem a urgência (urgência no sentido de
modificação de ritmo de tempo, e, na verdade, modificação de
ritmo é modificação do tempo em si).
Mas,
considerando que nós somos um fato, quer dizer, cada um de nós é
um fato – ou, pelo menos, como lidar conosco mesmos sem, como
andaime necessário, não nos tratarmos como um fato? – como eu ia
dizendo, considerando que cada um de nós é um fato, a tendência é
transformarmos o que é (existe) em fatos, em transformarmos o
impulso em sua aplicação. E fazermos com que o atonal se torne
tonal. E darmos um finito ao infinito, numa série de finitos
(infinito não é usado aqui como quantidade imensurável, mas como
qualidade imanente). O grande desconforto vem de que, por mais
longa que seja a série de finitos, ela não esgota a qualidade
residual de infinito (que na realidade não é residual, é o próprio
infinito). O fato de não esgotar não acarretaria nenhum desconforto
se não fosse a confusão entre ser e o uso do ser. O Uso do ser é
temporário, mesmo que pareça continuado: é continuado no sentido
em que, acabado um uso, segue-se imediatamente outro. Mas a verdade é
que seria mais certo dizer: segue-se mediatamente e não
imediatamente: até entre o número um e o número um, há, como se
pode adivinhar, um um. Esse um, entre os dois uns, só se
chamaria de resíduo se quiséssemos chamar arbitrariamente os dois
números um mais importantes que o “um entre”. Esse “um entre”
é atonal, é impulso.
Como
se pode imaginar, a mulher que estava pensando nisso não
estava absolutamente pensando propriamente. Estava o que se chama de
absorta, de ausente. Tanto que, após um determinado instante em que
sua ausência (que era um pensamento profundo, profundo no sentido de
não pensável e não dizível), após um determinado instante em que
sua ausência fraquejou por um instante, ela sucumbiu ao uso da
palavra-pensada (que a transformou em fato), a partir do momento em
que ela factualizou-se por um segundo em pensamento – ela se
enganchou um instante em si mesma, atrapalhou-se um segundo como um
sonâmbulo que esbarra sua liberdade numa cadeira, suspirou um
instante, parte involuntariamente para aliviar o que se tornara de
algum modo intenso, parte voluntariamente para apressar sua própria
metamorfose em fato.
O
fato (que a fez suspirar) em que ela se transformou era o de uma
mulher com uma vassoura na mão. Uma revolta infinitesimal passou-se
nela – não, como se poderá concluir, por ela ser o fato de uma
mulher com uma vassoura na mão – mas a infinitesimal revolta, até
agradável (pois ar em movimento é brisa) em, de um modo geral,
aplicar-se. Aplicar-se era uma canalização, canalização era uma
necessária limitação, limitação um necessário desconhecer do
que há entre o número um e o número um.
Como
se disse, revolta ligeiramente agradável, que se foi intensificando
em mais e mais agradável, até que a aplicação de si mesma em si
mesma se tornou sumamente agradável – e, com o próprio atonal,
ela se tornou o que se chama música, quer dizer, audível.
Naturalmente sobrou, como na boca sobre um gosto, a sensação atonal
do contato atonal com o impulso atonal.
O
que fez a mulher ter uma expressão de olhos que, factualmente, era a
de uma vaca. As coisas tendem a tomar a forma do fato que se é (o
modo como o que é se torna fato é um modo infinitesimal rápido).
Com a vassoura numa das mãos, pois, ela usou a outra mão para
ajeitar os cabelos. Acabou de reunir com a vassoura os cacos do copo
quebrado – na verdade, o quebrar-se inesperado do copo é o que
havia dado artificialmente um finito, e a fizera deslizar para
o um entre os dois uns – acabou de reunir os cacos com
vivacidade de movimentos. O homem que estava na sala percebeu a
vivacidade dos movimentos, não soube entender o que percebera mas,
como realmente percebera, disse tentativamente, sabendo que não
estava exprimindo sua própria percepção: o chão está limpo
agora.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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