segunda-feira, 11 de julho de 2022

A dor não abate um homem


[...]
Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de dorado e não podia mexer-se.
Era por isto que esperávamos, pensou. Toca a aguentar”.
Que a linha lhe custe faz com que a linha lhe custe cara”.
Não podia ver os saltos do peixe, apenas ouvia o estalar do oceano e o pesado espadanar da queda. A velocidade da linha cortava-lhe terrivelmente as mãos, mas sempre soubera que tal aconteceria, e tentava manter a linha nas partes calosas, não a deixar passar na palma ou nos dedos.
Se o rapaz aqui estivesse, molharia as voltas da linha, pensou. Sim. Se o rapaz cá estivesse. Se o rapaz cá estivesse”.
A linha ia correndo sempre, abrandando já, e o velho fazia o peixe pagar cara cada polegada. Levantou da madeira a cabeça, retirando-a do pedaço de peixe que a face esmagara. A seguir, estava de joelhos e, depois, lentamente, de pé. Cedia linha, mas de cada vez mais devagar. Recuou até de onde podia com o pé sentir as reservas de linha, que não via. Havia ainda muita linha, e o peixe tinha de vencer também o atrito da muita linha dentro de água.
Sim, pensou. E, agora, já ele saltou mais de uma dúzia de vezes e encheu de ar os sacos ao longo das costas, e não pode descer para morrer lá de onde não posso trazê-lo para cima. Não tarda que comece a andar à volta, e então tenho de puxar por ele. O que o terá excitado tão subitamente? Seria a fome o que o desesperou, ou assustou-se com alguma coisa na noite? Talvez, de repente, tenha sentido medo. Mas era um peixe tão forte e tão calmo, parecia tão destemido e tão seguro de si! É estranho”.
É melhor, meu velho, que sejas tu destemido e seguro de ti – disse. – Estás outra vez a aguentá-lo, mas não recuperas linha. Mas não tarda que ele comece a andar à roda.
O velho segurava com a mão esquerda e os ombros, e debruçou-se e apanhou água na concha da mão direita para tirar da cara o peixe esmagado. Tinha medo de se agoniar, de vomitar e de perder a força. Depois de lavar a cara, meteu a mão na água e deixou-a ficar na água salgada, enquanto fitava o primeiro claror que antecede o nascer do sol. Vai de rumo quase a leste, pensou. O que significa que está cansado e vai com a corrente. Não tarda, terá que andar à volta. E então começa o nosso trabalho".
Quando lhe pareceu que a mão direita estivera tempo suficiente na água, retirou-a e olhou para ela.
Não está mal. E a dor não abate um homem.”
Pegou na linha cuidadosamente, para que ela não calhasse em nenhum dos golpes recentes, e mudou a posição do esforço, para poder meter a mão esquerda na água, do outro lado do esquife.
Para uma coisa sem dignidade, não te portaste muito mal – disse à mão esquerda. – Mas um momento houve em que não te encontrava.
Porque não nasci eu com duas mãos boas? Talvez seja minha a culpa, por não ter treinado esta devidamente. Mas Deus sabe que ela teve bastantes oportunidades de aprender. Não se portou muito mal de noite, apesar de tudo, e só uma vez teve cãibras. Se tornar a ter, que a corte a linha”.
Quando pensou isto, viu que não estava a pensar claramente, e achou que devia mastigar um bocado mais do dorado. “Mas não posso, disse de si para si. É melhor andar com a cabeça no ar, do que enjoar e perder a força. E bem sei que não me aguentava, se o comesse, depois de ter tido a cara metida nele. Guardo-o para uma emergência, até que vá estragar-se.
Mas já é tarde demais para tratar das forças com comida. És estúpido, disse consigo. Come o outro peixe-voador".
Ali estava, arranjado e pronto, e pegou nele com a mão esquerda e comeu-o, chupando as espinhas e comendo tudo até à cauda.
É mais alimentício que quase todos os peixes, pensou. Pelo menos, a espécie de força de que eu preciso. Agora já fiz o que podia. Ele que comece às voltas, e vamos à luta”.
O sol nascia pela terceira vez, desde que ele saíra para o mar, quando o peixe começou às voltas.
Não podia pela inclinação da linha ver que o peixe começara a andar em círculo. Ainda era cedo para isso. Apenas sentia uma ligeira relaxação na linha, e principiou a puxá-la devagar com a mão direita. A linha retesava-se, como sempre, mas, quando ele atingiu o ponto a partir do qual ela rebentaria, começou a vir. Tirou os ombros e a cabeça de sob a linha, e puxou devagar e com firmeza. Fazia uso de ambas as mãos, num movimento balanceado, e tentava puxar também com o corpo e as pernas, quanto podia. As suas velhas pernas e os ombros rodavam no balanço de puxar.
É uma volta muito grande – disse. – Mas anda à volta.
Depois, a linha não vinha mais, e esticou-a até ver as gotas saltarem ao sol. A linha então fugiu com força, e o velho até ajoelhou e de má vontade deixou-a regressar à água escura.


Está a percorrer a parte mais afastada do seu círculo.
E pensou: há que segurar com quanta força tenho. A tensão encurtará de cada vez o círculo. Talvez daqui a uma hora eu o veja. Por agora, preciso de o convencer e, depois, de o matar.
Mas o peixe continuava a descrever vagarosamente o seu círculo, e o velho estava encharcado em suor e exausto até à medula dos ossos, duas horas mais tarde. Os círculos, porém, eram já mais curtos, e pela forma como a linha se inclinava, bem se via que o peixe, enquanto nadava, se elevava constantemente.
Durante uma hora estivera o velho a ver malhas negras diante dos olhos, e o suor ardia-lhe nos olhos e no golpe na testa. Das malhas negras não tinha ele medo. Eram normais, à tensão a que ele estava a puxar a linha. Duas vezes, porém, sentiu-se a desmaiar e a entontecer, e isso afligiu-o.
Não podia ir-me abaixo e morrer com um peixe como este – disse. – Agora que o tenho a vir tão lindamente, Deus permita que eu aguente. Hei-de dizer cem Padre-Nossos e cem Ave-Marias. Mas não os posso dizer agora.
Considera-os como ditos, pensou. Eu digo-os depois”.
Nesse momento, sentiu uma súbita pancada e um sacão na linha, que segurou com as mãos ambas. Sacão violento, áspero, pesado.
Está a bater no chumbo com o dardo, pensou. Isto tinha de acontecer. Ele havia de fazer isto. Pode é fazê-lo saltar, e eu antes queria que ele se ficasse por agora às voltas. Os saltos eram necessários para ele tomar ar. Mas, depois de cada um, a abertura da ferida feita pelo anzol alargará, e ele pode livrar-se”.
Não saltes, peixe. Não saltes.
O peixe atacou o arame várias vezes, e, de cada vez que sacudia a cabeça, o velho dava-lhe um pouco de linha.
Tenho de manter-lhe a dor no grau em que está, pensou. A minha não importa. A minha domino eu. Mas a dele pode enlouquecê-lo”.
Tempo depois, o peixe parou de bater no arame, e começou de novo a descrever um círculo. O velho recuperava agora constantemente linha. Mas sentiu-se outra vez a desmaiar.
Apanhou água com a mão esquerda e atirou-a à cabeça. Depois, com mais, friccionou a nuca.
Não tenho cãibras. Não tarda que ele venha ao cimo, e eu resisto. Tens de resistir. Nem sequer fales nisso.
Ajoelhou contra a proa e, por um momento, passou mais uma vez a linha pelas costas. “Descanso, enquanto ele dá a volta por fora, e depois levanto-me e puxo-o, quando ele vier por dentro”, decidiu.
Era uma grande tentação descansar na proa e deixar o peixe descrever por sua conta um círculo, sem recuperar linha. Mas, quando a tensão mostrou que o peixe ia na volta a passar de frente para o barco, o velho pôs-se de pé e iniciou o balancear e puxar de dobadoura que o fez recuperar a linha que o peixe ganhara.
Estou mais cansado do que nunca, pensou, e levanta-se o vento. Mas é bom para o puxar. Preciso imenso do vento. Descanso na próxima volta, quando ele for para fora – disse. – Sinto-me muito melhor. Depois, mais duas ou três voltas, e tenho-o comigo.”
O chapéu de palha estava caído para a nuca, e o velho abateu-se na proa com o sacão da linha, quando o peixe começou a voltar.
Trabalha tu, peixe. Espero-te na volta”.
O mar engrossara consideravelmente. Era, porém, uma brisa de bom tempo, e precisava dela para regressar.
Farei rumo a sudoeste – disse. – Um homem nunca se perde no mar, e a ilha é muito comprida.
Foi na terceira volta que viu o peixe.
Viu-o primeiro como uma negra sombra que levou tanto tempo a passar sob o barco, que não pode crer no comprimento.
Não – exclamou. – Não pode ser tão grande.
Mas era assim grande; e, no fim dessa volta, veio à superfície a umas trinta jardas apenas, e o homem viu-lhe a cauda fora de água. Era mais alta do que uma grande foice e cor de alfazema pálida, acima de água azul-escura. Ao passar mesmo abaixo da superfície, o velho via-lhe o imenso bojo e as listras de púrpura que o enfaixavam. A barbatana dorsal estava retraída mas as peitorais, medonhas, abertas de par em par.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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