domingo, 10 de julho de 2022

“... Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos...”

      Matsuo Bashô (1644-1694), poeta japonês, foi o mestre supremo dos haicais. Haicais são mínimos poemas, menores não pode haver, dentro dos quais está um mundo.
Este é um dos mais famosos haicais de Bashô:

Casca oca
a cigarra
cantou-se toda.

Bashô é apelido que significa “bananeira”. Era a árvore favorita do poeta. Bananeiras são árvores estranhas – dão um único cacho e morrem. Seu caule macio deve então ser cortado, o que pode ser feito com um único golpe de facão. Depois, passado algum tempo, de dentro do cepo velho e morto nasce um broto, que cresce e vira outra bananeira.
Eu havia cortado várias bananeiras que impediam o acesso a uma cachoeira, em Pocinhos do Rio Verde. Algumas semanas depois voltei ao lugar, e este haicai apareceu-me instantaneamente:

Bananeira cortada:
no cepo velho
um broto criança.

Entendi, então, a razão do gosto de Bashô pelas bananeiras – as bananeiras velhas, mortas, não estão mortas. Dentro da sua morte, a vida faz o seu trabalho de ressurreição.

***

Cigarras são seres subterrâneos e silenciosos – algumas chegam a viver dezessete anos dentro da terra, sob a forma de larva. De repente saem da terra, arrebentam a casca dura que as continha (era ataúde) e se tornam seres alados, cantantes. Antes mesmo de ter lido o haicai de Bashô, colhi, no bosque onde caminho, algumas cascas vazias de cigarra e as coloquei num bonsai, no meu escritório – tinha esperança de que as pessoas entendessem aquele haicai sem palavras: seres subterrâneos podem se tornar seres alados!
As lagartas, cuja vida se resume a devorar as folhas sobre as quais se arrastam, após esgotarem essa fase rastejante e gastronômica entram num sarcófago que elas mesmas tecem, mergulham num sono profundo e, quando acordam, não mais se reconhecem – tornaram-se uma outra coisa, seres coloridos, voantes de flor em flor, borboletas.
Metamorfoses... Acontecem sempre de repente – e, embora não pareça, somos nós, seres humanos, aqueles que passam por metamorfoses com mais facilidade. É que nossa casca, diferente da casca dos animais, é feita de símbolos. Como diz o Evangelho, o verbo se faz carne. Assim, basta que as palavras se alterem para que o corpo se metamorfoseie num outro.
Símbolos são o desejo transformado em imagem. A vida são os símbolos se esforçando para dar forma ao corpo. A beleza de uma pessoa, no sentido mais espiritual, não se encontra no corpo. Ela se encontra na coreografia do corpo que dança a dança do símbolo que o possui.
Mas há um momento em que os símbolos envelhecem e se tornam cascas vazias. Vazias porque o canto que a vida cantava chegou ao final. Quando a orquestra termina de tocar a sinfonia, fecham-se as partituras e os instrumentos fazem silêncio, para que uma nova partitura possa ser aberta.
O Pássaro Encantado foi, por muitos anos, o meu símbolo. Não sei bem por quê. O nascimento dos símbolos é evento misterioso. Talvez porque a imagem de um pássaro simbolize a liberdade, como disse Fernando Pessoa:

Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!
[...]
Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
[...]
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.

Quando o Pássaro nasceu, acho que era isso. Mas não só isso. Havia o amor... A estória foi escrita para uma menina que tinha medo das minhas ausências. Ela me amava e sentia saudades. E eu a amava e sentia saudades...
Como disse, os símbolos se esgotam. Posso imaginar que Bashô tivesse percebido isso ao escrever, no seu haicai, que a cigarra se esgotou toda com o seu canto. Tudo o que é belo tem de morrer – um poema morre, uma sonata morre, o dia morre...
O Pássaro Encantado cantou-se todo. Estará então condenado a ser como a casca vazia da cigarra? Para fazer de novo viver o Pássaro Encantado, tenho de invocar um símbolo de bruxedo, tirado da tradição religiosa: o da morte e da ressurreição.
Nietzsche percebeu: “Somente onde há sepulturas há também ressurreições”. Goethe também percebeu: “Morre e transforma-te”. A vida, para se renovar, tem de passar pela morte. Como na música. Chegado o fim da peça musical – lembro-me da Quinta sinfonia de Tchaikóvski”, que termina morrendo –, vem o silêncio. Acabou. Nada mais há a ser dito.
Acabou? Não. Na sepultura silenciosa da partitura fechada, a música espera pela ressurreição. Haverá um dia em que a sua beleza, agora em silêncio, se fará ouvir de novo. O silêncio é o tempo da espera.
A Adélia entende:

Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

O Pássaro que parecia morto adubava; o que parecia estático esperava.
Aconteceu então o que acontece com a beleza da música, que parece morta no silêncio da partitura fechada. A partitura se abriu e a música se repetiu. Tudo o que é belo deseja a repetição. Mas toda repetição é primeiro morte, para depois ser ressurreição. O que morreu é esquecido para que uma nova vida possa nascer.
E a estória começou a ser contada como da primeira vez... Mas o corpo ressuscitado nunca é igual ao corpo sepultado. Ele ressuscita diferente, transfigurado. As palavras eram as mesmas, mas a melodia era outra...

***

Era uma vez uma Menina que tinha um Pássaro como seu melhor amigo. Ele era um Pássaro diferente de todos os demais: era Encantado...”

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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