Matsuo
Bashô (1644-1694), poeta japonês, foi o mestre supremo dos haicais.
Haicais são mínimos poemas, menores não pode haver, dentro dos
quais está um mundo.
Este
é um dos mais famosos haicais de Bashô:
Casca
oca
a
cigarra
cantou-se
toda.
Bashô
é apelido que significa “bananeira”. Era a árvore favorita do
poeta. Bananeiras são árvores estranhas – dão um único cacho e
morrem. Seu caule macio deve então ser cortado, o que pode ser feito
com um único golpe de facão. Depois, passado algum tempo, de dentro
do cepo velho e morto nasce um broto, que cresce e vira outra
bananeira.
Eu
havia cortado várias bananeiras que impediam o acesso a uma
cachoeira, em Pocinhos do Rio Verde. Algumas semanas depois voltei ao
lugar, e este haicai apareceu-me instantaneamente:
Bananeira
cortada:
no
cepo velho
um
broto criança.
Entendi,
então, a razão do gosto de Bashô pelas bananeiras – as
bananeiras velhas, mortas, não estão mortas. Dentro da sua morte, a
vida faz o seu trabalho de ressurreição.
***
Cigarras
são seres subterrâneos e silenciosos – algumas chegam a viver
dezessete anos dentro da terra, sob a forma de larva. De repente saem
da terra, arrebentam a casca dura que as continha (era ataúde) e se
tornam seres alados, cantantes. Antes mesmo de ter lido o haicai de
Bashô, colhi, no bosque onde caminho, algumas cascas vazias de
cigarra e as coloquei num bonsai, no meu escritório – tinha
esperança de que as pessoas entendessem aquele haicai sem palavras:
seres subterrâneos podem se tornar seres alados!
As
lagartas, cuja vida se resume a devorar as folhas sobre as quais se
arrastam, após esgotarem essa fase rastejante e gastronômica entram
num sarcófago que elas mesmas tecem, mergulham num sono profundo e,
quando acordam, não mais se reconhecem – tornaram-se uma outra
coisa, seres coloridos, voantes de flor em flor, borboletas.
Metamorfoses...
Acontecem sempre de repente – e, embora não pareça, somos nós,
seres humanos, aqueles que passam por metamorfoses com mais
facilidade. É que nossa casca, diferente da casca dos animais, é
feita de símbolos. Como diz o Evangelho, o verbo se faz carne.
Assim, basta que as palavras se alterem para que o corpo se
metamorfoseie num outro.
Símbolos
são o desejo transformado em imagem. A vida são os símbolos se
esforçando para dar forma ao corpo. A beleza de uma pessoa, no
sentido mais espiritual, não se encontra no corpo. Ela se encontra
na coreografia do corpo que dança a dança do símbolo que o possui.
Mas
há um momento em que os símbolos envelhecem e se tornam cascas
vazias. Vazias porque o canto que a vida cantava chegou ao final.
Quando a orquestra termina de tocar a sinfonia, fecham-se as
partituras e os instrumentos fazem silêncio, para que uma nova
partitura possa ser aberta.
O
Pássaro Encantado foi, por muitos anos, o meu símbolo. Não sei bem
por quê. O nascimento dos símbolos é evento misterioso. Talvez
porque a imagem de um pássaro simbolize a liberdade, como disse
Fernando Pessoa:
Ah,
quanta vez, na hora suave
Em
que me esqueço,
Vejo
passar um voo de ave
E
me entristeço!
[...]
Por
que ter asas simboliza
A
liberdade
Que
a vida nega e a alma precisa?
Sei
que me invade
[...]
Um
desejo, não de ser ave,
Mas
de poder
Ter
não sei quê do voo suave
Dentro
em meu ser.
Quando
o Pássaro nasceu, acho que era isso. Mas não só isso. Havia o
amor... A estória foi escrita para uma menina que tinha medo das
minhas ausências. Ela me amava e sentia saudades. E eu a amava e
sentia saudades...
Como
disse, os símbolos se esgotam. Posso imaginar que Bashô tivesse
percebido isso ao escrever, no seu haicai, que a cigarra se esgotou
toda com o seu canto. Tudo o que é belo tem de morrer – um poema
morre, uma sonata morre, o dia morre...
O
Pássaro Encantado cantou-se todo. Estará então condenado a ser
como a casca vazia da cigarra? Para fazer de novo viver o Pássaro
Encantado, tenho de invocar um símbolo de bruxedo, tirado da
tradição religiosa: o da morte e da ressurreição.
Nietzsche
percebeu: “Somente onde há sepulturas há também ressurreições”.
Goethe também percebeu: “Morre e transforma-te”. A vida, para se
renovar, tem de passar pela morte. Como na música. Chegado o fim da
peça musical – lembro-me da Quinta sinfonia de
Tchaikóvski”, que termina morrendo –, vem o silêncio. Acabou.
Nada mais há a ser dito.
Acabou?
Não. Na sepultura silenciosa da partitura fechada, a música espera
pela ressurreição. Haverá um dia em que a sua beleza, agora em
silêncio, se fará ouvir de novo. O silêncio é o tempo da espera.
A
Adélia entende:
Eu
sempre sonho que uma coisa gera,
nunca
nada está morto.
O
que não parece vivo, aduba.
O
que parece estático, espera.
O
Pássaro que parecia morto adubava; o que parecia estático esperava.
Aconteceu
então o que acontece com a beleza da música, que parece morta no
silêncio da partitura fechada. A partitura se abriu e a música se
repetiu. Tudo o que é belo deseja a repetição. Mas toda repetição
é primeiro morte, para depois ser ressurreição. O que morreu é
esquecido para que uma nova vida possa nascer.
E
a estória começou a ser contada como da primeira vez... Mas o corpo
ressuscitado nunca é igual ao corpo sepultado. Ele ressuscita
diferente, transfigurado. As palavras eram as mesmas, mas a melodia
era outra...
***
“Era
uma vez uma Menina que tinha um Pássaro como seu melhor amigo. Ele
era um Pássaro diferente de todos os demais: era Encantado...”
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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