Daqui
de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da Cadeia onde
estou preso, vejo os arredores da nossa indomável Vila sertaneja. O
Sol treme na vista, reluzindo nas pedras mais próximas. Da terra
agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado, parece
desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser o arquejo de
gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas,
assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como
pode ser a respiração dessa Fera estranha, a Terra — esta
Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça piolhosa dos homens. Pode
ser, também, a respiração fogosa dessa outra Fera, a Divindade,
Onça-Malhada que é dona da Parda, e que, há milênios, acicata a
nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.
*
* *
Daqui
de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face, de Paraíso,
Purgatório e Inferno, do Sertão. Para os lados do poente, longe,
azulada pela distância, a Serra do Pico, com a enorme e alta pedra
que lhe dá nome. Perto, no leito seco do Rio Taperoá, cuja areia é
cheia de cristais despedaçados que faíscam ao Sol, grandes
Cajueiros, com seus frutos vermelhos e cor de ouro. Para o outro
lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande e Estaca-Zero,
vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos de
Marmeleiros secos e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte,
vejo pedras, lajedos e serrotes, cercando a nossa Vila e cercados,
eles mesmos, por Favelas espinhentas e Urtigas, parecendo enormes
Lagartos cinzentos, malhados de negro e ferrugem; Lagartos venenosos,
adormecidos, estirados ao Sol e abrigando Cobras, Gaviões e outros
bichos ligados à crueldade da Onça do Mundo.
Aí,
talvez por causa da situação em que me encontro, preso na Cadeia, o
Sertão, sob o Sol fagulhante do meio-dia, me aparece, ele todo, como
uma enorme Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras
pedregosas que lhe servissem de muro inexpugnável a apertar suas
fronteiras, estivéssemos todos nós, aprisionados e acusados,
aguardando as decisões da
Justiça;
sendo que, a qualquer momento, a Onça-Malhada do Divino pode se
precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e consagrar pela
destruição.
*
* *
É
meio-dia, agora, em nossa Vila de Taperoá. Estamos a 9 de Outubro de
1938. É tempo de seca, e aqui, dentro da Cadeia onde estou preso, o
calor começou a ficar insuportável desde as dez horas da manhã.
Pedi então ao Cabo Luís Riscão que me deixasse sair lá de baixo,
da cela comum, e vir cá para cima, varrer o chão de madeira do
pavimento superior, onde funcionava, até o fim do ano passado, a
Câmara Municipal. O Cabo Luís Riscão é filho daquele outro, de
nome igual, que morreu, aqui mesmo na Cadeia, em 1912, na chamada
“Guerra de Doze”, num tiroteio da Polícia contra as tropas de
Sertanejos que, a mando de meu tio e Padrinho, Dom Pedro Sebastião
Garcia-Barretto, atacaram, tomaram e saquearam nossa Vila. Tem,
portanto, o Cabo todos os motivos de má vontade contra mim. Mas como
sou “de família de certa ordem” e lhe dou pequenas gorjetas,
abranda essa má vontade de vez em quando. Hoje, por exemplo, quando
fiz o pedido, ele me concedeu o cobiçado privilégio de
preso-varredor. Abriu a porta de grades enferrujadas, trouxe-me para
cá, deixou-me aqui sozinho, trancado, varrendo, e foi-se a cochilar
na rede da sua casa, que fica no quintal da Cadeia. Aproveitei,
então, o fato de ter terminado logo a tarefa e deitei-me no chão de
tábuas, perto da parede, pensando, procurando um modo hábil de
iniciar este meu Memorial, de modo a comover o mais possível com a
narração dos meus infortúnios os corações generosos e
compassivos que agora me ouvem. Pensei: — Este, como as Memórias
de um Sargento de Milícias, é um “romance” escrito por “um
Brasileiro”. Posso começá-lo, portanto, dizendo que era, e é,
“no tempo do Rei”. Na verdade, o tempo que decorre entre 1935 e
este nosso ano de 1938 é o chamado “Século do Reino”, sendo eu,
apesar de preso, o Rei de quem aí se fala.
Depois,
porém, cheguei à conclusão de que, além de anunciar o tempo, eu
devo ser claro também sobre o local onde sucederam todos os
acontecimentos que me trouxeram à Cadeia. Não tendo muitas ideias
próprias, lembrei-me então de me valer de outro dos meus Mestres e
Precursores, o genial escritor-brasileiro Nuno Marques Pereira. Como
todos sabem, o “romance” dele, publicado em 1728, intitula-se
Compêndio Narrativo do Peregrino da América Latina. Ora,
este meu livro é, de certa forma, um Compêndio Narrativo do
Peregrino do Brasil. Por isso, adaptando ao nosso caso as
palavras iniciais de Nuno Marques Pereira, falo do modo que segue
sobre o lugar onde se passou a nossa estranha Desaventura: “Uns
doze graus abaixo da Linha Equinocial, aqui onde se encontra a Terra
do Nordeste metida no Mar, mas entrando-se umas cinquenta léguas
para o Sertão dos Cariris Velhos da Paraíba do Norte, num planalto
pedregoso e espinhento onde passeiam Bodes, Jumentos e Gaviões sem
outro roteiro que os serrotes de pedra cobertos de coroas-de-frade e
mandacarus; aqui, nesta bela Concha, sem água mas cheia de fósseis
e velhos esqueletos petrificados, vê-se uma rica Pérola, engastada
em fino Ouro, que é a muito nobre e sempre leal Vila da Ribeira do
Taperoá, banhada pelo rio do mesmo nome.” Ora, eu, Dom Pedro Dinis
Ferreira-Quaderna, sou o mesmo Dom Pedro IV, cognominado “O
Decifrador”, Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe, Profeta da
Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do
Brasil. Por outro lado, consta da minha certidão de nascimento ter
nascido eu na Vila de Taperoá. É por isso, então, que pude começar
dizendo que neste ano de 1938 estamos ainda “no tempo do Rei”, e
anunciar que a nobre Vila sertaneja onde nasci é o palco da terrível
“desaventura” que tenho a contar.
*
* *
Para
ser mais exato, preciso explicar ainda que meu “romance” é,
mais, um Memorial que dirijo à Nação Brasileira, à guisa de
defesa e apelo, no terrível processo em que me vejo envolvido. Para
que ninguém julgue que sou um impostor vulgar, devo finalmente
esclarecer que, infeliz e desgraçado como estou agora, preso aqui
nesta velha Cadeia da nossa Vila, sou, nada mais, nada menos, do que
descendente, em linha masculina e direta, de Dom João
Ferreira-Quaderna, mais conhecido como El-Rei Dom João II, O
Execrável, homem sertanejo que, há um século, foi Rei da Pedra do
Reino, no Sertão do Pajeú, na fronteira da Paraíba com Pernambuco.
Isto significa que sou descendente, não daqueles reis e imperadores
estrangeirados e falsificados da Casa de Bragança, mencionados com
descabida insistência na História Geral do Brasil, de
Varnhagen: mas sim dos legítimos e verdadeiros Reis brasileiros, os
Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino do Sertão, que
cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do Brasil, de 1835
a 1838, transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança de
sangue e decreto divino.
*
* *
Agora,
preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha
vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo
grotescos e gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho.
Talvez por isso, o mundo me pareça uma mesa e a vida um jogo, onde
se cruzam fidalgos Reis-de-Ouro com castanhas Damas-de-Espada, onde
passam Ases, Peninchas e Curingas, governados pelas regras
desconhecidas de alguma velha Canastra esquecida. É por isso também
que, do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de
1938 — faminto, esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos
sofrimentos aos 41 anos de idade — dirijo-me a todos os
Brasileiros, sem exceção; mas especialmente, através do Supremo
Tribunal, aos magistrados e soldados — toda essa raça ilustre que
tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-me, outrossim, aos
escritores brasileiros, principalmente aos que sejam Poetas-escrivães
e Acadêmicos-fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha, o que faço
aqui, expressamente, por intermédio da Academia Brasileira, esse
Supremo Tribunal das Letras.
Sim!
Nesse estranho processo, a um tempo político e literário, ao qual
estou sendo submetido por decisão da Justiça, este é um pedido de
clemência, uma espécie de confissão geral, uma apelação — um
apelo ao coração magnânimo de Vossas Excelências. E, sobretudo,
uma vez que as mulheres têm sempre o coração mais brando, esta é
uma solicitação dirigida aos brandos peitos das mulheres e filhas
de Vossas Excelências, às brandas excelências de todas as mulheres
que me ouvem.
Escutem,
pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha terrível
história de amor e de culpa; de sangue e de justiça; de
sensualidade e violência; de enigma, de morte e disparate; de lutas
nas estradas e combates nas Caatingas; história que foi a suma de
tudo o que passei e que terminou com meus costados aqui, nesta Cadeia
Velha da Vila Real da Ribeira do Taperoá, Sertão dos Cariris Velhos
da Capitania e Província da Paraíba do Norte.
Ariano Suassuna, in Romance D'A Pedra do Reino
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