Nietzsche
amava os aforismos. Aforismos são como relâmpagos – instantâneos,
acontecem em segundos, mas iluminam os céus. Um curtíssimo aforismo
lança luz sobre uma verdade imensa. Nada explica. Nada prova. Apenas
mostra. O seu simples enunciado é o bastante para convencer. Diante
de um aforismo a mente para, e de repente, brotando da sua
simplicidade, o sentido se revela.
De
todos os aforismos que Nietzsche escreveu, um dos mais misteriosos é
este: “Perdoar o que você fez comigo é fácil. Mas como posso
perdoá-la por aquilo que você fez consigo mesma?”.
O
filósofo dizia que os piores leitores de aforismos são aqueles que,
partindo do aforismo – que é uma afirmação abstrata e universal
–, tentam adivinhar a situação de vida da qual ele nasceu. Vou me
comportar como um mau leitor de aforismos.
Vou
me atrever a tentar adivinhar a situação na vida de Nietzsche que o
provocou. Acho que esse aforismo ilumina uma experiência amorosa que
se desfez, possivelmente a paixão de Nietzsche por Lou Salomé. Lou
Salomé era uma mulher linda, fascinante, inteligente, sedutora,
livre, por quem qualquer homem se apaixonaria. Nietzsche se apaixonou
e pensou que ela o amava. Mas ela não o amava...
Vou
então imaginar um monólogo, o apaixonado dirigindo-se à mulher do
seu amor. Mas poderia ser da apaixonada, dirigindo-se ao homem do seu
amor.
“Minha
querida, minha rosa. Eu te amo por seres uma rosa vermelha e
perfumada. Tu és perfeita. Meu coração se derrete de felicidade
quando te vê e sente. Queria que a eternidade fosse assim, eu te
contemplando, eu sentindo o teu perfume. Eu estaria feliz só de te
ver.
Sou
como o Pequeno Príncipe, que amava uma rosa frágil que tinha apenas
um espinho para protegê-la. Ele a amava tanto que pensava que ela
fosse a única rosa do universo. Longe dela, ele desejava que ela
tivesse muitos espinhos, para se defender do carneiro que poderia
comê-la.
Todas
as rosas têm espinhos. Tu também, minha rosa, tens espinhos. Eles
perfuram a carne, cortam, e o sangue escorre. Dói... Mas não fazem
isso por maldade. Os teus espinhos me ferem para te proteger. Por
isso eu te perdoo, perdoo toda a dor e todo o sangue que tu me
infliges. É fácil te perdoar. Perdoo para que a tua beleza não
seja estragada. Porque é a tua beleza que me dá alegria. Olhando
para ti e vendo o teu sorriso, me sinto bonito...”
***
A
bela imagem tem um poder bruxo – ela lança um encantamento sobre
aquele que a contempla. O apaixonado, como numa possessão de
feitiçaria, é seu prisioneiro, está possuído por ela, fascinado.
Aos seus olhos, ela é diferente de todas as outras, perfeita. E não
é isso que dizem as mocinhas apaixonadas, que “ele é diferente de
todos os outros”?
Por
isso ele perdoa sempre os espinhos dela. Os espinhos não pertencem à
imagem. São acidentais. E o perdão é o ato pelo qual o apaixonado
raspa todas as imperfeições da imagem amada, para que ela continue
bela e perfeita. Porque, se ela não fosse bela e perfeita, ele não
poderia amá-la.
***
“Mas
há algo que não posso perdoar: aquilo que tu, minha rosa, fizeste
contigo mesma...
Como
aceitar essa transformação que, de repente, aconteceu na tua
imagem? As tuas pétalas já não têm nem o mesmo perfume nem a
mesma cor! É bem verdade que teus espinhos caíram. Eles não me
ferem mais. Assim, não tenho ferimentos a perdoar. O que me fere e
que não posso perdoar é aquilo que fizeste contigo mesma, e não
comigo...
O
que não posso perdoar não é o que me fazes, mas aquilo em que te
transformaste. Já não és a imagem que eu amava! Aconteceu que
dentro da tua bela imagem havia uma outra escondida, que
repentinamente apareceu. Agora vejo que és uma outra. O teu sorriso
– já não acredito nele. Ele esconde algo – talvez para me
proteger de ver a tua outra face. Tuas pétalas já não são
transparentes. Onde se encontra a outra que foste? Está em outro
lugar.
E
é então pelo amor com que amava a tua imagem que não posso perdoar
a que tenho agora diante dos meus olhos. Tenho saudade da tua outra
imagem, que não existe mais. Ela era bela, perfeita... Eu ficava
feliz por perdoar os ferimentos dos teus espinhos...”.
***
Os
monges trabalhavam no cemitério do mosteiro. Cavavam as sepulturas
para desenterrar os mortos e transferi-los para um outro campo santo.
Era monótono, porque os mortos não oferecem surpresas. Aconteceu,
entretanto, o inesperado. Quando os monges abriram a sepultura onde
estava enterrado o monge Zózima, que muitos diziam ter sido santo,
viram que o seu corpo não fora atingido pela corrupção. Estava
perfeito, como no dia do enterro. Exceto por um pontinho no nariz,
onde a corrupção se alojara.
É
com esse relato que Roland Barthes inicia sua descrição da
degradação da imagem amorosa no livro Fragmentos de um discurso
amoroso. A bela imagem, a princípio lisa e deslizante, torna-se
amarrotada e áspera quando tocada pela corrupção.
O
que dá início a essa transformação perversa da imagem? Talvez um
sorriso que discretamente sugere uma pitada de crueldade, ou uma
dureza na voz que revela um subterrâneo escondido de raiva, ou uma
máscara fácil que tem algo de ridículo, ou um gesto que deixa
entrever um canto mesquinho da alma... E essa pequena e quase
imperceptível transformação provoca um susto naquele que observa.
E ele diz, silenciosamente: “Essa que agora vejo não é aquela que
amo. É uma estranha”. O avesso escondido escorre então para o
lado direito, amarrotando a bela imagem.
***
“Assim,
minha querida, continuo apaixonado. Mas não por ti. Amo uma imagem
que não existe. A imagem da rosa vermelha e perfumada com todos os
seus espinhos. E continuo a perdoá-la para que ela, na minha
memória, continue a ser o objeto perfeito do meu amor. Continuo a
amá-la, agora não mais como presença, mas como ausência, ser da
saudade. A saudade, perfume da ausência, é o único lugar onde
posso guardá-la perfeita como foi. A rosa que amei não existe mais.
Amo o que não existe. Não é a ti que amo...
Compreendes
agora por que é fácil perdoar o que fizeste comigo, mas é
impossível perdoar o que fizeste contigo mesma? Tu és outra...”
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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