quinta-feira, 7 de julho de 2022

A decomposição da imagem amada

Nietzsche amava os aforismos. Aforismos são como relâmpagos – instantâneos, acontecem em segundos, mas iluminam os céus. Um curtíssimo aforismo lança luz sobre uma verdade imensa. Nada explica. Nada prova. Apenas mostra. O seu simples enunciado é o bastante para convencer. Diante de um aforismo a mente para, e de repente, brotando da sua simplicidade, o sentido se revela.
De todos os aforismos que Nietzsche escreveu, um dos mais misteriosos é este: “Perdoar o que você fez comigo é fácil. Mas como posso perdoá-la por aquilo que você fez consigo mesma?”.
O filósofo dizia que os piores leitores de aforismos são aqueles que, partindo do aforismo – que é uma afirmação abstrata e universal –, tentam adivinhar a situação de vida da qual ele nasceu. Vou me comportar como um mau leitor de aforismos.
Vou me atrever a tentar adivinhar a situação na vida de Nietzsche que o provocou. Acho que esse aforismo ilumina uma experiência amorosa que se desfez, possivelmente a paixão de Nietzsche por Lou Salomé. Lou Salomé era uma mulher linda, fascinante, inteligente, sedutora, livre, por quem qualquer homem se apaixonaria. Nietzsche se apaixonou e pensou que ela o amava. Mas ela não o amava...
Vou então imaginar um monólogo, o apaixonado dirigindo-se à mulher do seu amor. Mas poderia ser da apaixonada, dirigindo-se ao homem do seu amor.
Minha querida, minha rosa. Eu te amo por seres uma rosa vermelha e perfumada. Tu és perfeita. Meu coração se derrete de felicidade quando te vê e sente. Queria que a eternidade fosse assim, eu te contemplando, eu sentindo o teu perfume. Eu estaria feliz só de te ver.
Sou como o Pequeno Príncipe, que amava uma rosa frágil que tinha apenas um espinho para protegê-la. Ele a amava tanto que pensava que ela fosse a única rosa do universo. Longe dela, ele desejava que ela tivesse muitos espinhos, para se defender do carneiro que poderia comê-la.
Todas as rosas têm espinhos. Tu também, minha rosa, tens espinhos. Eles perfuram a carne, cortam, e o sangue escorre. Dói... Mas não fazem isso por maldade. Os teus espinhos me ferem para te proteger. Por isso eu te perdoo, perdoo toda a dor e todo o sangue que tu me infliges. É fácil te perdoar. Perdoo para que a tua beleza não seja estragada. Porque é a tua beleza que me dá alegria. Olhando para ti e vendo o teu sorriso, me sinto bonito...”

***

A bela imagem tem um poder bruxo – ela lança um encantamento sobre aquele que a contempla. O apaixonado, como numa possessão de feitiçaria, é seu prisioneiro, está possuído por ela, fascinado. Aos seus olhos, ela é diferente de todas as outras, perfeita. E não é isso que dizem as mocinhas apaixonadas, que “ele é diferente de todos os outros”?
Por isso ele perdoa sempre os espinhos dela. Os espinhos não pertencem à imagem. São acidentais. E o perdão é o ato pelo qual o apaixonado raspa todas as imperfeições da imagem amada, para que ela continue bela e perfeita. Porque, se ela não fosse bela e perfeita, ele não poderia amá-la.

***

Mas há algo que não posso perdoar: aquilo que tu, minha rosa, fizeste contigo mesma...
Como aceitar essa transformação que, de repente, aconteceu na tua imagem? As tuas pétalas já não têm nem o mesmo perfume nem a mesma cor! É bem verdade que teus espinhos caíram. Eles não me ferem mais. Assim, não tenho ferimentos a perdoar. O que me fere e que não posso perdoar é aquilo que fizeste contigo mesma, e não comigo...
O que não posso perdoar não é o que me fazes, mas aquilo em que te transformaste. Já não és a imagem que eu amava! Aconteceu que dentro da tua bela imagem havia uma outra escondida, que repentinamente apareceu. Agora vejo que és uma outra. O teu sorriso – já não acredito nele. Ele esconde algo – talvez para me proteger de ver a tua outra face. Tuas pétalas já não são transparentes. Onde se encontra a outra que foste? Está em outro lugar.
E é então pelo amor com que amava a tua imagem que não posso perdoar a que tenho agora diante dos meus olhos. Tenho saudade da tua outra imagem, que não existe mais. Ela era bela, perfeita... Eu ficava feliz por perdoar os ferimentos dos teus espinhos...”.

***

Os monges trabalhavam no cemitério do mosteiro. Cavavam as sepulturas para desenterrar os mortos e transferi-los para um outro campo santo. Era monótono, porque os mortos não oferecem surpresas. Aconteceu, entretanto, o inesperado. Quando os monges abriram a sepultura onde estava enterrado o monge Zózima, que muitos diziam ter sido santo, viram que o seu corpo não fora atingido pela corrupção. Estava perfeito, como no dia do enterro. Exceto por um pontinho no nariz, onde a corrupção se alojara.
É com esse relato que Roland Barthes inicia sua descrição da degradação da imagem amorosa no livro Fragmentos de um discurso amoroso. A bela imagem, a princípio lisa e deslizante, torna-se amarrotada e áspera quando tocada pela corrupção.
O que dá início a essa transformação perversa da imagem? Talvez um sorriso que discretamente sugere uma pitada de crueldade, ou uma dureza na voz que revela um subterrâneo escondido de raiva, ou uma máscara fácil que tem algo de ridículo, ou um gesto que deixa entrever um canto mesquinho da alma... E essa pequena e quase imperceptível transformação provoca um susto naquele que observa. E ele diz, silenciosamente: “Essa que agora vejo não é aquela que amo. É uma estranha”. O avesso escondido escorre então para o lado direito, amarrotando a bela imagem.

***

Assim, minha querida, continuo apaixonado. Mas não por ti. Amo uma imagem que não existe. A imagem da rosa vermelha e perfumada com todos os seus espinhos. E continuo a perdoá-la para que ela, na minha memória, continue a ser o objeto perfeito do meu amor. Continuo a amá-la, agora não mais como presença, mas como ausência, ser da saudade. A saudade, perfume da ausência, é o único lugar onde posso guardá-la perfeita como foi. A rosa que amei não existe mais. Amo o que não existe. Não é a ti que amo...
Compreendes agora por que é fácil perdoar o que fizeste comigo, mas é impossível perdoar o que fizeste contigo mesma? Tu és outra...”

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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