Narcisa
sempre dizia deve-se ter mais medo dos vivos que dos mortos, mas não
acreditávamos nela porque, em todos os filmes de terror, quem metia
medo eram os mortos, os zumbis, os possuídos. Mercedes morria de
medo dos demônios e eu, dos vampiros. Falávamos disso o tempo todo.
De possessões satânicas e de homens com presas que se alimentam do
sangue das meninas. Papai e mamãe nos compravam bonecas e livros de
contos de fada e nós recriávamos O exorcista com as bonecas e
imaginávamos que o príncipe encantado era na realidade um vampiro
que despertava Branca de Neve para convertê-la em morta-viva.
Durante o dia tudo bem, éramos corajosas, mas à noite pedíamos a
Narcisa que subisse para nos acompanhar. Papai não gostava que
Narcisa — ele a chamava a doméstica — dormisse no
nosso quarto, mas era inevitável: dizíamos que, se ela não viesse,
nós é que desceríamos para dormir no quarto da doméstica.
Isso, por exemplo, lhe dava medo. Mais que o demônio e os vampiros.
E então Narcisa, que tinha uns catorze anos, fingindo que
protestava, que não queria dormir conosco, dizia isto, que se deve
ter mais medo dos vivos que dos mortos. E achávamos uma estupidez,
pois como você pode ter mais medo, por exemplo, de Narcisa do que de
Reagan, a menina de O exorcista; ou do seu Pepe, o jardineiro,
do que de Salem ou de Demian, o filho do diabo; ou do papai do que do
Lobisomem? Absurdo.
Papai
e mamãe nunca estavam em casa, papai trabalhava e mamãe jogava
cartas, por isso Mercedes e eu podíamos ir todas as tardes, depois
do colégio, alugar os filmes de terror da videolocadora. O atendente
não nos dizia nada. Claro que sabíamos que na capa estava escrito
para maiores de dezesseis ou dezoito, mas o menino não nos dizia
nada. Tinha a cara cheia de espinhas e era muito gordo, estava sempre
com um ventilador apontando para o meio das pernas. A única vez que
falou conosco foi quando alugamos O iluminado. Olhou para a
capa, depois para nós e disse:
— Neste
filme há umas meninas iguaizinhas a vocês. As duas estão mortas,
quem as matou foi o pai delas.
Mercedes
agarrou minha mão. E assim ficamos, de mãos dadas, com o uniforme
idêntico, olhando para ele, até que nos entregou o filme.
Mercedes
era muito medrosa. Branquinha, franzina. Mamãe dizia que eu comia
tudo o que vinha pelo cordão umbilical, porque ela nasceu minúscula:
uma minhoquinha, e eu, ao contrário, parecia um touro. Usavam esta
palavra: touro. E o touro tinha que cuidar da minhoca, o que se podia
fazer? Às vezes, eu gostaria de ser a minhoca, mas isso era
impossível. Eu era o touro, e Mercedes, a minhoca. Com certeza,
Mercedes teria gostado de ser o touro uma vez ou outra, e não andar
sempre atrás de mim, à minha sombra, esperar que eu falasse e
simplesmente concordar.
— Eu
também.
Nunca
eu. Sempre eu também.
Mercedes
nunca quis ver filmes de terror, mas insisti porque uma garota do
colégio disse que eu não ia conseguir ver todos os filmes que ela
havia visto com o irmão mais velho porque eu não tinha irmão mais
velho, eu tinha Mercedes, famosa porque era cagona, e eu não
suportei aquilo e naquela tarde arrastei Mercedes até a
videolocadora e alugamos toda a série de A hora do pesadelo,
e, nessa noite e nas seguintes, tivemos que pedir a Narcisa que
subisse para dormir conosco, porque Freddy se enfia nos seus sonhos e
te mata no sonho e ninguém percebe, porque parece que você teve um
infarto ou se afogou com sua saliva, uma coisa normal, e então
ninguém nunca percebe que um monstro com dedos de facas afiadas é
que te matou.
Ter
certos irmãos é uma bênção. Ter certos irmãos é uma
condenação: foi isso que aprendemos nos filmes. E que sempre há um
irmão que salva o outro.
Mercedes
começou a ter pesadelos. Narcisa e eu fazíamos tudo que era
possível para silenciá-la, para que papai e mamãe não
percebessem. Eles me castigariam: os filmes de terror, tudo é culpa
do touro. Pobre minhoquinha, pobre Mercedita, que calvário ser irmã
de semelhante animal, de uma menina tão pouco menina, tão
indomável. Por que você não é mais parecida com a Mercedita, tão
boazinha, tão quietinha, tão dócil?
Os
pesadelos de Mercedes eram piores que qualquer um dos filmes que
víamos. Tinham a ver com o colégio, com as freiras, as freiras
possuídas pelo diabo, dançando peladas, tocando-se lá embaixo,
aparecendo no seu espelho enquanto você escovava os dentes ou quando
tomava banho. As freiras como Freddy, metidas nos seus sonhos. E nós
nunca tínhamos alugado um filme sobre aquilo.
— E
o que mais, Mercedes? — eu lhe perguntava, mas ela já não dizia
nada, só gritava.
Os
gritos de Mercedes perfuravam a pele. Pareciam uivos, arranhões,
mordidas, coisas animais. Quando ela abria os olhos, ainda continuava
lá, aonde quer que fosse lá, e Narcisa e eu a abraçávamos para
que voltasse, mas às vezes ela demorava muito para voltar e eu
pensava que mais uma vez, como quando estávamos na barriga da mamãe,
eu estava lhe roubando algo. Mercedes começou a emagrecer. Éramos
iguais, mas cada vez menos iguais, pois eu era cada vez mais touro, e
ela, cada vez mais minhoca: com olheiras, encurvada, ossuda.
Eu
nunca tive muito apreço pelas freiras do colégio nem elas por mim.
Quer dizer,nós nos detestávamos. Elas tinham um radar para as
almas díscolas, usavam essa frase, e eu era isso, mas não me
importava, díscola parecia com disco e com Coca-Cola, e eu adorava
as duas coisas. Eu odiava sua hipocrisia. Eram más e se fingiam de
santas. Elas me mandavam apagar todas as lousas do colégio, limpar a
capela, ajudar a madre superiora a fazer sua beneficência, que nada
mais era que repartir o que os outros, os nossos pais, doavam aos
pobres, ou seja, intermediar para ficar com uma boa fatia, comer
peixe do bom e dormir em edredom de plumas. E eu recebia castigo
atrás de castigo porque perguntava qual o motivo de darem arroz aos
pobres enquanto elas comiam corvina, e dizia que Nosso Senhor não
gostaria disso porque ele fez os peixes para todos. Mercedes apertava
meu braço e se punha a chorar. Mercedes se ajoelhava e rezava por
mim com os olhos completamente fechados. Parecia um anjinho. Enquanto
ela rezava a Ave-Maria, eu tinha vontade de fazer com que tudo se
paralisasse por completo, porque eu achava que a prece da minha irmã
era a única coisa que valia a pena no maldito mundo inteiro. As
freiras diziam aos meus pais que minha irmã era perfeita para fazer
parte da congregação, e eu a imaginava enclausurada naquela vida,
como uma prisão de roupa horrível e grilhão de crucifixo enorme:
não podia suportar aquilo.
Naquelas
férias, nossa menstruação desceu. Primeiro para Mercedes, depois
para mim. Foi Narcisa quem nos explicou como devíamos usar o
absorvente porque mamãe não estava em casa, e ela riu quando
começamos a andar como duas patas. Também nos disse, com todas as
letras, que aquele sangue significava que, com a ajuda de um homem,
já podíamos fazer bebês. Isso era absurdo. Ontem não podíamos
fazer uma coisa tão insana como criar uma criança, e hoje podíamos.
É mentira, dissemos a ela. E ela nos agarrou as duas pelos braços.
As mãos de Narcisa eram muito fortes, grandes, masculinas. As unhas,
longas e pontiagudas, eram capazes de abrir garrafas de refrigerante
sem necessidade de abridor. Narcisa era pequena em tamanho e idade,
apenas dois anos a mais que nós, mas parece que já tinha vivido
umas quatrocentas vidas a mais. Estava nos machucando quando disse
que agora sim que tínhamos que nos preocupar mais com os vivos que
com os mortos, que agora sim tínhamos que ter mais medo dos vivos
que dos mortos.
— Agora
vocês são mulheres — disse. — A vida não é mais uma
brincadeira.
Mercedes
começou a chorar. Não queria ser mulher. Eu também não, mas
preferia ser mulher do que ser touro.
Uma
noite, Mercedes teve um dos seus pesadelos. Já não eram freiras,
mas homens, homens sem rosto que brincavam com seu sangue menstrual e
o esfregavam pelo corpo e então surgiam por todos os lados bebês
monstruosos, pequeninos como ratos, que a comiam aos bocados. Não
havia maneira de tranquilizá-la. Fomos procurar Narcisa, mas a porta
do quartinho estava fechada por dentro. Escutamos ruídos. Depois
silêncio. Depois outra vez ruídos. Ficamos sentadas na cozinha, no
escuro, esperando-a. Quando por fim a porta se abriu, nos lançamos
sobre ela, necessitávamos tanto do seu abraço, suas mãos sempre
com cheiro de cebola e coentro, sua frase apaziguadora de que era
preciso ter mais medo dos vivos que dos mortos. A alguns centímetros
do seu corpo, percebemos que não era ela. Paramos aterrorizadas,
mudas, imóveis. O que havia entrado pela porta do quartinho não era
Narcisa. Nosso coração pulava como uma bomba. Havia algo distante e
próprio nessa silhueta que fez com que fôssemos tomadas por uma
sensação física de nojo e horror.
Demorei
para reagir, não consegui tapar a boca de Mercedes. Ela gritou.
Papai
deu uma bofetada em cada uma de nós e subiu calmamente as escadas.
Nem
Narcisa nem suas coisas amanheceram em casa.
María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos
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