segunda-feira, 18 de abril de 2022

Monstros

Narcisa sempre dizia deve-se ter mais medo dos vivos que dos mortos, mas não acreditávamos nela porque, em todos os filmes de terror, quem metia medo eram os mortos, os zumbis, os possuídos. Mercedes morria de medo dos demônios e eu, dos vampiros. Falávamos disso o tempo todo. De possessões satânicas e de homens com presas que se alimentam do sangue das meninas. Papai e mamãe nos compravam bonecas e livros de contos de fada e nós recriávamos O exorcista com as bonecas e imaginávamos que o príncipe encantado era na realidade um vampiro que despertava Branca de Neve para convertê-la em morta-viva. Durante o dia tudo bem, éramos corajosas, mas à noite pedíamos a Narcisa que subisse para nos acompanhar. Papai não gostava que Narcisa — ele a chamava a doméstica — dormisse no nosso quarto, mas era inevitável: dizíamos que, se ela não viesse, nós é que desceríamos para dormir no quarto da doméstica. Isso, por exemplo, lhe dava medo. Mais que o demônio e os vampiros. E então Narcisa, que tinha uns catorze anos, fingindo que protestava, que não queria dormir conosco, dizia isto, que se deve ter mais medo dos vivos que dos mortos. E achávamos uma estupidez, pois como você pode ter mais medo, por exemplo, de Narcisa do que de Reagan, a menina de O exorcista; ou do seu Pepe, o jardineiro, do que de Salem ou de Demian, o filho do diabo; ou do papai do que do Lobisomem? Absurdo.
Papai e mamãe nunca estavam em casa, papai trabalhava e mamãe jogava cartas, por isso Mercedes e eu podíamos ir todas as tardes, depois do colégio, alugar os filmes de terror da videolocadora. O atendente não nos dizia nada. Claro que sabíamos que na capa estava escrito para maiores de dezesseis ou dezoito, mas o menino não nos dizia nada. Tinha a cara cheia de espinhas e era muito gordo, estava sempre com um ventilador apontando para o meio das pernas. A única vez que falou conosco foi quando alugamos O iluminado. Olhou para a capa, depois para nós e disse:
Neste filme há umas meninas iguaizinhas a vocês. As duas estão mortas, quem as matou foi o pai delas.
Mercedes agarrou minha mão. E assim ficamos, de mãos dadas, com o uniforme idêntico, olhando para ele, até que nos entregou o filme.
Mercedes era muito medrosa. Branquinha, franzina. Mamãe dizia que eu comia tudo o que vinha pelo cordão umbilical, porque ela nasceu minúscula: uma minhoquinha, e eu, ao contrário, parecia um touro. Usavam esta palavra: touro. E o touro tinha que cuidar da minhoca, o que se podia fazer? Às vezes, eu gostaria de ser a minhoca, mas isso era impossível. Eu era o touro, e Mercedes, a minhoca. Com certeza, Mercedes teria gostado de ser o touro uma vez ou outra, e não andar sempre atrás de mim, à minha sombra, esperar que eu falasse e simplesmente concordar.
Eu também.
Nunca eu. Sempre eu também.
Mercedes nunca quis ver filmes de terror, mas insisti porque uma garota do colégio disse que eu não ia conseguir ver todos os filmes que ela havia visto com o irmão mais velho porque eu não tinha irmão mais velho, eu tinha Mercedes, famosa porque era cagona, e eu não suportei aquilo e naquela tarde arrastei Mercedes até a videolocadora e alugamos toda a série de A hora do pesadelo, e, nessa noite e nas seguintes, tivemos que pedir a Narcisa que subisse para dormir conosco, porque Freddy se enfia nos seus sonhos e te mata no sonho e ninguém percebe, porque parece que você teve um infarto ou se afogou com sua saliva, uma coisa normal, e então ninguém nunca percebe que um monstro com dedos de facas afiadas é que te matou.
Ter certos irmãos é uma bênção. Ter certos irmãos é uma condenação: foi isso que aprendemos nos filmes. E que sempre há um irmão que salva o outro.
Mercedes começou a ter pesadelos. Narcisa e eu fazíamos tudo que era possível para silenciá-la, para que papai e mamãe não percebessem. Eles me castigariam: os filmes de terror, tudo é culpa do touro. Pobre minhoquinha, pobre Mercedita, que calvário ser irmã de semelhante animal, de uma menina tão pouco menina, tão indomável. Por que você não é mais parecida com a Mercedita, tão boazinha, tão quietinha, tão dócil?
Os pesadelos de Mercedes eram piores que qualquer um dos filmes que víamos. Tinham a ver com o colégio, com as freiras, as freiras possuídas pelo diabo, dançando peladas, tocando-se lá embaixo, aparecendo no seu espelho enquanto você escovava os dentes ou quando tomava banho. As freiras como Freddy, metidas nos seus sonhos. E nós nunca tínhamos alugado um filme sobre aquilo.
E o que mais, Mercedes? — eu lhe perguntava, mas ela já não dizia nada, só gritava.
Os gritos de Mercedes perfuravam a pele. Pareciam uivos, arranhões, mordidas, coisas animais. Quando ela abria os olhos, ainda continuava lá, aonde quer que fosse lá, e Narcisa e eu a abraçávamos para que voltasse, mas às vezes ela demorava muito para voltar e eu pensava que mais uma vez, como quando estávamos na barriga da mamãe, eu estava lhe roubando algo. Mercedes começou a emagrecer. Éramos iguais, mas cada vez menos iguais, pois eu era cada vez mais touro, e ela, cada vez mais minhoca: com olheiras, encurvada, ossuda.
Eu nunca tive muito apreço pelas freiras do colégio nem elas por mim. Quer dizer,nós nos detestávamos. Elas tinham um radar para as almas díscolas, usavam essa frase, e eu era isso, mas não me importava, díscola parecia com disco e com Coca-Cola, e eu adorava as duas coisas. Eu odiava sua hipocrisia. Eram más e se fingiam de santas. Elas me mandavam apagar todas as lousas do colégio, limpar a capela, ajudar a madre superiora a fazer sua beneficência, que nada mais era que repartir o que os outros, os nossos pais, doavam aos pobres, ou seja, intermediar para ficar com uma boa fatia, comer peixe do bom e dormir em edredom de plumas. E eu recebia castigo atrás de castigo porque perguntava qual o motivo de darem arroz aos pobres enquanto elas comiam corvina, e dizia que Nosso Senhor não gostaria disso porque ele fez os peixes para todos. Mercedes apertava meu braço e se punha a chorar. Mercedes se ajoelhava e rezava por mim com os olhos completamente fechados. Parecia um anjinho. Enquanto ela rezava a Ave-Maria, eu tinha vontade de fazer com que tudo se paralisasse por completo, porque eu achava que a prece da minha irmã era a única coisa que valia a pena no maldito mundo inteiro. As freiras diziam aos meus pais que minha irmã era perfeita para fazer parte da congregação, e eu a imaginava enclausurada naquela vida, como uma prisão de roupa horrível e grilhão de crucifixo enorme: não podia suportar aquilo.
Naquelas férias, nossa menstruação desceu. Primeiro para Mercedes, depois para mim. Foi Narcisa quem nos explicou como devíamos usar o absorvente porque mamãe não estava em casa, e ela riu quando começamos a andar como duas patas. Também nos disse, com todas as letras, que aquele sangue significava que, com a ajuda de um homem, já podíamos fazer bebês. Isso era absurdo. Ontem não podíamos fazer uma coisa tão insana como criar uma criança, e hoje podíamos. É mentira, dissemos a ela. E ela nos agarrou as duas pelos braços. As mãos de Narcisa eram muito fortes, grandes, masculinas. As unhas, longas e pontiagudas, eram capazes de abrir garrafas de refrigerante sem necessidade de abridor. Narcisa era pequena em tamanho e idade, apenas dois anos a mais que nós, mas parece que já tinha vivido umas quatrocentas vidas a mais. Estava nos machucando quando disse que agora sim que tínhamos que nos preocupar mais com os vivos que com os mortos, que agora sim tínhamos que ter mais medo dos vivos que dos mortos.
Agora vocês são mulheres — disse. — A vida não é mais uma brincadeira.
Mercedes começou a chorar. Não queria ser mulher. Eu também não, mas preferia ser mulher do que ser touro.
Uma noite, Mercedes teve um dos seus pesadelos. Já não eram freiras, mas homens, homens sem rosto que brincavam com seu sangue menstrual e o esfregavam pelo corpo e então surgiam por todos os lados bebês monstruosos, pequeninos como ratos, que a comiam aos bocados. Não havia maneira de tranquilizá-la. Fomos procurar Narcisa, mas a porta do quartinho estava fechada por dentro. Escutamos ruídos. Depois silêncio. Depois outra vez ruídos. Ficamos sentadas na cozinha, no escuro, esperando-a. Quando por fim a porta se abriu, nos lançamos sobre ela, necessitávamos tanto do seu abraço, suas mãos sempre com cheiro de cebola e coentro, sua frase apaziguadora de que era preciso ter mais medo dos vivos que dos mortos. A alguns centímetros do seu corpo, percebemos que não era ela. Paramos aterrorizadas, mudas, imóveis. O que havia entrado pela porta do quartinho não era Narcisa. Nosso coração pulava como uma bomba. Havia algo distante e próprio nessa silhueta que fez com que fôssemos tomadas por uma sensação física de nojo e horror.
Demorei para reagir, não consegui tapar a boca de Mercedes. Ela gritou.
Papai deu uma bofetada em cada uma de nós e subiu calmamente as escadas.
Nem Narcisa nem suas coisas amanheceram em casa.

María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos

Nenhum comentário:

Postar um comentário