terça-feira, 12 de abril de 2022

Memórias de uma filha: Leslie Stephen, o filósofo em casa



Na fase em que os filhos estavam crescendo, os grandes dias da vida de meu pai tinham acabado. Suas façanhas nos rios e nas montanhas tinham se passado antes de eles nascerem. Relíquias delas podiam ser encontradas espalhadas pela sala – a taça de prata em cima da lareira do escritório; os enferrujados bordões de alpinista inclinados no canto contra a estante de livros; e ele falaria, até o fim de seus dias, dos grandes alpinistas e exploradores com uma mistura peculiar de admiração e inveja. Mas seus próprios dias de ação tinham acabado; e meu pai tinha de se contentar em perambular pelos vales da Suíça ou dar uma pequena caminhada pelas charnecas da Cornualha.
O fato de que perambular pelos vales da Suíça e dar pequenas caminhadas significava mais em seus lábios do que nos de outras pessoas está se tornando mais óbvio agora que alguns de seus amigos começam a dar suas próprias versões dessas aventuras. Ele saía após o café da manhã, sozinho ou com algum acompanhante. Voltava um pouco antes do jantar. Se a caminhada tivesse sido bem-sucedida, ele pegava o seu grande mapa e comemorava o feito, assinalando um novo atalho com tinta vermelha. E era inteiramente capaz, ao que parece, de caminhar a passos largos o dia todo pelas charnecas sem falar mais do que uma ou duas palavras com seu acompanhante. Por essa época, além disso, ele tinha terminado de escrever A história do pensamento inglês no século dezoito, que é considerada por alguns como sua obra-prima; e a Ciência da Ética – o livro que lhe interessava mais; e O parque de diversão da Europa, no qual pode ser encontrado o texto “O pôr do sol no Mont Blanc” – em sua própria opinião a melhor coisa que ele já escrevera.
Ele ainda escrevia diária e metodicamente, embora nunca por muito tempo. Em Londres, ele escrevia na sala grande do último andar da casa, com suas três grandes janelas. Escrevia quase deitado numa cadeira de balanço que ele jogava para trás e para frente, como um berço, e enquanto escrevia tirava baforadas de um pequeno cachimbo de cerâmica, com os livros espalhados num círculo em torno dele. O som surdo de um livro que caía no chão podia ser ouvido na sala de baixo. E muitas vezes, enquanto subia as escadas para o escritório com seu passo firme e regular, ele irrompia não numa canção, pois não era nada musical, mas numa estranha cantoria rítmica, pois versos de todos os tipos, todos “pura bobagem”, como ele dizia, e as mais sublimes palavras de Milton e Wordsworth não lhe saíam da memória, e o ato de caminhar ou escalar parecia inspirá-lo a recitar qualquer coisa que lhe desse na telha ou que combinasse com o seu estado de humor.
Mas era sua habilidade com os dedos que mais divertia os filhos antes que eles pudessem perambular nos seus calcanhares pelas aleias ou ler seus livros. Ele enfiava uma folha de papel entre as lâminas de uma tesoura e dali saltava um elefante, um veado ou um macaco, com trombas, chifres e rabos delicada e precisamente moldados. Ou, pegando um lápis, ele desenhava um animal atrás do outro – uma arte que ele praticava quase inconscientemente enquanto lia, de maneira que as folhas de guarda de seus livros estavam cheias de corujas e burros como se para ilustrar as exclamações “Oh, seu burro!” ou “Asno presunçoso” que ele costumava rabiscar impacientemente nas margens. Esses breves comentários, nos quais se pode encontrar o gérmen das frases mais moderadas de seus ensaios, lembram algumas das características de sua fala. Ele podia ser muito silencioso, como testemunharam seus amigos. Mas suas observações, feitas subitamente num tom de voz baixo entre as baforadas de seu cachimbo, eram extremamente eficazes. Às vezes, com uma só palavra – mas essa única palavra vinha acompanhada de um gesto das mãos – ele descartava o emaranhado de exageros que sua própria sobriedade parecia provocar. “Há 40.000.000 de mulheres solteiras apenas em Londres!”, informou-lhe uma vez Lady Ritchie. “Oh, Annie, Annie!”, exclamou meu pai em tons de escandalizada mas afetuosa repreensão. Mas Lady Ritchie, como se gostasse de ser repreendida, exagerava ainda mais na próxima visita.
As histórias que ele contava para divertir os filhos, sobre as aventuras nos Alpes – mas acidentes aconteciam apenas, explicava ele, se a pessoa fosse muito tola para desobedecer aos seus guias – ou sobre aquelas longas caminhadas, após uma das quais, de Cambridge a Londres num dia de calor, “Eu bebi, lamento dizer, bem mais do que devia”, eram contadas muito rapidamente, mas com uma curiosa capacidade para deixar a cena marcada na nossa mente. As coisas que ele não dizia estavam sempre presentes no pano de fundo. Assim, além disso, embora raramente contasse anedotas, e sua memória para fatos fosse ruim, quando ele descrevia uma pessoa – e ele tinha conhecido muitas pessoas, tanto famosas quanto obscuras – ele transmitia exatamente o que ele pensava dela em duas ou três palavras. E o que ele pensava podia ser o oposto do que outras pessoas pensavam. Ele tinha um jeito de desmanchar reputações estabelecidas e desconsiderar valores convencionais que podia ser desconcertante e às vezes, talvez, injurioso, embora ninguém respeitasse mais do que ele qualquer sentimento que lhe parecesse genuíno. Mas quando, subitamente abrindo seus olhos azuis e brilhantes, e despertando do que parecia ser uma completa abstração, ele dava sua opinião, era difícil desconsiderá-la. Tratava-se de um hábito, especialmente quando a surdez tornou-o inconsciente de que sua opinião podia ser ouvida, que tinha suas inconveniências.
Eu sou o mais facilmente entediado dos homens”, escreveu ele, sinceramente como sempre: e quando, como é inevitável numa família grande, alguma visita ameaçava ficar não apenas para o chá, mas também para a ceia, meu pai expressava sua ansiedade primeiro mexendo e remexendo uma certa mecha do cabelo. Depois, ele despejava, um pouco para si mesmo, um pouco para os poderes celestiais, mas facilmente audível, seu queixume: “Por que ele não vai embora? Por que ele não vai embora?”. Mas tal é o charme da simplicidade – e não dizia ele, também sinceramente, que “os chatos são o sal da terra”? – que os chatos raramente iam embora ou, se iam, perdoavam-no e tornavam a vir.
Talvez se tenha falado demasiadamente de seu silêncio; e colocado muita ênfase em sua reserva. Ele tinha paixão pelo pensamento claro; odiava a sentimentalidade e a efusão; mas isso não significava, de maneira alguma, que ele fosse frio ou imperturbável, perpetuamente crítico e condenatório. Pelo contrário, era sua capacidade de sentir fortemente e de expressar seu sentimento com vigor que às vezes o tornava uma companhia tão assustadora. Uma senhora, por exemplo, queixou-se do verão chuvoso que estava estragando sua temporada na Cornualha. Mas para o meu pai, embora ele nunca tivesse se considerado um democrata, a chuva significava que o trigo estava sendo empilhado; algum pobre homem estava sendo arruinado; e a energia com a qual ele expressara sua solidariedade – não com a senhora – deixou-a desconcertada. Ele tinha pelos agricultores e pescadores quase o mesmo respeito que tinha por alpinistas e exploradores. Assim, além disso, ele pouco falava de patriotismo, mas durante a Guerra da África do Sul – e ele odiava todas as guerras – ele acordava pensando que tinha ouvido os tiros no campo de batalha. Aliás, nem sua razão nem seu imperturbável bom senso contribuíam para convencê-lo de que uma criança podia estar atrasada para o jantar a não ser que tivesse sido ferida ou morta num acidente. E nem toda a sua matemática juntamente com um extrato bancário, que ele insistia dever ser detalhado ao extremo, conseguia persuadi-lo, na hora de assinar um cheque, de que a família toda não estava “mergulhada na ruína”, como ele gostava de dizer. As imagens que ele traçava a respeito da idade avançada e de ter-se a falência decretada, de homens de letra arruinados que têm de sustentar famílias grandes em casas pequenas em Wimbledon (ele era proprietário de uma casinha em Wimbledon) podiam ter convencido os que se queixam de suas frases contidas de que ele era capaz de exageros quando assim lhe conviesse.
Mas a atitude pouco sensata era superficial, como provava a rapidez com que ela se desvanecia. O talão de cheques era fechado; Wimbledon e a casa de correção eram esquecidos. Algum pensamento de caráter jocoso fazia com que ele desse um risinho abafado. Pegando o chapéu e o bordão, chamando o cachorro e a filha, ele saía a caminhar pelos Kensington Gardens, onde ele tinha caminhado quando garoto, onde o irmão, Fitzjames, e ele tinham feito belas reverências à jovem rainha Vitória e ela lhes tinha feito um ligeiro aceno, e ia adiante, rodeando a Serpentine, em direção ao Hyde Park Corner, onde ele havia uma vez saudado o próprio grande Duque; e depois de volta à casa. Ele não era, nesse momento, nada “assustador”; ele era muito simples, muito confiável; e seu silêncio, embora pudesse continuar intacto desde o Round Pound até o Marble Arch, era curiosamente pleno de significado, como se estivesse pensando alto sobre poesia e filosofia e as pessoas que ele tinha conhecido.
Ele próprio era o mais abstêmio dos homens. Fumava cachimbo o tempo todo, mas nunca um charuto. Usava as roupas até ficarem demasiadamente rotas para serem suportadas; e mantinha suas opiniões antiquadas e bastante puritanas a respeito do vício da luxúria e do pecado da ociosidade. As relações entre pais e filhos têm hoje uma liberdade que teriam sido impossíveis com meu pai. Ele esperava certo padrão de comportamento, inclusive de cerimônia, na vida familiar. Mas se liberdade significa o direito de ter os seus próprios pensamentos e seguir as suas próprias metas, então ninguém respeitava a liberdade – na verdade, insistia nela – mais completamente do que ele. Os filhos, com exceção do exército e da marinha, podiam seguir a profissão que quisessem; as filhas, embora ele valorizasse muito pouco a educação superior para as mulheres, deviam ter a mesma liberdade. Se em algum momento ele repreendia severamente uma filha por fumar um cigarro – fumar não era, em sua opinião, um hábito adequado para o outro sexo – ela só precisava perguntar-lhe se ela podia se tornar uma pintora para ele lhe assegurar que, desde que ela levasse seu trabalho a sério, ele lhe daria todo o apoio possível. Ele não tinha nenhum amor especial pela pintura; mas ele mantinha sua palavra. Uma liberdade como essa valia por mil cigarros.
Era a mesma coisa com o problema talvez mais difícil da literatura. Mesmo hoje pode haver pais que questionem o acerto de permitir que uma garota de 15 anos vasculhe à vontade uma biblioteca vasta e sem qualquer censura. Mas meu pai permitia. Havia certos fatos... ele lhes fazia referência muito brevemente, muito timidamente. Entretanto, “leia o que quiser”, dizia ele, e todos os seus livros, “ensebados e sem valor”, como ele gostava de dizer, mas eles certamente eram muitos e variados, eram para ser desfrutados sem lhe pedir permissão. Ler o que a gente gostava porque gostava, nunca para fazer de conta que admirava o que a gente não admirava – esta era sua única lição sobre a arte da leitura. Escrever com o mínimo possível de palavras, tão claramente quanto possível, exatamente o que se queria dizer – esta era sua única lição sobre a arte da escrita. O resto devia ser aprendido por própria conta. Contudo, uma criança devia ser extremamente infantil para não sentir que esse era o ensinamento de um homem de grande erudição e vasta experiência, embora ele nunca impusesse suas próprias visões ou alardeasse seu próprio conhecimento. Pois, como observava seu alfaiate quando via meu pai passar por sua loja na Bond Street: “Ali vai um cavalheiro que veste boas roupas sem sabê-lo”.
Naqueles últimos anos, tornando-se cada vez mais solitário e surdo, ele às vezes se dizia um fracasso como escritor: ele tinha sido “bom em muita coisa mas exímio em nenhuma”. Mas tenha sido ou não um bom escritor, ele deixou uma impressão notável de si mesmo nas mentes dos amigos. Meredith o via, na juventude, como “Apolo transformado num monge em regime de jejum”; Thomas Hardy, anos mais tarde, olhava para a “figura magra e desolada” do monte Schreckhorn e pensava nele,

Que escalou seu pico com vida e corpo em risco,
Levado talvez por vagas imaginações
De semelhanças com sua personalidade
Em sua estranha melancolia, penetrantes luzes e porte austero.

Mas o elogio que ele teria valorizado mais, pois, embora fosse agnóstico, ninguém acreditava mais profundamente no valor das relações humanas, teria sido o tributo de Meredith após sua morte: “Ele era, na minha opinião, o único homem digno de ter esposado tua mãe”. E Lowell, quando o designou “L. S., o mais amável dos homens”, foi quem melhor descreveu a qualidade que o torna, após todos esses anos, inesquecível.

Virgilia Woolf, in O sol e o peixe

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