… onde
pululam vermes de animais e
plantas
e subjaz um erotismo criador genésico.
M.
Cavalcanti Proença
Por
vezes, nas proximidades dos brejos ressecos, se encontram arraias
enterradas. Quando as águas encurtam nos brejos, a arraia escolhe
uma terra propícia, pousa sobre ela como um disco, abre com as suas
asas uma cama, faz chão úbere por baixo — e se enterra. Ali vai
passar o período da seca. Parece uma roda de carreta adernada.
Com
pouco, por baixo de suas abas, lateja um agroval de vermes, cascudos,
girinos e tantas espécies de insetos e parasitas, que procuram o
sítio como um ventre.
Ali,
por debaixo da arraia, se instaura uma química de brejo. Um útero
vegetal, insetal, natural. A troca de linfas, de reima, de rúmen que
ali se instaura é como um grande tumor que lateja.
Faz-se
debaixo da arraia a miniatura de um brejo. A vida que germinava no
brejo transfere-se para o grande ventre preparado pela matrona
arraia. É o próprio gromel dos cascudos!
Penso
na troca de favores que se estabelece; no mutualismo; no amparo que
as espécies se dão. Nas descargas de ajudas; no equilíbrio que ali
se completa entre os rascunhos de vida dos seres minúsculos. Entre
os corpos truncados. As teias ainda sem aranha. Os olhos ainda sem
luz. As penas sem movimento. Os remendos de vermes. Os bulbos de
cobras. Arquétipos de carunchos.
Penso
nos embriões dos atos. Uma boca disforme de rapa-canoa que começa a
querer se grudar nas coisas. Rudimentos rombudos de um olho de
árvore. Os indícios de ínfimas sociedades. Os liames primordiais
entre paredes e lesmas. Também os germes das primeiras ideias de uma
convivência entre lagartos e pedras. O embrião de um muçum sem
estames, que renega ter asas. Antepassados de antúrios e borboletas
que procuram uma nesga de sol.
Penso
num comércio de frisos e de asas, de sucos de sêmen e de pólen, de
mudas de escamas, de pus e de sementes. Um comércio de cios e cantos
virtuais; de gosma
e
de lêndeas; de cheiro de íncolas e de rios cortados. Comércio de
pequenas jias e suas conas redondas. Inacabados orifícios de tênias
implumes. Um comércio corcunda de armaus e de traças; de folhas
recolhidas por formigas; de orelhas-de-pau ainda em larva. Comércio
de hermafroditas de instintos adesivos. As veias rasgadas de um
escuro besouro. O sapo rejeitando sua infame cauda. Um comércio de
anéis de escorpiões e sementes de peixe.
E
ao cabo de três meses de trocas e infusões — a chuva começa a
descer. E a arraia vai levantar-se. Seu corpo deu sangue e bebeu. Na
carne ainda está embutido o fedor de um carrapato. De novo ela
caminha para os brejos refertos. Girinos pretos de rabinhos e olhos
de feto fugiram do grande útero, e agora já fervem nas águas das
chuvas.
É
a pura inauguração de um outro universo. Que vai corromper,
irromper, irrigar e recompor a natureza.
Uma
festa de insetos e aves no brejo!
Manoel de Barros, in Livro de pré-coisas
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