O
professor Teodoro não era católico, embora batizado. Até quis
fazer primeira comunhão quando, aos nove anos, ouviu os amigos
falarem sobre isso, mas a mãe lhe disse que era melhor ir pra
capoeira. Gente fina, a Dona Neide.
Não
só não era católico como andava puto da vida com aquelas
discussões vintage sobre a formação tradicional da família,
sobre o direito à vida a qualquer custo, sobre a legalidade divina
dos métodos anticoncepcionais. Andava bem puto, por sinal, com
aquele papa, aquela igreja, aquilo tudo.
Teodoro
era tão polêmico quanto querido. Professor de Comunicação em uma
pequena faculdade no Rio, criava laços com os alunos que não se
desatavam nem quando dava enrosco. Era aquele tipo de professor de
quem os alunos se lembravam até mesmo nos momentos bons.
Entre
as dezenas de presentes deliciosamente óbvios que recebia –
chocolates, espumas de barbear, canetas, pencas de bananas, meias,
réguas, paninhos de limpar óculos –, um dia recebeu o inesperado.
O aluno deu-lhe um saquinho marrom de veludo, onde pôde encontrar um
terço de madeira. Jamais reagiria mal. Disse “pô, que bonito,
João! Valeu mesmo!”.
No
fim da noite, chegou ao seu Ford Ka 2002, tão harmônico com seu
salário de professor, sentou-se, tirou o terço do bolso e ficou em
silêncio, observando-o um tanto acuado. Não sabia mesmo o que fazer
com aquilo. Pensou em dar para a Tia Dulce. Desistiu. Achou melhor
jogar fora, era mais honesto. Com ele, com o João, com o
catolicismo. Aquele símbolo não cabia em sua casa.
Já
estava decidido, enquanto dirigia na noite de garoa, quando começou
a pensar no aluno. Lembrou que todo dia, durante a chamada, João ia
saindo logo após ser chamado e dizia “boa noite, professor, vá
com Deus” por cima de sua voz que seguia na lista: “Juliana
Braga, Juliana Silva, Laércio, Laísa…”. Lembrou que, quando
deixou de ir dar aula dois dias para acompanhar a mãe no hospital,
João lhe mandou um e-mail dizendo que estava orando pela saúde
dela.
Lembrou
do sorriso sincero, dos pedidos de desculpas quando chegava atrasado,
do ar compenetrado copiando seus garranchos da lousa, esforço em
dobro atravessando as lentes grossas dos óculos.
Teodoro
continuava detestando a igreja. E continuava lembrando do João, só
com coisas boas. E percebeu que naquele terço tinha bem mais João
do que igreja. Talvez quase nada de doutrina católica e quase tudo
de intenção do João.
Parou
no farol, olhou para o terço outra vez. Abriu o porta-luvas,
acomodou o terço no cantinho, fechou o compartimento, engatou a
primeira, seguiu para casa.
Chegou
seguro. Seguro permaneceu.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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