quarta-feira, 23 de março de 2022

Para que serve um terço?

O professor Teodoro não era católico, embora batizado. Até quis fazer primeira comunhão quando, aos nove anos, ouviu os amigos falarem sobre isso, mas a mãe lhe disse que era melhor ir pra capoeira. Gente fina, a Dona Neide.
Não só não era católico como andava puto da vida com aquelas discussões vintage sobre a formação tradicional da família, sobre o direito à vida a qualquer custo, sobre a legalidade divina dos métodos anticoncepcionais. Andava bem puto, por sinal, com aquele papa, aquela igreja, aquilo tudo.
Teodoro era tão polêmico quanto querido. Professor de Comunicação em uma pequena faculdade no Rio, criava laços com os alunos que não se desatavam nem quando dava enrosco. Era aquele tipo de professor de quem os alunos se lembravam até mesmo nos momentos bons.
Entre as dezenas de presentes deliciosamente óbvios que recebia – chocolates, espumas de barbear, canetas, pencas de bananas, meias, réguas, paninhos de limpar óculos –, um dia recebeu o inesperado. O aluno deu-lhe um saquinho marrom de veludo, onde pôde encontrar um terço de madeira. Jamais reagiria mal. Disse “pô, que bonito, João! Valeu mesmo!”.
No fim da noite, chegou ao seu Ford Ka 2002, tão harmônico com seu salário de professor, sentou-se, tirou o terço do bolso e ficou em silêncio, observando-o um tanto acuado. Não sabia mesmo o que fazer com aquilo. Pensou em dar para a Tia Dulce. Desistiu. Achou melhor jogar fora, era mais honesto. Com ele, com o João, com o catolicismo. Aquele símbolo não cabia em sua casa.
Já estava decidido, enquanto dirigia na noite de garoa, quando começou a pensar no aluno. Lembrou que todo dia, durante a chamada, João ia saindo logo após ser chamado e dizia “boa noite, professor, vá com Deus” por cima de sua voz que seguia na lista: “Juliana Braga, Juliana Silva, Laércio, Laísa…”. Lembrou que, quando deixou de ir dar aula dois dias para acompanhar a mãe no hospital, João lhe mandou um e-mail dizendo que estava orando pela saúde dela.
Lembrou do sorriso sincero, dos pedidos de desculpas quando chegava atrasado, do ar compenetrado copiando seus garranchos da lousa, esforço em dobro atravessando as lentes grossas dos óculos.
Teodoro continuava detestando a igreja. E continuava lembrando do João, só com coisas boas. E percebeu que naquele terço tinha bem mais João do que igreja. Talvez quase nada de doutrina católica e quase tudo de intenção do João.
Parou no farol, olhou para o terço outra vez. Abriu o porta-luvas, acomodou o terço no cantinho, fechou o compartimento, engatou a primeira, seguiu para casa.
Chegou seguro. Seguro permaneceu.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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