quarta-feira, 23 de março de 2022

Uma razão pela qual os marinheiros dos navios de guerra vivem geralmente tão pouco

Não posso deixar a questão das macas sem fazer menção a uma injustiça entre os marinheiros digna de desagravo.
Num navio de guerra no mar, os marinheiros permanecem em regime de quartos alternados; isto é, num intervalo de vinte e quatro horas, eles entram e saem de serviço a cada quatro. Ora, o toque de tirar as macas das trincheiras (o espaço aberto para guardá-las, que corre sobre os balaústres da amurada) soa um pouco depois do pôr do sol; e o toque de arrumá-las, quando o turno da manhã é chamado, às oito horas; de modo que, durante o dia, elas permanecem inacessíveis enquanto leito. Não haveria qualquer problema com isso, caso os marinheiros tivessem uma noite completa de sono; porém, noite sim, noite não, seus turnos permitem apenas quatro horas de sono nas macas. Na verdade, deduzindo o tempo dado ao turno seguinte para lhe render, e para você suspender a própria maca e nela subir e dormir de fato, pode-se dizer que, noite sim, noite não, você tem, quando muito, três horas de sono. Tendo, portanto, estado sobre o convés por dois turnos de quatro horas, às oito da manhã é chegado o seu turno de folga na coberta das macas, e você fica livre de atribuições até o meio-dia. Sob tais circunstâncias, um marinheiro mercante vai para o beliche e tira proveito de boas horas de sono. Num navio de guerra, porém, não existe tal possibilidade; sua maca está guardada na trincheira, e ali permanecerá até o cair da noite.
Mas talvez haja um canto para você nalgum lugar ao longo das baterias da coberta dos canhões, onde possa desfrutar de aprazível cochilo. Como não é permitido recostar-se a bombordo da coberta de canhões (área reservada como passagem para os oficiais que seguem para seu salão de fumantes no resbordo da proa), resta aos marinheiros apenas a área a estibordo. No entanto, boa parte desse espaço é ocupada por carpinteiros, veleiros, barbeiros e tanoeiros. Em suma, são tão poucos os cantos onde se pode dormitar durante o dia numa fragata que nem mesmo um dentre dez homens de quarto, que permaneceram oito horas sobre o convés, tiram um cochilo que seja até a noite seguinte. Repetidas vezes, depois de, por sorte, ter conseguido um lugar, fui dele despejado por algum funcionário destacado para mantê-lo safo.
Nas imediações do cabo Horn, o que fora desconfortável tornou-se de fato uma provação. Totalmente encharcado pela surriada das águas à noite, por vezes dormi de pé no espardeque — tremendo enquanto dormia —, à falta de sono em minha maca.
Durante três dias dos mais tempestuosos, foi-nos dado o privilégio da coberta (noutras ocasiões terminantemente interditada), onde se permitiu que estendêssemos as jaquetas e cochilássemos pela manhã depois de oito horas de exposição noturna. Esse privilégio, contudo, era risível. Para não falar em nossas jaquetas — usadas como cobertor — completamente ensopadas, a surriada descia pelas escotilhas e mantinha as tábuas do assoalho da coberta molhadas; tivessem nos permitido pendurar as macas, teríamos balançado por sobre a inundação. De qualquer maneira, tentamos permanecer tão aquecidos e confortáveis quanto nos fosse possível, sobretudo nos mantendo próximos e, na ausência do calor de uma fogueira ao lado, produzindo um pouco de vapor. Talvez vocês já tenham visto como se encaixotam os corpos dirigidos à ilustração das aulas de um professor-cirurgião. Assim permanecíamos — pés e cabeças alinhados, rostos sempre às costas, encaixados uns nos outros na altura das coxas e dos joelhos. A umidade de nossas jaquetas, assim densamente reunidas, logo começava a evaporar. Contudo, era como se despejassem água quente para que não congelássemos. Era como se estivéssemos “embalados” nos lençóis ensopados das águas medicinais de uma casa terapêutica.
Essa posição não podia ser preservada por um considerável período de tempo sem uma mudança de lado. Três ou quatro vezes durante as quatro horas que se seguiram fui despertado de meu cochilo molhado pelo grito áspero de um sujeito que fazia as vezes de cabo na ponta posterior de minha fileira. “Dorminhocos, atenção! Preparar para girar!”, e, num duplo movimento, todos virávamos juntos e nos víamos de frente para o corrimão de popa, em vez do gurupés. Porém, por mais que você virasse, seu nariz acabava grudado às costas vaporosas tanto de um quanto do outro, em ambos os flancos. A mudança de odores advinda do movimento trazia-nos algum alívio.
Mas por que razão, depois de labutar por oito tempestuosas horas no convés, à noite, não se permite à tripulação de um navio de guerra a humilde recompensa de um cochilo seco de quatro horas no dia seguinte? Por quê? O comodoro e o capitão, bem como o primeiro lugar-tenente, o capelão, o comissário de bordo e muitos outros, todos têm a noite inteira recolhidos, como se estivessem hospedados num hotel em terra firme. E os aspirantes a lugar-tenente têm seus catres à disposição sempre que queiram, e mais do que isso — como apenas um deles é exigido à frente do turno, e eles são muitos, de modo que podem dividir entre si tal dever, tais oficiais permanecem no convés apenas quatro a cada doze horas de repouso. Em alguns casos, a proporção é ainda maior. Enquanto, com o povo, são quatro horas sim, quatro horas não, continuamente.
Por que razão, então, os marinheiros comuns têm de passar tão maus bocados nesse quesito? Seria a coisa mais simples do mundo deixá-los armarem suas redes para um cochilo durante o dia. Mas não; tal procedimento seria um atentado à integridade dos acontecimentos diários de um navio de guerra. Parece indispensável ao efeito pitoresco do espardeque que as macas permaneçam invariavelmente guardadas do nascer ao pôr do sol. Mas a principal razão — razão que tem sancionado muitos abusos neste mundo — é que “não há precedentes”. Marinheiros dormindo em suas macas durante o dia, depois de oito horas de exposição a uma tempestade madrugada adentro, é coisa que praticamente escapa aos registros da Marinha. Façamos, no entanto, justiça à memória imortal de alguns capitães: registram os autos da Marinha que, nas imediações do cabo Horn, eles concederam macas à tripulação pela manhã. Que Deus abençoe tais oficiais de bom coração; e que eles e seus descendentes — em terra firme ou alto-mar — tenham um sono bom e agradável enquanto viverem, e uma sesta jamais sonhada quando morrerem.
É no tocante a coisas como as que perfazem o assunto deste capítulo que decretos especiais do Congresso são exigidos. Saúde e conforto — tanto quanto possam ser obtidos segundo as circunstâncias — deveriam ser legalmente garantidos à tripulação dos navios de guerra; e não deixadas ao capricho e juízo de seus comandantes.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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