segunda-feira, 21 de março de 2022

Experiências humanas conflitantes

O humanismo evolucionário tem uma solução diferente para o problema das experiências humanas conflitantes. Com raízes no terreno firme da teoria evolutiva darwiniana, para ele o conflito é algo a ser aplaudido, e não lamentado. O conflito é a matéria-prima da seleção natural, que impulsiona a evolução adiante. Alguns humanos simplesmente são superiores a outros, e, quando experiências humanas colidem, os humanos mais aptos devem prevalecer sobre quaisquer outros. A mesma lógica que leva o gênero humano a exterminar lobos selvagens e a explorar implacavelmente carneiros domesticados também comanda a opressão de humanos inferiores por seus superiores. É bom que europeus conquistem africanos e que homens de negócios sagazes levem os incompetentes à bancarrota. Se seguirmos essa lógica evolutiva, o gênero humano irá se tornar gradualmente mais forte e mais apto, fazendo surgir os super-humanos. A evolução não parou com o Homo sapiens — ainda há um longo caminho a percorrer. No entanto, se em nome dos direitos humanos ou da igualdade humana enfraquecermos os humanos mais aptos, isso evitará o surgimento do super-homem e poderá mesmo causar a degeneração e a extinção do Homo sapiens.
Quem são exatamente esses humanos superiores que são os arautos da vinda do super-homem? Poderiam ser raças inteiras, mais particularmente tribos, ou excepcionais gênios individuais. Seja como for, o que os faz superiores é que têm maiores capacitações, manifestadas na criação de novos conhecimentos, de uma tecnologia mais avançada, de sociedades mais prósperas, de uma arte mais bela. A experiência de um Einstein ou de um Beethoven é muito mais valiosa do que a de um bêbado que não serve para nada, e é ridículo considerar que seus méritos são iguais. Da mesma forma, se determinada nação tem consistentemente liderado o progresso humano, poderíamos com razão julgá-la superior a outras nações que contribuíram com pouco ou nada para a evolução do gênero humano.
Consequentemente, em contrapartida a artistas liberais como Otto Dix, o humanismo evolutivo acredita que a experiência humana da guerra é valiosa, essencial até. O filme O terceiro homem passa-se em Viena logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao refletir sobre o conflito recente, o personagem Harry Lime diz: “Afinal, não é tão terrível… Na Itália, durante trinta anos sob os Bórgia houve guerra, terror, assassinato e derramamento de sangue, mas produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles tiveram amor fraternal, quinhentos anos de democracia e paz, e o que produziram? O relógio de cuco”. Limes cita quase todos os fatos erroneamente — a Suíça foi provavelmente a porção mais sedenta de sangue da Europa moderna em seus primórdios (seu principal produto de exportação eram soldados mercenários), e o relógio de cuco foi na verdade inventado pelos alemães — mas os fatos são menos importantes do que a ideia de Limes, ou seja, a experiência da guerra impulsiona o gênero humano a novas conquistas. A guerra faz com que a seleção natural enfim reine. Ela extermina os fracos e recompensa os decididos e os ambiciosos. A guerra expõe a verdade sobre a vida e desperta o desejo de poder, de glória e de conquista. Nietzsche resumiu isso ao dizer que a guerra é “a escola da vida” e que “o que não me mata me fortalece”.
Ideias semelhantes foram expressas pelo tenente Henry Jones, do Exército britânico. Três dias antes de sua morte na Frente Ocidental na Primeira Guerra Mundial, Jones, com 21 anos de idade, enviou uma carta a seu irmão descrevendo a experiência da guerra em termos brilhantes:

Você já refletiu alguma vez sobre o fato de que, apesar dos horrores da guerra, ela é uma grande coisa? Estou querendo dizer que nela a gente se defronta com realidades. As loucuras, o egoísmo, o luxo e a mesquinhez em geral do tipo de existência vil e comercial, praticados por nove décimos das pessoas no mundo em tempos de paz, são substituídos na guerra por uma selvageria que ao menos é mais honesta e explícita. Veja a coisa assim: em tempos de paz, cada um vive apenas a própria vidinha, envolvido em trivialidades, preocupando-se com o próprio conforto, com questões de dinheiro, e com todo esse tipo de coisas — vivendo apenas para si mesmo. Como é sórdida essa vida! Na guerra, por outro lado, mesmo se você for morto, só estará antecipando o inevitável em alguns anos, de qualquer maneira, e terá a satisfação de saber que levou a pior na tentativa de ajudar seu país. Você, na verdade, realizou um ideal, o que, até onde eu sei, fazemos muito raramente na vida normal. O motivo para isso é que na vida normal a vida se desenrola numa base comercial e egoísta; se você quiser “se dar bem”, como se diz, vai ter de sujar as mãos.
Pessoalmente, eu com frequência me regozijo de que a Guerra tenha surgido em meu caminho. Ela fez com que eu me desse conta de como a vida é mesquinha. Creio que a Guerra deu a cada um a oportunidade de “sair de si mesmo”, como eu poderia dizer… Certamente, falando por mim, posso dizer que nunca em toda a minha vida eu havia experimentado uma alegria tão desenfreada, como se fosse o início de uma grande arrancada, como a de abril último, por exemplo. A excitação durante a última meia hora, se tanto, que a antecede não se compara a nada na Terra.

Em seu Falcão Negro em perigo, um best-seller, o jornalista Mark Bowden relata, em termos semelhantes, a experiência em combate de Shawn Nelson, um soldado americano, em Mogadíscio, em 1993:

Era difícil descrever como ele se sentia… foi como uma epifania. Próximo da morte, ele nunca se sentira tão completamente vivo. Houvera frações de segundo em sua vida em que sentira a morte passar roçando por ele, como quando um carro em alta velocidade perdeu a direção numa curva fechada e por pouco não o atingiu de frente. Nesse dia ele vivia com aquela sensação, com a morte respirando diretamente em seu rosto… por um momento mais um momento mais um momento, durante três horas ou mais… O combate era… um estado de total consciência mental e física. Naquela hora na rua ele não era Shawn Nelson, não tinha conexão com o grande mundo, nem contas a pagar, nem laços emocionais, nada. Era apenas um ser humano permanecendo vivo de um nanossegundo a outro, uma respiração seguida de outra, totalmente consciente de que cada uma poderia ser a última. Sentiu que nunca mais seria o mesmo.

Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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