O
humanismo evolucionário tem uma solução diferente para o problema
das experiências humanas conflitantes. Com raízes no terreno firme
da teoria evolutiva darwiniana, para ele o conflito é algo a ser
aplaudido, e não lamentado. O conflito é a matéria-prima da
seleção natural, que impulsiona a evolução adiante. Alguns
humanos simplesmente são superiores a outros, e, quando experiências
humanas colidem, os humanos mais aptos devem prevalecer sobre
quaisquer outros. A mesma lógica que leva o gênero humano a
exterminar lobos selvagens e a explorar implacavelmente carneiros
domesticados também comanda a opressão de humanos inferiores por
seus superiores. É bom que europeus conquistem africanos e que
homens de negócios sagazes levem os incompetentes à bancarrota. Se
seguirmos essa lógica evolutiva, o gênero humano irá se tornar
gradualmente mais forte e mais apto, fazendo surgir os super-humanos.
A evolução não parou com o Homo sapiens — ainda há um
longo caminho a percorrer. No entanto, se em nome dos direitos
humanos ou da igualdade humana enfraquecermos os humanos mais aptos,
isso evitará o surgimento do super-homem e poderá mesmo causar a
degeneração e a extinção do Homo sapiens.
Quem
são exatamente esses humanos superiores que são os arautos da vinda
do super-homem? Poderiam ser raças inteiras, mais particularmente
tribos, ou excepcionais gênios individuais. Seja como for, o que os
faz superiores é que têm maiores capacitações, manifestadas na
criação de novos conhecimentos, de uma tecnologia mais avançada,
de sociedades mais prósperas, de uma arte mais bela. A experiência
de um Einstein ou de um Beethoven é muito mais valiosa do que a de
um bêbado que não serve para nada, e é ridículo considerar que
seus méritos são iguais. Da mesma forma, se determinada nação tem
consistentemente liderado o progresso humano, poderíamos com razão
julgá-la superior a outras nações que contribuíram com pouco ou
nada para a evolução do gênero humano.
Consequentemente,
em contrapartida a artistas liberais como Otto Dix, o humanismo
evolutivo acredita que a experiência humana da guerra é valiosa,
essencial até. O filme O terceiro homem passa-se em Viena
logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao refletir sobre o
conflito recente, o personagem Harry Lime diz: “Afinal, não é tão
terrível… Na Itália, durante trinta anos sob os Bórgia houve
guerra, terror, assassinato e derramamento de sangue, mas produziram
Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles
tiveram amor fraternal, quinhentos anos de democracia e paz, e o que
produziram? O relógio de cuco”. Limes cita quase todos os fatos
erroneamente — a Suíça foi provavelmente a porção mais sedenta
de sangue da Europa moderna em seus primórdios (seu principal
produto de exportação eram soldados mercenários), e o relógio de
cuco foi na verdade inventado pelos alemães — mas os fatos são
menos importantes do que a ideia de Limes, ou seja, a experiência da
guerra impulsiona o gênero humano a novas conquistas. A guerra faz
com que a seleção natural enfim reine. Ela extermina os fracos e
recompensa os decididos e os ambiciosos. A guerra expõe a verdade
sobre a vida e desperta o desejo de poder, de glória e de conquista.
Nietzsche resumiu isso ao dizer que a guerra é “a escola da vida”
e que “o que não me mata me fortalece”.
Ideias
semelhantes foram expressas pelo tenente Henry Jones, do Exército
britânico. Três dias antes de sua morte na Frente Ocidental na
Primeira Guerra Mundial, Jones, com 21 anos de idade, enviou uma
carta a seu irmão descrevendo a experiência da guerra em termos
brilhantes:
Você
já refletiu alguma vez sobre o fato de que, apesar dos horrores da
guerra, ela é uma grande coisa? Estou querendo dizer que nela a
gente se defronta com realidades. As loucuras, o egoísmo, o luxo e a
mesquinhez em geral do tipo de existência vil e comercial,
praticados por nove décimos das pessoas no mundo em tempos de paz,
são substituídos na guerra por uma selvageria que ao menos é mais
honesta e explícita. Veja a coisa assim: em tempos de paz, cada um
vive apenas a própria vidinha, envolvido em trivialidades,
preocupando-se com o próprio conforto, com questões de dinheiro, e
com todo esse tipo de coisas — vivendo apenas para si mesmo. Como é
sórdida essa vida! Na guerra, por outro lado, mesmo se você for
morto, só estará antecipando o inevitável em alguns anos, de
qualquer maneira, e terá a satisfação de saber que levou a pior na
tentativa de ajudar seu país. Você, na verdade, realizou um ideal,
o que, até onde eu sei, fazemos muito raramente na vida normal. O
motivo para isso é que na vida normal a vida se desenrola numa base
comercial e egoísta; se você quiser “se dar bem”, como se diz,
vai ter de sujar as mãos.
Pessoalmente,
eu com frequência me regozijo de que a Guerra tenha surgido em meu
caminho. Ela fez com que eu me desse conta de como a vida é
mesquinha. Creio que a Guerra deu a cada um a oportunidade de “sair
de si mesmo”, como eu poderia dizer… Certamente, falando por mim,
posso dizer que nunca em toda a minha vida eu havia experimentado uma
alegria tão desenfreada, como se fosse o início de uma grande
arrancada, como a de abril último, por exemplo. A excitação
durante a última meia hora, se tanto, que a antecede não se compara
a nada na Terra.
Em
seu Falcão Negro em perigo, um best-seller, o jornalista Mark
Bowden relata, em termos semelhantes, a experiência em combate de
Shawn Nelson, um soldado americano, em Mogadíscio, em 1993:
Era
difícil descrever como ele se sentia… foi como uma epifania.
Próximo da morte, ele nunca se sentira tão completamente vivo.
Houvera frações de segundo em sua vida em que sentira a morte
passar roçando por ele, como quando um carro em alta velocidade
perdeu a direção numa curva fechada e por pouco não o atingiu de
frente. Nesse dia ele vivia com aquela sensação, com a morte
respirando diretamente em seu rosto… por um momento mais um momento
mais um momento, durante três horas ou mais… O combate era… um
estado de total consciência mental e física. Naquela hora na rua
ele não era Shawn Nelson, não tinha conexão com o grande mundo,
nem contas a pagar, nem laços emocionais, nada. Era apenas um ser
humano permanecendo vivo de um nanossegundo a outro, uma respiração
seguida de outra, totalmente consciente de que cada uma poderia ser a
última. Sentiu que nunca mais seria o mesmo.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
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