segunda-feira, 21 de março de 2022

Colisão


Eu segui pela calçada vazia. Meu apartamento ficava no terceiro distrito de Totsuka, então, vindo de Shinjuku, o atalho mais curto me levou através da parte solitária dos campos de Toyama. Naquele dia, eu segui minha rotina usual e a mesma rota, mas isso me colocou em uma colisão direta com uma descoberta terrível.
Enquanto eu metodicamente apagava cada uma das luzes das ruas pelas quais eu caminhava¹, passei pela fachada de um estabelecimento comercial, com uma parede malfeita e desnivelada como uma gigante caixa de papelão jogada na rua, que fora misturada com o distrito varejista que dormia, quando eu me aproximei da entrada dos campos de Toyama.
Oh, campos de Toyama à noite! Era um lugar incrivelmente pacífico, conhecido por poucos. Carvalhos cobriam toda a região, serena como uma floresta intocada, e não havia pilhas de lixo, tratamento de esgoto, ou carrinhos de mão abandonado, para não mencionar tendas ou letreiros de neon. O que havia ali era, em sua maioria, barro junto aos carvalhos, pequenas ervas daninhas, caixas vazias de doce de caramelo e papéis farfalhando no solo. Era um lugar desolado; se isso fosse uma ópera, eu entraria com a música dramática, derrubaria uma cortina azul clara ao som de um violino e entoaria uma canção, mas infelizmente eu não tinha nenhuma dessas coisas preparadas — deixando apenas o som dos insetos zumbindo na grama, enquanto a lua surgia entre as nuvens, a luz sedosa fluía como água, e os carvalhos realçavam uma imagem fraca dos seus troncos aos meus olhos. A lua surgiu, e a floresta se tornou mais brilhante.
Naquele momento, fiquei surpreso ao ver alguém aqui nos campos Toyama, estava certo de que era um lugar inabitado. De repente, pessoas surgiram das árvores. Havia dois: um jovem rapaz e uma moça.
Eles papeavam, animados, conforme se aproximavam de mim. Vê-los me irritou por algum motivo, estou certo de que vocês entendem como me senti. Para provocá-los, eu andei de propósito para uma direção em que ficaria no caminho deles. Esperei o jovem casal detectar a minha má intenção e ir embora. No entanto, não importava o quão próximo eu ficava, eles não faziam qualquer tentativa de ir embora. Isso só aumentou minha irritação.
Se eu continuasse a andar para frente dessa maneira, eu não teria outra escolha a não ser trombar com eles. O casal seguiu direto na minha direção, sem mudar o curso. Considerei desviar para evitá-los. Mas então me ocorreu: não havia nenhum motivo para eu evitá-los. Aqueles dois estavam realmente se divertindo; eu estava sozinho e não me divertia nem um pouco. Dado isso, era tão irrazoável para um casal sortudo ceder a mim, um cara azarado?
Semicerrei os olhos e investi impetuosamente contra eles.
Cuidado!”
Meu corpo atingiu o jovem rapaz com um baque.
Ai! — ele gemeu e cambaleou para trás. “Ele vai cair, coitado”, pensei, mas estava enganado; o jovem plantou firmemente o pé no chão e recuperou o equilíbrio.
Nossa, que estranho — murmurou o jovem. — Mas, como estava dizendo, eu disse ao meu tio: “Se isso não der certo…”
Ei, o que aconteceu? Você quase caiu para trás — disse a moça.
Sim, não sei por que, acho que perdi o equilíbrio. Mas não doeu nem nada… Então eu disse ao meu tio…
Espere aí, isso foi muito estranho. Pareceu que você ficou tonto de repente.
Calma, não é nada demais. Você sabe que eu tenho estado um pouco estressado…
O jovem casal conversava enquanto ia embora, e por um tempo eu fiquei sentado na grama, sem palavras, assistindo sua partida.
Aqueles dois simplesmente não se importam… ou são insensíveis. São bem esquisitos! Estavam tão absortos na própria conversa que nem notaram quando trombei com eles. Mas espere um minuto. Tem algo de errado. É estranho que não me perceberam parado bem em frente a eles. Muito estranho.”
Continuei meu caminho através da floresta de carvalho, e o sentimento incômodo não me abandonou. A grama sob meus pés cintilavam à luz da lua, que descia através do topo das árvores.
Naquele momento, avistei outro casal na floresta.
De fato, esta é uma noite de muitos casais!”
A depressão que tomou conta de mim logo se transformou em ressentimento.
Já que estou aqui, posso também trombar com esses dois!”
Minha ânsia impura se tornou cada vez mais forte e difícil de ser suprimida, até que, por fim, corri na direção em que se encontravam, juntos, e colidi com eles. E o que vocês acham que aconteceu?
Eu fiquei mais surpreso do que o casal, como vocês podem imaginar após a experiência anterior.
Ei, pare com isso, Matsushima!
Quê? O que há de errado com você? Foi você que trombou comig...
Cada um acreditava que o outro havia feito algo. Não havia nenhum indicativo de que tinham consciência da minha presença, que agora estava atrás deles depois de ter escorregado por entre seus corpos.
Vendo isso, eu também não pude deixar de murmurar:
Isso é estranho!
Ei… tem mais alguém aqui.
Não, não tem ninguém.
Hum, você deve estar certo. Mas juro que ouvi alguém dizer “isso é estranho”, ou algo do tipo…
Eles me encaravam durante essa conversa; não preciso mencionar que não pareciam me notar.
Naquele instante, senti um calafrio percorrer a minha nuca — uma sensação terrível da qual ainda me lembro até hoje.
Estranho… foi como se ninguém me notasse — nem esse casal, e nem aquele de antes. Como isso é possível?”
Um sentimento esquisito aos poucos tomou conta de mim. Meu coração dançava em meu peito. Acho que eu estava prestes a perder a cabeça.
Senti-me culpado — e ao mesmo tempo aterrorizado —, ainda tentei a mesma coisa com um terceiro casal. E, mais uma vez, o resultado foi lamentável. Ninguém parecia notar minha existência; meu corpo era invisível para eles. Como pode algo tão lastimável e aterrorizante como isso continuar acontecendo?
Passei uma hora deitado na grama do campo de Toyama, sozinho e angustiado. Enquanto isso, as nuvens cobriram a lua, escurecendo tudo nas proximidades, então me levantei e retornei ao meu apartamento. Eu destranquei a porta, entrei no meu quarto e subi na minha cama. Dormi até amanhecer.
Como uma pessoa, por natureza, despreocupada, logo esqueci dos eventos aterrorizantes da noite anterior e, quando acordei, fui direto ao banheiro, com a escova de dentes e a toalha em mãos.
Ei, você se levantou agora? Dormiu bem tarde, hein — uma voz disse para mim.
Tomei um susto e não respondi. Essa voz pertencia ao dr. Fujita, um fisiognomista. Havia rumores de que ele era residente deste prédio desde que foi construído.
Que cara é essa? Você está parecendo um rato aflito com o rabo preso em uma ratoeira.
Dr. Fujita, como sempre, atingiu-me com suas ríspidas observações. Resisti bravamente para não perguntar: “Dr. Fujita, você consegue me ver?” Virei-me para olhar para trás. Queria checar se a observação do dr. Fujita era direcionada a outra pessoa, que poderia estar atrás de mim.
Após o ocorrido, fiquei muito aliviado com o que vi: não havia ninguém atrás de mim. Eu podia ver claramente até o fim do corredor. Não havia ninguém lá, nem mesmo um gato.
Ei, dr. Fujita. Parece que você está de bom humor, aposto que ganhou algum dinheiro ontem à noite — eu disse, rindo pela primeira vez em um longo tempo.
Não apenas na noite passada! — Fujita disse e riu. — Parece que meus clientes gananciosos estão passando bem esses dias, dando gorjeta além do que cobro normalmente. Tempos extraordinários! — Ele gargalhou alto.
A risada de Fujita era impagável, pois dizia que meu corpo era inegavelmente visível. Graças ao dr. Fujita, isso foi provado sem sombra de dúvidas. Eu estava tão feliz que poderia morrer e ir para o céu.
A alegria! O alívio!
Entretanto, eu ainda não tinha explicação para aquela estranha ocorrência noturna nos campos de Toyama. Por que fiquei invisível para eles naquela noite em particular?
Eu discuti isso com meu bom amigo Shiraishi. Mas não contei como minha própria experiência, e sim como a de uma terceira pessoa, sobre a qual Shiraishi zombou e disse:
Bem, isso é óbvio. Está errada a presunção de que o corpo dele (na verdade, o meu corpo) não estava visível.
Por que você diz isso?
Bem, da perspectiva de jovens casais se encontrando secretamente em um lugar como aquele, um homem desconhecido de repente trombar com eles é estranho, uma figura amedrontadora, então, seguindo a expressão “não bata palmas para maluco dançar”, eles simplesmente fingiram não o ver. Esses casais sabiam que irritá-lo só iria piorar as coisas e causar um grande problema para eles.
Hum, entendo. É simples assim — eu ri.
O que há de tão engraçado? Você é um cara estranho.
Shiraishi me encarou com suspeita, mas eu não podia estar mais feliz.
Minha felicidade, infelizmente, não durou nem cinco dias. Em uma noite, no trajeto de Shinjuku para minha residência, enquanto entrava nos campos de Toyama, a mesma coisa aconteceu. Mais uma vez, minha existência fora ignorada.
O meu estado podia ser comparado à recorrência de uma doença terrível. As palavras de Shiraishi me mantiveram feliz durante pouco menos de três dias. Novamente, eu me encontrava envolto até a cabeça em uma infinita escuridão infernal. “O que está acontecendo comigo?” E pensar que o corpo de uma pessoa pode se tornar invisível por inteiro…
Não parecia haver nenhuma dissimulação da parte deles. Quando alguém não podia me ver, realmente não podia me ver. Isso me aterrorizava e, ao mesmo tempo, estimulava uma curiosidade secreta sobre o porquê de isso acontecer. Contudo a resposta não aparecia.
¹ No Japão, na época em que este conto foi escrito, havia cidades em que, após certo horário, os cidadãos eram obrigados a apagar as luzes das ruas conforme passavam por elas.

Juza Unno, in A última transmissão

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