Depois
dos dias de viagem pelas terras desconhecidas daquele continente
singular onde as mulheres não riam e os homens se escondiam em
brutos capotes, das cidades e dos povoamentos pelos quais passaram,
das montanhas pintadas de branco, dos rostos estranhos que se
acumulavam por trás dos olhos já cansados de tantos novos rostos e
tantas novas paisagens, os cientistas os levaram a conhecer o rio da
cidade. Era um rio magro e singular. Iñe-e nunca tinha visto um rio
como aquele. Nele, somente navegação pequena, em jangadas, mas não
em todos os trechos. Em alguns lugares seria possível até
atravessá-lo a pé; em outros estava congelado.
Entre
ela e o filho do chefe dos juris, havia um mundo de silêncio. O
mundo de palavras suas, aquelas com que a mãe e seus familiares lhe
proveram, gravitava ali apenas em torno dela mesma. As palavras que
outrora ecoavam dentro e fora da maloca ressoavam na memória com
pesar: niik-a uu, i-hi, híniba, íígai, hii. Cabeça, boca, lábios,
dentes, saliva: o que se precisa para falar, além do sopro que enche
peito e barriga e que anima a palavra. Porém as vozes queridas iam
perdendo a nitidez. E cabeça, boca, lábios, dentes, saliva, aquilo
que é necessário para se comer. E tudo pesava sobre sua existência.
Às vezes acordava com o coração acelerado, havia esquecido o tom e
o timbre da voz de alguém.
O
menino Juri sentia coisas parecidas, e por habitarem agora em um
mundo de palavras que ignoravam ambos se tornavam, de certo modo,
irmãos. Estranhos irmãos, inimigos desde antes de nascerem, que
asco um do outro tantas vezes sentiam por inimigos que eram desde os
ancestrais, mas que ora paridos pela mesma sina naquela outra vida,
ninguém diria que irmãos não fossem. As palavras de seus
sequestradores e as palavras que suas mães, suas tseehi, lhes
ofereciam, como os bolos de comida amassados na palma da mão, não
encontravam as coisas que poderiam nomear nem ouvidos que as pudessem
entender. Era certamente um enorme desencontro aquele, mas, sob essa
pena, se olhavam e um tanto se reconheciam. Se sabiam ora tristes,
ora apavorados, ora saudosos, ora enraivecidos. Seus olhos se
espantavam e envelheciam com as mesmas paisagens, seus corpos
estremeciam e adoeciam sob os mesmos calafrios. Depois de tanto tempo
juntos, de algum modo era como se em certos momentos pudessem ser um
só.
Embora
pouco mais velho, o menino Juri já era um homem para seu povo quando
fora levado por Martius. E, se sua família não tivesse caído em
desgraça na guerra contra os miranhas, ele teria sucedido ao pai na
liderança. De pequeno, fora provado na dor como era costume entre os
seus. Estava pronto para a guerra quando fora capturado. E embora na
ocasião não tivesse ainda cortado a cabeça de nenhum inimigo, era
exímio em arrancar os dentes aos cadáveres, com os quais se faziam
os colares dos guerreiros. Era um menino forte. E talvez por isso
mesmo tenha sobrevivido aos dias que passaram sobre o mar. Iñe-e
também o era, e em seus corpos essa força se inscrevia como a
história dos seus povos.
Fazia
frio no dia em que foram levados ao passeio. Tanto o menino quanto a
menina prefeririam se manter em local mais aquecido, mas Spix os
convencera a sair, certo de que o ar fresco e a natureza próxima
lhes dariam algum ânimo novo. Spix se tornara como que um amigo, e
ambas as crianças passaram a vê-lo desse modo, porque os acalmava e
falava com eles com olhar ao mesmo tempo firme e complacente.
Contemplando o rio, Iñe-e e o menino sentiram, cada um ao seu modo,
um sentimento assombroso de não estarem no lugar certo e ficaram
ambos tão agitados que o passeio fora encurtado. Mas por maravilhoso
que fosse, o rio de algum modo soube compreender Iñe-e, porque todos
os rios sabem todas as línguas do mundo, e desde aquele dia sua voz
inaudível à maioria chegava, não obstante, aonde quer que ela
estivesse.
A
menina, entretida no silêncio que era seu, começou a perceber a voz
densa do rio, apurando os ouvidos, colocando-os entre as conchas das
mãos, para escutá-lo melhor, tentando entender o que dizia. A voz
atravessava distâncias, grossas paredes, massas de ar gelado. No
começo, não havia nenhum som que pudesse distinguir como palavra,
fluss-fluss-fluss, era o que ouvia, som comum de correnteza. Mas não
demorou para que as águas se fizessem minimamente inteligíveis.
Pode
me chamar de rio, odo, Fluss, river, rivière, flumine, fluxo de água
rasgando a terra como a trajetória de sangue em um corpo animal.
Pode me chamar de água. E água é tudo e está em tudo que compõe
este mundo. Aqui, neste lugar, me chamam Isar, Isar Fluss. Esse nome
significa torrente, e por ser torrente um nome de mulher eu sou Isar,
rio-fêmea. E, embora os homens pouco atentem a isso quando nos
nomeiam, há outros rios fêmea como eu, como o seu Paranáhuazú.
Fossem as mulheres a dar nomes às coisas, cidades, rios, passagens,
montanhas, talvez percebessem melhor que nem tudo no mundo é
definido como macho. Mas de fato pouco importa o nome que me dão,
porque Eu sou. O Espírito pairava sobre as águas, escreveu a mão
áspera deslizando o cálamo sobre o papiro. Kneph enroscado em um
vaso de água, o ovo cósmico chocado em minha superfície.
O
rio Isar trazia notícias de tempos, lugares, pessoas, coisas que
Iñe-e nunca conhecera. E dava notícia de animais impressionantes,
de guerreiros e inimigos que há muito tinham morrido, de cidades
desconhecidas e de homens santos e dos milagres que contavam deles.
Isar falava incessante, como é da natureza das águas. E a menina
não conseguia conceber a ideia de um leão, sua cabeleira dourada
como um sol, seu corpo de onça sem pintas, seus olhos de rapaz
jovem. E ela se iluminava de espanto com a ideia de que um homem que,
sem ter sido tocado pelo olhar de Yurupari, pudesse andar por sobre o
mar pisando a superfície líquida como se pisasse o chão cotidiano.
Mas confundia o homem que andava sobre a água com as estátuas que
vira ao longo das margens tanto do Reno como do Isar, no dia em que a
conhecera, ex-votos de Nepomuck, o santo homem que fora atirado de
uma ponte a mando de um rei e a quem os marinheiros saudavam
retirando o chapéu da cabeça.
O
certo é que Iñe-e desentendia Isar na maior parte das vezes em que
ela lhe falava sobre a história e os costumes dos brancos, mas
compreendia melhor quando o rio falava com as vozes dos rios de sua
terra e, assim, contava da sua mãe, do seu irmão, do velho avô e
dos parentes. Era uma fala nebulosa que a levava a lugares cada vez
mais distantes, cada vez mais sem feições, com tom de voz e
temperatura dos corpos nunca vistos. E quando se sentia mais
extraviada do que nunca, a menina se contorcia sob uma grande força
que parecia apertar seus ossos. Nesses momentos Isar como que
silenciava. E só depois de algum tempo recomeçava a falar. Os rios
são assim, sabem de tudo, e não silenciam por muito tempo. E Isar
voltava falando coisas das quais a menina só conseguia entender o
essencial. Os barrancos de areia, as pequenas ilhas, e que Isar e os
cientistas eram velhos conhecidos, por exemplo. Essa lenga-lenga lhe
fora repetida várias vezes, falava de reis, do menino que Martius
fora, do pai cirurgião de Spix mostrando com que destreza se abre um
corpo a bisturi. E Isar parecia uma velha a dar voltas em torno da
mesma coisa, o que às vezes enfadava a menina. Mas ela compreendia
que o rio desejava que ela conhecesse melhor aqueles homens. Parecia
haver um propósito no rumor de suas águas.
Uma
noite, porém, Isar contou uma história verdadeiramente assombrosa,
a história da cidade e do fantasma que paira acima dela. Pelas
noites seguintes Iñe-e não conseguiu dormir direito. Seus olhos
abertos vislumbrando o espírito do menino que espreitava aquela
terra, nas noites muito frias e escuras, lembrando que cada
construção ali fora erguida sobre sangue inocente.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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