segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O som do rugido da onça | XIV


Depois dos dias de viagem pelas terras desconhecidas daquele continente singular onde as mulheres não riam e os homens se escondiam em brutos capotes, das cidades e dos povoamentos pelos quais passaram, das montanhas pintadas de branco, dos rostos estranhos que se acumulavam por trás dos olhos já cansados de tantos novos rostos e tantas novas paisagens, os cientistas os levaram a conhecer o rio da cidade. Era um rio magro e singular. Iñe-e nunca tinha visto um rio como aquele. Nele, somente navegação pequena, em jangadas, mas não em todos os trechos. Em alguns lugares seria possível até atravessá-lo a pé; em outros estava congelado.
Entre ela e o filho do chefe dos juris, havia um mundo de silêncio. O mundo de palavras suas, aquelas com que a mãe e seus familiares lhe proveram, gravitava ali apenas em torno dela mesma. As palavras que outrora ecoavam dentro e fora da maloca ressoavam na memória com pesar: niik-a uu, i-hi, híniba, íígai, hii. Cabeça, boca, lábios, dentes, saliva: o que se precisa para falar, além do sopro que enche peito e barriga e que anima a palavra. Porém as vozes queridas iam perdendo a nitidez. E cabeça, boca, lábios, dentes, saliva, aquilo que é necessário para se comer. E tudo pesava sobre sua existência. Às vezes acordava com o coração acelerado, havia esquecido o tom e o timbre da voz de alguém.
O menino Juri sentia coisas parecidas, e por habitarem agora em um mundo de palavras que ignoravam ambos se tornavam, de certo modo, irmãos. Estranhos irmãos, inimigos desde antes de nascerem, que asco um do outro tantas vezes sentiam por inimigos que eram desde os ancestrais, mas que ora paridos pela mesma sina naquela outra vida, ninguém diria que irmãos não fossem. As palavras de seus sequestradores e as palavras que suas mães, suas tseehi, lhes ofereciam, como os bolos de comida amassados na palma da mão, não encontravam as coisas que poderiam nomear nem ouvidos que as pudessem entender. Era certamente um enorme desencontro aquele, mas, sob essa pena, se olhavam e um tanto se reconheciam. Se sabiam ora tristes, ora apavorados, ora saudosos, ora enraivecidos. Seus olhos se espantavam e envelheciam com as mesmas paisagens, seus corpos estremeciam e adoeciam sob os mesmos calafrios. Depois de tanto tempo juntos, de algum modo era como se em certos momentos pudessem ser um só.
Embora pouco mais velho, o menino Juri já era um homem para seu povo quando fora levado por Martius. E, se sua família não tivesse caído em desgraça na guerra contra os miranhas, ele teria sucedido ao pai na liderança. De pequeno, fora provado na dor como era costume entre os seus. Estava pronto para a guerra quando fora capturado. E embora na ocasião não tivesse ainda cortado a cabeça de nenhum inimigo, era exímio em arrancar os dentes aos cadáveres, com os quais se faziam os colares dos guerreiros. Era um menino forte. E talvez por isso mesmo tenha sobrevivido aos dias que passaram sobre o mar. Iñe-e também o era, e em seus corpos essa força se inscrevia como a história dos seus povos.
Fazia frio no dia em que foram levados ao passeio. Tanto o menino quanto a menina prefeririam se manter em local mais aquecido, mas Spix os convencera a sair, certo de que o ar fresco e a natureza próxima lhes dariam algum ânimo novo. Spix se tornara como que um amigo, e ambas as crianças passaram a vê-lo desse modo, porque os acalmava e falava com eles com olhar ao mesmo tempo firme e complacente. Contemplando o rio, Iñe-e e o menino sentiram, cada um ao seu modo, um sentimento assombroso de não estarem no lugar certo e ficaram ambos tão agitados que o passeio fora encurtado. Mas por maravilhoso que fosse, o rio de algum modo soube compreender Iñe-e, porque todos os rios sabem todas as línguas do mundo, e desde aquele dia sua voz inaudível à maioria chegava, não obstante, aonde quer que ela estivesse.
A menina, entretida no silêncio que era seu, começou a perceber a voz densa do rio, apurando os ouvidos, colocando-os entre as conchas das mãos, para escutá-lo melhor, tentando entender o que dizia. A voz atravessava distâncias, grossas paredes, massas de ar gelado. No começo, não havia nenhum som que pudesse distinguir como palavra, fluss-fluss-fluss, era o que ouvia, som comum de correnteza. Mas não demorou para que as águas se fizessem minimamente inteligíveis.
Pode me chamar de rio, odo, Fluss, river, rivière, flumine, fluxo de água rasgando a terra como a trajetória de sangue em um corpo animal. Pode me chamar de água. E água é tudo e está em tudo que compõe este mundo. Aqui, neste lugar, me chamam Isar, Isar Fluss. Esse nome significa torrente, e por ser torrente um nome de mulher eu sou Isar, rio-fêmea. E, embora os homens pouco atentem a isso quando nos nomeiam, há outros rios fêmea como eu, como o seu Paranáhuazú. Fossem as mulheres a dar nomes às coisas, cidades, rios, passagens, montanhas, talvez percebessem melhor que nem tudo no mundo é definido como macho. Mas de fato pouco importa o nome que me dão, porque Eu sou. O Espírito pairava sobre as águas, escreveu a mão áspera deslizando o cálamo sobre o papiro. Kneph enroscado em um vaso de água, o ovo cósmico chocado em minha superfície.
O rio Isar trazia notícias de tempos, lugares, pessoas, coisas que Iñe-e nunca conhecera. E dava notícia de animais impressionantes, de guerreiros e inimigos que há muito tinham morrido, de cidades desconhecidas e de homens santos e dos milagres que contavam deles. Isar falava incessante, como é da natureza das águas. E a menina não conseguia conceber a ideia de um leão, sua cabeleira dourada como um sol, seu corpo de onça sem pintas, seus olhos de rapaz jovem. E ela se iluminava de espanto com a ideia de que um homem que, sem ter sido tocado pelo olhar de Yurupari, pudesse andar por sobre o mar pisando a superfície líquida como se pisasse o chão cotidiano. Mas confundia o homem que andava sobre a água com as estátuas que vira ao longo das margens tanto do Reno como do Isar, no dia em que a conhecera, ex-votos de Nepomuck, o santo homem que fora atirado de uma ponte a mando de um rei e a quem os marinheiros saudavam retirando o chapéu da cabeça.
O certo é que Iñe-e desentendia Isar na maior parte das vezes em que ela lhe falava sobre a história e os costumes dos brancos, mas compreendia melhor quando o rio falava com as vozes dos rios de sua terra e, assim, contava da sua mãe, do seu irmão, do velho avô e dos parentes. Era uma fala nebulosa que a levava a lugares cada vez mais distantes, cada vez mais sem feições, com tom de voz e temperatura dos corpos nunca vistos. E quando se sentia mais extraviada do que nunca, a menina se contorcia sob uma grande força que parecia apertar seus ossos. Nesses momentos Isar como que silenciava. E só depois de algum tempo recomeçava a falar. Os rios são assim, sabem de tudo, e não silenciam por muito tempo. E Isar voltava falando coisas das quais a menina só conseguia entender o essencial. Os barrancos de areia, as pequenas ilhas, e que Isar e os cientistas eram velhos conhecidos, por exemplo. Essa lenga-lenga lhe fora repetida várias vezes, falava de reis, do menino que Martius fora, do pai cirurgião de Spix mostrando com que destreza se abre um corpo a bisturi. E Isar parecia uma velha a dar voltas em torno da mesma coisa, o que às vezes enfadava a menina. Mas ela compreendia que o rio desejava que ela conhecesse melhor aqueles homens. Parecia haver um propósito no rumor de suas águas.
Uma noite, porém, Isar contou uma história verdadeiramente assombrosa, a história da cidade e do fantasma que paira acima dela. Pelas noites seguintes Iñe-e não conseguiu dormir direito. Seus olhos abertos vislumbrando o espírito do menino que espreitava aquela terra, nas noites muito frias e escuras, lembrando que cada construção ali fora erguida sobre sangue inocente.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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