segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Enfoque e perspectiva em "Primeiras estórias"

O crítico Dante Moreira Leite assinalou, em Grande sertão: veredas, a transcendência do modus narrandi adotado: relatório feito pelo protagonista a um estranho que se limita a ouvi-lo como o psicanalista ouve as confidências do paciente. “O romance somente adquire sentido diante do interlocutor quase silencioso que não interfere nas interpretações e nem na fabulação de Riobaldo.” Analisando noutro estudo a novela “Campo geral”, do nosso autor, escrita na terceira pessoa convencional da ficção, mas que apreende apenas a experiência do menino Miguilim, ressalta Dante Moreira Leite que o recurso era necessário, “pois a história não poderia ser narrada pelo herói a não ser como evocação, e isso (...) destruiria o seu núcleo fundamental, que é a perspectiva da criança”.
Teve toda razão o ensaísta ao apontar nessas duas obras a importância intrínseca do que poderíamos chamar o enfoque da história; a observação pode ser generalizada em relação a todas as obras de Guimarães Rosa, pois em todas elas o ponto de vista do narrador constitui elemento essencial, mais de uma vez verdadeiro fio de Ariadne.
Às Primeiras estórias, especialmente, a constante variação da perspectiva confere descomunal riqueza de cambiantes, muitas vezes um elemento suplementar de mistério. Algumas, segundo toda a evidência, têm raízes em experiências pessoais do autor e envolvem sua participação direta, ainda que não muito intensa. O máximo de sua presença ativa note-se em “Pirlimpsiquice”: ainda assim, ele funciona menos a título individual do que como parte de uma coletividade. Noutros casos desempenha o papel de figurante passivo (“Famigerado”), presenciador inconsciente (“Nenhum, nenhuma”), testemunha e comentador (“Fatalidade”, “A menina de lá”), evocador e exegeta.
À primeira pessoa da narração pode corresponder o eu — não do autor, e sim de um relator nominalmente designado cuja personalidade se vai delineando paralelamente ao desenrolar-se da ação (“Luas-de-mel”, “O cavalo que bebia cerveja”, “—Tarantão, meu patrão”), ou a pessoas sem nome mas possuidoras de personalidade, como o narrador de “O espelho”, em que vamos identificando um desses solitários autodidatas da província que se emaranham nos fios de suas infindáveis especulações, ou o de “A terceira margem do rio”, que se vem contagiando com a demência do pai. Dos outros eus, o de “Darandina” tem seus pontos de contato com o autor, de quem partilha (e exagera) as fantasias verbais e o pendor filosofante; o de “A benfazeja”, revelador dos sentimentos inconfessados de uma comunidade, parece mais uma personificação do que uma pessoa.
Nas estórias contadas em terceira pessoa observam-se também divergências no grau de participação do invisível narrador. Se a sua parte, em “Seqüência” ou em “Substância”, se reduz à onipresença e à onisciência convencionais do ficcionista, em “Sorôco, sua mãe, sua filha” e “Os irmãos Dagobé” diz respeito antes a um membro não individualizado da multidão a testemunhar os fatos contados. Em “Partida do audaz navegante”, a subjacente simpatia do autor acusa reminiscências de infância. Em “As margens da alegria” e “Os cimos”, que se apartam do resto do volume em estrutura e propósitos, o autor existe para decifrar os pensamentos hieroglíficos do Menino.
Essa série de substituições, procurações e disfarces, esse brincar de esconde-esconde não serve só de provocação e estímulo: habitua o leitor a dar a volta da história e a repensá-la. Qual não seria o caso de Nhinhinha narrado não pelo autor, compassivo mas ainda assim distante, e sim por Tiantônia? ou o do remador que embarca para nenhures, se glosado não por quem lhe sofre o desvario na própria carne, mas por um espectador chistoso como o de “Darandina”? Afinal, o próprio relato metamorfoseia-se em ação e enredo: haja vista a ambivalência e a evolução dos sentimentos do capanga Reivalino em relação ao patrão. Tem-se aí outra história à margem da primeira, de mistério não menos profundo que o do cavalo bebedor de cerveja.

Estrutura

Sabe o nosso autor, como poucos, graduar a emoção, criar suspenses, produzir a expectativa de catástrofes. Essa expectativa, porém, frequentemente não é satisfeita: as estórias acabam sem explosão, os conflitos esvaziam-se em resignação ou apaziguamento — e, contudo, o leitor não se sente frustrado. Em “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé”, “O cavalo que bebia cerveja”, “Luas-de-mel”, “Darandina”, “— Tarantão, meu patrão”, o conflito esperado deixa de se cumprir, o desfecho realiza-se no íntimo das personagens. Nesse corajoso — e convincente — emprego do anticlímax deve-se ver prova decisiva de mestria na arte de tramar histórias.
Outro motivo de beleza estrutural será o desenvolvimento paralelo de dois enredos que se completam e explicam, sendo que o secundário só se entrevê intervaladamente. Em “Luas-de-mel”, a chegada de uma moça raptada e o casamento realizado às pressas sob a ameaça de um ataque armado reacendem a sopitada ternura conjugal no velho fazendeiro que acolheu os fugitivos; em “Partida do audaz navegante”, a burlesca brincadeira inventada por uma criança desencadeia em duas outras uma incipiente paixão juvenil.
Armar um mistério no começo da narrativa para no fim satisfazer, por meio de uma explicação minuciosa, as exigências de um leitor raciocinante, é processo que Guimarães Rosa só excepcionalmente adota. Prefere esconder a explicação no título ou entre dois parênteses, sugeri-la em termos velados, fornecê-la por partes, antecipá-la do modo mais insólito. Gosta ainda de insinuar apenas uma das explanações possíveis, admitindo a plausibilidade de outras. Em qualquer destes casos, o leitor é forçado a abandonar a sua inércia, tornando-se colaborador.
Se quiséssemos representar a ação de cada conto por uma linha, obteríamos riscos bem variados, desde a reta simples até a parábola e a espiral. Em relação à primeira composição do volume, por exemplo, ela daria uma curva ondulante de acordo com as oscilações do pensamento do Menino. Quando, pela primeira vez, a intuição da intensidade do existir o leva a um auge, dá-se uma queda brusca, pela revelação da morte individual; vislumbrada uma possível compensação da vida da espécie, ei-lo em nova ascensão. Mas só por pouco tempo esse avatar lhe parece um remédio ao caos, pois outro mistério, revelado no ódio do bicho vivo ao morto, remergulha-o no abismo. Encadeados, os enigmas sucedem-se, e essa percepção aterra e consola sucessivamente.

Paulo Rónai, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras estória, de Guimarães Rosa

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