O
crítico Dante Moreira Leite assinalou, em Grande sertão:
veredas, a transcendência do modus narrandi adotado:
relatório feito pelo protagonista a um estranho que se limita a
ouvi-lo como o psicanalista ouve as confidências do paciente. “O
romance somente adquire sentido diante do interlocutor quase
silencioso que não interfere nas interpretações e nem na fabulação
de Riobaldo.” Analisando noutro estudo a novela “Campo geral”,
do nosso autor, escrita na terceira pessoa convencional da ficção,
mas que apreende apenas a experiência do menino Miguilim, ressalta
Dante Moreira Leite que o recurso era necessário, “pois a história
não poderia ser narrada pelo herói a não ser como evocação, e
isso (...) destruiria o seu núcleo fundamental, que é a perspectiva
da criança”.
Teve
toda razão o ensaísta ao apontar nessas duas obras a importância
intrínseca do que poderíamos chamar o enfoque da história; a
observação pode ser generalizada em relação a todas as obras de
Guimarães Rosa, pois em todas elas o ponto de vista do narrador
constitui elemento essencial, mais de uma vez verdadeiro fio de
Ariadne.
Às
Primeiras estórias, especialmente, a constante variação da
perspectiva confere descomunal riqueza de cambiantes, muitas vezes um
elemento suplementar de mistério. Algumas, segundo toda a evidência,
têm raízes em experiências pessoais do autor e envolvem sua
participação direta, ainda que não muito intensa. O máximo de sua
presença ativa note-se em “Pirlimpsiquice”: ainda assim, ele
funciona menos a título individual do que como parte de uma
coletividade. Noutros casos desempenha o papel de figurante passivo
(“Famigerado”), presenciador inconsciente (“Nenhum, nenhuma”),
testemunha e comentador (“Fatalidade”, “A menina de lá”),
evocador e exegeta.
À
primeira pessoa da narração pode corresponder o eu — não do
autor, e sim de um relator nominalmente designado cuja personalidade
se vai delineando paralelamente ao desenrolar-se da ação
(“Luas-de-mel”, “O cavalo que bebia cerveja”, “—Tarantão,
meu patrão”), ou a pessoas sem nome mas possuidoras de
personalidade, como o narrador de “O espelho”, em que vamos
identificando um desses solitários autodidatas da província que se
emaranham nos fios de suas infindáveis especulações, ou o de “A
terceira margem do rio”, que se vem contagiando com a demência do
pai. Dos outros eus, o de “Darandina” tem seus pontos de contato
com o autor, de quem partilha (e exagera) as fantasias verbais e o
pendor filosofante; o de “A benfazeja”, revelador dos sentimentos
inconfessados de uma comunidade, parece mais uma personificação do
que uma pessoa.
Nas
estórias contadas em terceira pessoa observam-se também
divergências no grau de participação do invisível narrador. Se a
sua parte, em “Seqüência” ou em “Substância”, se reduz à
onipresença e à onisciência convencionais do ficcionista, em
“Sorôco, sua mãe, sua filha” e “Os irmãos Dagobé” diz
respeito antes a um membro não individualizado da multidão a
testemunhar os fatos contados. Em “Partida do audaz navegante”, a
subjacente simpatia do autor acusa reminiscências de infância. Em
“As margens da alegria” e “Os cimos”, que se apartam do resto
do volume em estrutura e propósitos, o autor existe para decifrar os
pensamentos hieroglíficos do Menino.
Essa
série de substituições, procurações e disfarces, esse brincar de
esconde-esconde não serve só de provocação e estímulo: habitua o
leitor a dar a volta da história e a repensá-la. Qual não seria o
caso de Nhinhinha narrado não pelo autor, compassivo mas ainda assim
distante, e sim por Tiantônia? ou o do remador que embarca para
nenhures, se glosado não por quem lhe sofre o desvario na própria
carne, mas por um espectador chistoso como o de “Darandina”?
Afinal, o próprio relato metamorfoseia-se em ação e enredo: haja
vista a ambivalência e a evolução dos sentimentos do capanga
Reivalino em relação ao patrão. Tem-se aí outra história à
margem da primeira, de mistério não menos profundo que o do cavalo
bebedor de cerveja.
Estrutura
Sabe
o nosso autor, como poucos, graduar a emoção, criar suspenses,
produzir a expectativa de catástrofes. Essa expectativa, porém,
frequentemente não é satisfeita: as estórias acabam sem explosão,
os conflitos esvaziam-se em resignação ou apaziguamento — e,
contudo, o leitor não se sente frustrado. Em “Famigerado”, “Os
irmãos Dagobé”, “O cavalo que bebia cerveja”, “Luas-de-mel”,
“Darandina”, “— Tarantão, meu patrão”, o conflito
esperado deixa de se cumprir, o desfecho realiza-se no íntimo das
personagens. Nesse corajoso — e convincente — emprego do
anticlímax deve-se ver prova decisiva de mestria na arte de tramar
histórias.
Outro
motivo de beleza estrutural será o desenvolvimento paralelo de dois
enredos que se completam e explicam, sendo que o secundário só se
entrevê intervaladamente. Em “Luas-de-mel”, a chegada de uma
moça raptada e o casamento realizado às pressas sob a ameaça de um
ataque armado reacendem a sopitada ternura conjugal no velho
fazendeiro que acolheu os fugitivos; em “Partida do audaz
navegante”, a burlesca brincadeira inventada por uma criança
desencadeia em duas outras uma incipiente paixão juvenil.
Armar
um mistério no começo da narrativa para no fim satisfazer, por meio
de uma explicação minuciosa, as exigências de um leitor
raciocinante, é processo que Guimarães Rosa só excepcionalmente
adota. Prefere esconder a explicação no título ou entre dois
parênteses, sugeri-la em termos velados, fornecê-la por partes,
antecipá-la do modo mais insólito. Gosta ainda de insinuar apenas
uma das explanações possíveis, admitindo a plausibilidade de
outras. Em qualquer destes casos, o leitor é forçado a abandonar a
sua inércia, tornando-se colaborador.
Se
quiséssemos representar a ação de cada conto por uma linha,
obteríamos riscos bem variados, desde a reta simples até a parábola
e a espiral. Em relação à primeira composição do volume, por
exemplo, ela daria uma curva ondulante de acordo com as oscilações
do pensamento do Menino. Quando, pela primeira vez, a intuição da
intensidade do existir o leva a um auge, dá-se uma queda brusca,
pela revelação da morte individual; vislumbrada uma possível
compensação da vida da espécie, ei-lo em nova ascensão. Mas só
por pouco tempo esse avatar lhe parece um remédio ao caos, pois
outro mistério, revelado no ódio do bicho vivo ao morto,
remergulha-o no abismo. Encadeados, os enigmas sucedem-se, e essa
percepção aterra e consola sucessivamente.
Paulo Rónai, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras estória, de Guimarães Rosa
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