Os
cientistas pisam o chão de sua terra como se fosse a primeira vez em
um sábado, 8 de dezembro de 1821. Estavam na Europa desde agosto, e,
depois de tanta mata sibilando e trovões e insetos zunindo, tanto
desconforto, aquele chão parecera por muito tempo um lugar de
sonhos, um chão que desvanecia a cada dia, que feito de nuvens
desaparecia a cada passo. Era possível perceber a felicidade deles
pelo regresso, uma felicidade contida, nada ruidosa, mas que parecia
emanar dos seus corpos como uma espécie de calor. Essa ventura, no
entanto, não contagiava os companheiros da longa viagem, as
crianças, os bichos e menos ainda os espíritos dos mortos que os
acompanhavam. E, por mais que parecesse brotar de suas peles, ainda
assim não tinha o poder de faiscar nos olhos de Spix. Ele parecia
pressentir que pisava de novo aquela terra que era sua para morrer,
sem que as glórias prometidas e sonhadas pudessem resgatá-lo. Como
as crianças e os bichos, ele estava exausto. O sertão e a floresta
minaram sua saúde. Era um morto que andava.
A
intenção era que a Europa pudesse admirar aquele deslumbre de vida
que há muito perdera. A Europa era velha, muito velha, reumática,
quiçá sofrendo alguma moléstia cancerosa. E aquilo que os
cientistas traziam consigo era uma promessa, uma fonte da juventude,
novíssima pedra filosofal. Quando Martius comprara crianças, não
pensara nos escrúpulos de Spix, que desaprovara a ideia com uma
frase ríspida: Não somos traficantes. Pensara que para a ciência
toda consciência deveria ser relativa. E pensara em Goethe, que
certamente haveria de gostar de receber uma daquelas crianças
exóticas para observações. O poeta, sempre tão generoso, havia
sido para Martius um alento nas noites da floresta em que, atenção
voltada ao céu do hemisfério Sul, se sentira ao mesmo tempo
maravilhado e oprimido pela solidez da mata, que muitas vezes se
apresentava escura como o inferno, emaranhada como o caos, irritante
e maligna em sua formação natural. Goethe, ao contrário, iluminara
como um farol de luz segura e certa o seu trabalho de recortar numa
coleção lógica um assombro medido, uma inteligibilidade no meio da
perturbação. Trouxera consigo, na aventura de desbravar o Brasil,
além do violino, o primeiro volume do Fausto, pressentindo
que para atravessar aquele outro mundo, e a ele sobreviver, seria
necessário, de algum modo, ser pactário. Trouxera também um
exemplar de A metamorfose das plantas, que lhe inspiraria não
só o fazer científico, mas também a feitura de seus próprios
poemas.
“Obnubila-te,
amada, a mistura de milhares de formas dessa multidão de flores
sobre o jardim;”
A
voz jovial e grave de Martius imprimia uma entonação clara à
Metamorfose engendrada por Goethe. Sua voz, num crescente,
enchendo o quarto, o paço, o sertão, a floresta, qualquer lugar em
que se pusesse a recitar e recordar a língua que era sua. O
cientista se considerava um homem feliz na grande aventura de sua
vida. Feliz naquela terra assustadora e pródiga, nunca igual ou
monótona. Bem-aventurado entre suas amadas palmeiras, os seres que
considerava os mais perfeitos de toda a criação. E ainda afortunado
por proporcionar ao amigo Goethe, o grande poeta, sim, alguma
felicidade com seus relatos, com as novas que lhe enviava de tempos
em tempos nas cartas, com o presente que levaria para ele, uma
lembrança de como sua obra, seu apoio, foram importantes naquela
expedição, dando-lhe renovadas forças diante do misterioso sertão,
perante a assombrosa floresta. Mas nem tudo saíra como o planejado,
é certo.
Quando
Iñe-e pisa o chão de Munique, ela não olha para o céu nem para as
construções dos brancos, que a tornam simultaneamente arrogante e
feia, como toda cidade dos inimigos se figurava para ela, fosse Belém
do Pará ou Lisboa, Barcelona ou a Vila de Ega. O frio lhe vergava as
costas. E ela se sentia doente de estar longe, debilitada por tantos
caminhos.
Por
que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos? Tivesse se tornado onça
naquele dia já distante em que a pegaram e a levaram de casa, ali
nem estaria. Teria matado a todos. Ela, Tai-tipai uu, assomada e
translúcida fera de palavras, rugidos, garras e dentes. Ela, não
mais Iñe-e, uma menina-jaguar, mataria, sim. Mataria os cientistas
que se faziam de donos. Primeiro arrastaria os dois pelo cangote,
depois partiria suas colunas a dentes. E, na raiva que sentia, teria
matado até mesmo o próprio pai, que a trocara como inimiga junto
aos filhos dos inimigos. E mataria os frades e também o homem que
colocou a todos numa fileira, cingidos por cordas. E mataria aquele
que a agarrou quando ela quis fugir. Só pouparia as crianças, as
mulheres, as avós e os avôs gerais. Nenhum outro homem ficaria de
pé, porque bem sabia que o macho pertence à guerra do mesmo modo
que a guerra pertence ao macho. Na ocasião de seu extravio, bem que
tentou chamar a onça, como tentava agora, adentrando em Munique.
Primeiro gritando, entre dentes, depois convocando baixinho e, por
fim, invocando dentro de si mesma o animal que ali habitava,
Tai-tipai
uu! Tai-tipai uu!
Mas
nada acontecera daquela vez nem agora, Tipai uu não aparecera,
Tai-tipai uu não a tomara, não fizera aparecer a jaguara debaixo de
sua pele, saltando para fora com seu pelo lustroso, seus olhos
solares, suas garras e dentes pontiagudos como arma da melhor
qualidade. Talvez porque não dera tempo, talvez porque não fosse
dado a crianças virar sequer jaguatiricas, e, sem a Onça Grande lhe
permitir que onça saísse de dentro da vida dela, sua pena, ao que
parecia, era se amofinar.
Não
olhe o céu!, ela diz para si mesma ao pisar o chão de Munique, e
acabrunha a cabeça em direção ao peito, se escondendo dos olhos
curiosos dos brancos. Sente medo deles. O coração em corrida
apavorada, coração de caça dentro do mato, o caminho de folhas e
cipós e raízes, corredeiras, as picadas se abrindo e se fechando,
os paus estralando, zagaias e, ali dentro, tão quente e úmido, até
que o frio, as mãos dos caçadores chegaram e o encurralaram.
Não
olhe o céu, Iñe-e! E assim ela permanece, a boca entreaberta, os
olhos no chão, a dor pesando em cada fibra, carne cheia de dor e
lamento pisando aquele chão sem nenhuma felicidade, um chão que
parece mais duro que qualquer outro.
Alheios
aos sentimentos da menina e vencidos pelo cansaço e pelo avançado
da noite, Spix e Martius consideram que por ora é mais prudente se
instalar em uma hospedaria. No centro da cidade, na Weinstrasse, se
acomodam na Pousada Galo de Ouro, que logo começa a receber curiosos
que anseiam por ver os dois exóticos trazidos pelos cientistas.
Quanto
sucesso que nem imaginamos existe pelo imenso mundo. Serão criaturas
de Deus?, pergunta a estalajadeira.
Deixemos
que os apreciem por cortesia, Martius. Não considero correto que
cobremos ingresso para exibi-los. Somos homens da ciência.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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