sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O som do rugido da onça | XIII

Os cientistas pisam o chão de sua terra como se fosse a primeira vez em um sábado, 8 de dezembro de 1821. Estavam na Europa desde agosto, e, depois de tanta mata sibilando e trovões e insetos zunindo, tanto desconforto, aquele chão parecera por muito tempo um lugar de sonhos, um chão que desvanecia a cada dia, que feito de nuvens desaparecia a cada passo. Era possível perceber a felicidade deles pelo regresso, uma felicidade contida, nada ruidosa, mas que parecia emanar dos seus corpos como uma espécie de calor. Essa ventura, no entanto, não contagiava os companheiros da longa viagem, as crianças, os bichos e menos ainda os espíritos dos mortos que os acompanhavam. E, por mais que parecesse brotar de suas peles, ainda assim não tinha o poder de faiscar nos olhos de Spix. Ele parecia pressentir que pisava de novo aquela terra que era sua para morrer, sem que as glórias prometidas e sonhadas pudessem resgatá-lo. Como as crianças e os bichos, ele estava exausto. O sertão e a floresta minaram sua saúde. Era um morto que andava.
A intenção era que a Europa pudesse admirar aquele deslumbre de vida que há muito perdera. A Europa era velha, muito velha, reumática, quiçá sofrendo alguma moléstia cancerosa. E aquilo que os cientistas traziam consigo era uma promessa, uma fonte da juventude, novíssima pedra filosofal. Quando Martius comprara crianças, não pensara nos escrúpulos de Spix, que desaprovara a ideia com uma frase ríspida: Não somos traficantes. Pensara que para a ciência toda consciência deveria ser relativa. E pensara em Goethe, que certamente haveria de gostar de receber uma daquelas crianças exóticas para observações. O poeta, sempre tão generoso, havia sido para Martius um alento nas noites da floresta em que, atenção voltada ao céu do hemisfério Sul, se sentira ao mesmo tempo maravilhado e oprimido pela solidez da mata, que muitas vezes se apresentava escura como o inferno, emaranhada como o caos, irritante e maligna em sua formação natural. Goethe, ao contrário, iluminara como um farol de luz segura e certa o seu trabalho de recortar numa coleção lógica um assombro medido, uma inteligibilidade no meio da perturbação. Trouxera consigo, na aventura de desbravar o Brasil, além do violino, o primeiro volume do Fausto, pressentindo que para atravessar aquele outro mundo, e a ele sobreviver, seria necessário, de algum modo, ser pactário. Trouxera também um exemplar de A metamorfose das plantas, que lhe inspiraria não só o fazer científico, mas também a feitura de seus próprios poemas.
Obnubila-te, amada, a mistura de milhares de formas dessa multidão de flores sobre o jardim;”
A voz jovial e grave de Martius imprimia uma entonação clara à Metamorfose engendrada por Goethe. Sua voz, num crescente, enchendo o quarto, o paço, o sertão, a floresta, qualquer lugar em que se pusesse a recitar e recordar a língua que era sua. O cientista se considerava um homem feliz na grande aventura de sua vida. Feliz naquela terra assustadora e pródiga, nunca igual ou monótona. Bem-aventurado entre suas amadas palmeiras, os seres que considerava os mais perfeitos de toda a criação. E ainda afortunado por proporcionar ao amigo Goethe, o grande poeta, sim, alguma felicidade com seus relatos, com as novas que lhe enviava de tempos em tempos nas cartas, com o presente que levaria para ele, uma lembrança de como sua obra, seu apoio, foram importantes naquela expedição, dando-lhe renovadas forças diante do misterioso sertão, perante a assombrosa floresta. Mas nem tudo saíra como o planejado, é certo.
Quando Iñe-e pisa o chão de Munique, ela não olha para o céu nem para as construções dos brancos, que a tornam simultaneamente arrogante e feia, como toda cidade dos inimigos se figurava para ela, fosse Belém do Pará ou Lisboa, Barcelona ou a Vila de Ega. O frio lhe vergava as costas. E ela se sentia doente de estar longe, debilitada por tantos caminhos.
Por que Iñe-e, que era livre, agora tinha donos? Tivesse se tornado onça naquele dia já distante em que a pegaram e a levaram de casa, ali nem estaria. Teria matado a todos. Ela, Tai-tipai uu, assomada e translúcida fera de palavras, rugidos, garras e dentes. Ela, não mais Iñe-e, uma menina-jaguar, mataria, sim. Mataria os cientistas que se faziam de donos. Primeiro arrastaria os dois pelo cangote, depois partiria suas colunas a dentes. E, na raiva que sentia, teria matado até mesmo o próprio pai, que a trocara como inimiga junto aos filhos dos inimigos. E mataria os frades e também o homem que colocou a todos numa fileira, cingidos por cordas. E mataria aquele que a agarrou quando ela quis fugir. Só pouparia as crianças, as mulheres, as avós e os avôs gerais. Nenhum outro homem ficaria de pé, porque bem sabia que o macho pertence à guerra do mesmo modo que a guerra pertence ao macho. Na ocasião de seu extravio, bem que tentou chamar a onça, como tentava agora, adentrando em Munique. Primeiro gritando, entre dentes, depois convocando baixinho e, por fim, invocando dentro de si mesma o animal que ali habitava,
Tai-tipai uu! Tai-tipai uu!
Mas nada acontecera daquela vez nem agora, Tipai uu não aparecera, Tai-tipai uu não a tomara, não fizera aparecer a jaguara debaixo de sua pele, saltando para fora com seu pelo lustroso, seus olhos solares, suas garras e dentes pontiagudos como arma da melhor qualidade. Talvez porque não dera tempo, talvez porque não fosse dado a crianças virar sequer jaguatiricas, e, sem a Onça Grande lhe permitir que onça saísse de dentro da vida dela, sua pena, ao que parecia, era se amofinar.
Não olhe o céu!, ela diz para si mesma ao pisar o chão de Munique, e acabrunha a cabeça em direção ao peito, se escondendo dos olhos curiosos dos brancos. Sente medo deles. O coração em corrida apavorada, coração de caça dentro do mato, o caminho de folhas e cipós e raízes, corredeiras, as picadas se abrindo e se fechando, os paus estralando, zagaias e, ali dentro, tão quente e úmido, até que o frio, as mãos dos caçadores chegaram e o encurralaram.
Não olhe o céu, Iñe-e! E assim ela permanece, a boca entreaberta, os olhos no chão, a dor pesando em cada fibra, carne cheia de dor e lamento pisando aquele chão sem nenhuma felicidade, um chão que parece mais duro que qualquer outro.
Alheios aos sentimentos da menina e vencidos pelo cansaço e pelo avançado da noite, Spix e Martius consideram que por ora é mais prudente se instalar em uma hospedaria. No centro da cidade, na Weinstrasse, se acomodam na Pousada Galo de Ouro, que logo começa a receber curiosos que anseiam por ver os dois exóticos trazidos pelos cientistas.
Quanto sucesso que nem imaginamos existe pelo imenso mundo. Serão criaturas de Deus?, pergunta a estalajadeira.
Deixemos que os apreciem por cortesia, Martius. Não considero correto que cobremos ingresso para exibi-los. Somos homens da ciência.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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