sábado, 19 de fevereiro de 2022

Eu te amo


Com o passar do tempo, todos os sonhos dele poderiam ter se realizado e ele poderia ter se unido à mulher amada, mas o caminho era longo e não levou a nada. A única coisa que o acompanhou por todo aquele caminho longo e estéril foi uma imagem de revista com a fotografia da mulher amada, e ainda por cima no trabalho dele só algumas pessoas sabiam quem era ela — um par de pernas, e só isso, bem roliças, sem meias, com sandálias de salto alto; ela mesma havia se reconhecido na hora, sua bolsinha e a barra do vestido. Como ela adivinhou que haviam fotografado sua metade inferior? O fotógrafo havia corrido na rua e clicado uma vez, outra, depois publicou só a saia e as pernas dela. Ele, a pessoa de quem estou falando, guardava essa foto em casa sobre a mesa, presa com tachinhas, e a esposa não o contradizia em nada, ainda que fosse uma mulher severa e mandasse em toda a família, até na mãe, e depois nos filhos, sem falar nos parentes distantes e nos alunos. Porém, era uma dona de casa boa, acolhedora, generosa, só que não dava sossego aos filhos, e a mãe vivia tranquila com ela, deitava na caminha, lia para os netinhos enquanto podia, aproveitava o calor, a calma, a televisão. Depois, passou muito tempo morrendo resignadamente, já quase não mexia a cabeça, e um dia se foi em silêncio.
Quanto a ele, depois de enterrar a sogra, ficou pacientemente esperando que a mulher morresse. Por algum motivo ele sabia que ela morreria e o libertaria, e ele se preparava para isso de forma muito ativa: levava uma vida esportiva e saudável, corria de manhã, até brincava com halteres, mantinha uma dieta rigorosa e com isso conseguia trabalhar muito e chegou a ser chefe do departamento, viajava para o exterior — e esperava. Sua escolhida, uma loira bonitinha e roliça, era o sonho de todos os homens e quase uma Marilyn Monroe, trabalhava bem ao lado dele e às vezes o acompanhava nas viagens a trabalho — e ali começava a verdadeira vida: restaurantes, hotéis, passeios e compras, simpósios e excursões. Que saudade ele sentia todas as noites, ao voltar do paraíso para o inferno, para o ninho pobre e quente onde turbilhonava a vida em família, atravancada, pesada, em que as crianças adoeciam, enlouquecidas e enfurecidas, atrapalhando a concentração, e eles precisavam acalmá-las; a situação chegava a ponto de ter que recorrer ao cinto, e depois o pai se sentia ainda mais humilhado e ofendido. A própria esposa gritava com as crianças, a esposa não tinha tempo para nada, mal conseguia dar a volta na casa inteira. Como em toda família que se preze, ali também moravam uma gata e um cachorro, e a gata dava miados roucos a noite toda quando estava no cio, e o cachorrinho latia cada vez que chegava o elevador, e justamente à noite aquela família era especialmente desagradável para o pai: ele ficava deitado na cama e, submergindo em sonhos saudosos, ansiava pelo corpo, pela tranquilidade, pelos encantos que emanavam daquela amiga ilícita durante as viagens. Quando não estavam juntos, a loira também era perseguida pela vida: o marido e a sogra subiam no pescoço dela, a sogra a obrigava a esfregar o apartamento inteiro aos sábados, a ponto de limpar os azulejos do banheiro com amônia! O marido bebia demais e não deixava a coitada ir às festas do trabalho, aniversários etc., sempre fazia escândalo antes das viagens a trabalho, desconfiava, ele e a sogra a pressionavam, como Cila e Caríbdis; além disso, eles ainda faziam escândalos entre si, o marido e a mãe. A sogra importunava a pobre loira, perguntava por que o marido dela nunca beliscava alguma coisa quando bebia, e comia pouco em geral, até disso ela era culpada! No trabalho a loira reclamava muito pouco, era discreta e não desabafava com ele diretamente, como fazia a esposa. Existem mulheres assim, ele pensava, esparramado na cama, o marido solitário, e atrás da parede choravam e se esgoelavam os filhos dele dormindo, um menino e uma menina, e a esposa cardíaca roncava, cada vez mais velha e cada vez mais amorosa. Para a mente é inconcebível que ela, uma velha de quarenta e tantos anos, o amasse e cuidasse tanto dele! Parece que ela nunca acreditou que ele a amava, que aquele homem chique, com as têmporas grisalhas, fosse marido dela, e sempre se apagava e se recusava a ir com ele para qualquer lugar. Ela costurava vestidos para si mesma, sempre com o mesmo corte simples, longos e folgados, para esconder a gordura e os remendos nas meias, para as quais sempre faltava dinheiro. Na língua dos inúmeros convidados e parentes, isso se chamava “vestir-se com bom gosto e discrição”; os convidados vinham em multidões em todas as festas, adoravam os salgadinhos dela, os pãezinhos e as saladas — eram todos convidados dela, amigos de escola, da mesma idade, parentes — eles se lembravam dela jovem, bonita, com covinhas, com uma trança grossa, e não reparavam que ela já não era mais a mesma, já tinha se apagado.
Na verdade, ela já havia descartado a trança e as covinhas fazia muito tempo, cuidava do marido e da mãe, tomava conta dos filhos, corria para comprar alimentos frescos na feira para ele, senhor da sua vida, e não tinha tempo de ir a lugar nenhum, mas por algum milagre sempre chegava na hora em todos os lugares, e assim tentava viver em ordem — e, naturalmente, à noite ficava muito tempo com os livros na cozinha, depois de pôr a família inteira para dormir, fazendo algum trabalho extra naquelas mesmas noites, na mesma cozinha, ou preparando as aulas. Ao chegar do trabalho, ela contava histórias sobre seus alunos e às vezes cozinhava um balde de almôndegas e um balde de mingau, e os alunos vinham visitá-la, traziam flores, faziam um barulho tímido, comiam tudo o que houvesse e distraíam a professora com canções absurdas e coletivas. Mas isso acontecia quando o senhor estava fora em suas viagens a trabalho, e só nessas horas.
Quando os filhos nasceram, o menino e a menina, o primeiro pensamento dela foi o marido: levá-lo ao trabalho depois do café da manhã, recebê-lo com jantar na mesa quando chegava do trabalho, escutar tudo o que ele queria dizer. Houve só um intervalo, quando a mãe dela começou a morrer e no curso de três anos morreu; nesse momento ela abandonou tudo, e as coisas de alguma forma andaram, não se sabe como, e o pai da família, no café da manhã, comia sozinho o que havia na mesa, e também jantava sozinho, ele mesmo ajeitava algo e ia para o quarto carrancudo, mas mesmo assim foi o primeiro a carregar o caixão, e não se diferenciava do resto em sua tristeza genuína. Depois do enterro o quarto da mãe ficou vazio, fechado, não havia forças e também a dona da casa em silêncio resistia, dormia na sala com os filhos, ou melhor, ficava sempre sentada do mesmo jeito na cozinha — tinha perdido o sono.
Para o marido também foi um período difícil; seu amor começara a se queixar e a exigir uma vida familiar completa, independente, recusava-se a se trancar com ele no apartamento vazio de conhecidos, como já se acostumara a levá-la no intervalo do almoço, e até ia mais longe: ela estava flertando nos escritórios vizinhos e no bufê, e os homens, farejando uma “defesa enfraquecida”, na expressão dos colegas, abriram uma trilha para o escritório dela, e o telefone tocava, e alguém passava para dar uma carona e por aí vai. Nosso marido estava comendo o pão que o diabo amassou, estava roído de amor e dívidas, e adotou uma postura inflexível e obstinada no tratamento de sua amiga, apesar de às vezes chorar aliviado no ombro dela, se conseguisse. O que podia fazer? A esposa, em todo o seu desespero, notava que o marido havia murchado, que seu olhar estava perdido e que ele parecia totalmente fora do ar. A esposa voltou a si, rapidamente fez uma reforminha no quarto da mãe e lá se instalou com os filhos, e a sala voltou a ser um lugar de encontro, conversas e pequenas festas, e para os convidados o marido parecia um pai de crianças maravilhosas e chefe da casa (e não um cachorro abandonado e sem lar), e amado, um marido idolatrado como um semideus (e não o antepenúltimo pretendente na fila de uma mulher sem dono). Agora davam o café da manhã a ele antes de todos, de repente até foram costurados alguns vestidos novos de lã barata, aos domingos a esposa começou a levar os filhos para longos passeios, às vezes no parque, às vezes no circo, às vezes no planetário. Mas no quarto do marido, sobre a mesa, ainda estavam penduradas as perninhas nuas roliças sob a saia, e de saltos: ele não se rendia.
Por fim ouviu-se um trovão, e o marido da loira — “nosso marido”, como o casal clandestino o chamava — perdeu as estribeiras, enfureceu-se, perseguiu a loira com um machado, ela se trancou no banheiro até a noite, de noite deu um jeito de escapar de casa, ligou para o nosso herói de um telefone público, ele foi correndo encontrar com ela, voltou quase de manhã, e de manhã novamente foi tirado da cama por uma ligação terrível, como sempre são as ligações ao amanhecer: o marido havia sido encontrado enforcado na porta pela mãe. Claro que a pobre viúva recente passou o mês seguinte com uma espécie de família de amigos condoída; nosso herói mesmo assim não tomava a decisão de propor casamento, e ali, naquela família amigável, a anfitriã de alguma forma reuniu forças e expulsou a triste loira, bonitinha demais com sua palidez de luto, o que era insuportável observar pelos cantos, ainda mais porque o dono da casa começou a experimentar sentimentos platônicos de amizade e compaixão pela loira, o que era bem mais perigoso do que uma simples sujeira humana, entra e sai e pronto.
Não foi logo, mas tudo se acalmou. A loira ganhou seu próprio apartamento, alguém gostou do apartamento devastado da velha sogra, convenceram-na a trocar aquele lugar terrível por algo perto da sobrinha. A loira ganhou um apartamento mais distante e pior, mas só dela, e então nosso marido, nosso herói, precisava tomar uma decisão definitiva, sim ou não, e começar a reforma — móveis, instalação elétrica, vedação das janelas — no novíssimo apartamento de sua escolhida. Em vez disso ele começou a trabalhar com muito empenho em sua própria casa, colou papel de parede na sala com os filhos, retomou os exercícios físicos, ducha e corrida, passou a mostrar uma dedicação redobrada pelas crianças e a discipliná-las, porque sua descendência tinha crescido um pouco e começava a atrapalhar, era essa a questão. Com a loira ele permaneceu no papel de conselheiro e visitante, ela cuidou de tudo sozinha, aquilo a ocupava, ela se aconselhava, mostrava uns projetos, e já havia alguém que levava para ela, de carro, os azulejos de Mettlach para o banheiro e os móveis da cozinha. A loira estava avaliando bem a situação e não perdia ninguém de vista, pois tinha diante de si a perspectiva da solidão.
A foto estava sobre a mesa como antes, e o marido tinha até um dia fixo para visitar a loira — aliás, ele agora havia sido transferido para outro instituto onde recebia um bom salário, e a relação com o antigo local de trabalho tinha se complicado muito quando a loira precisou ser promovida, e receberia um aumento, mas não recebeu por causa da raiva geral. Ele saiu em sinal de protesto e prometeu levá-la para o seu trabalho com o tempo; a esposa não entendeu nada e ficou radiante de alívio, e na casa houve uma festa, assaram salgadinhos porque finalmente o marido tinha largado Aquela. Mas a foto ainda estava pendurada.
Ele saiu e se instalou bem no novo local de trabalho, as crianças estavam crescendo, esportivas, disciplinadas, adestradas, como acontece quando a família é estável e se assenta no culto ao pai com uma adoração reforçada e na submissão voluntária da mãe abnegada. A palavra do pai era a lei, e eles andavam seguindo uma ordem: o pai na frente, as crianças lado a lado, e atrás a mãe, acabada, chefiando a família à distância. Era uma alegria olhar para eles, mas a fotografia das perninhas ainda assim estava presente.
A mãe da família esperou até que o menino, o mais novo, entrasse na faculdade, e então se rendeu por completo, como a mãe dela havia feito. De pé na cozinha, ela desabou diante de todos um dia, começou a agonizar e assim continuou por três dias no hospital. A família, disciplinada e trabalhadora, se reagrupou, estabeleceu um sistema de turnos e foram contatados velhos amigos e parentes, alunos antigos e ainda devotados, e o marido arrancou sua esposa da beira da cova, da morte e do esquecimento. Quando a levaram para casa, ela já era uma velhinha miúda, só mexia a mão direita um pouco, não se entendia o que falava, e volta e meia seus olhos vertiam lágrimas. Ela parecia se desculpar por sua aparência naquela situação, se desculpava por toda a vida passada, por não poder criar nada para o seu semideus e no fim das contas cair naquela história de paralisia e arrastá-lo. Com o passar do tempo os moradores da casa se acostumaram àquele peso, ainda que às vezes se irritassem e gritassem um pouco uns com os outros: mesmo com todas aquelas comadres, com as limpezas diárias, as escaras e os pensamentos involuntários, por quantos anos iria se estender aquele estado animalesco ou vegetativo — esses pensamentos os atormentavam. O pai pareceu se tranquilizar de repente, a alma dele estava como que estacionada, todos os movimentos dele em volta da esposa eram fluidos, pacientes, a voz era suave. Os filhos ainda gritavam um pouco uns com os outros e com a mãe, eles tinham seus momentos de instabilidade, sentiam-se destituídos de mãe, ou seja, de uma base e suporte, e se tornaram pais inexperientes da própria mãe, ainda fracos, sentiam que algo ali não estava certo, não havia perspectiva; ou melhor, havia, mas era terrível. Os filhos acusavam um ao outro, lavavam a roupa suja, que lástima, na frente da mãe! Mas o zelo deles não afrouxou, e a paciente continuava limpa, fresca, punham um radinho debaixo do ouvido e às vezes liam em voz alta para ela; mas mesmo assim ela sempre chorava e tentava dizer algo só com os sons das vogais, sem a língua.
Na noite em que ela morreu e foi levada, o marido caiu na cama e adormeceu, e de repente ouviu que ela estava ali, deitada com a cabeça junto à dele no travesseiro, e disse: “Eu te amo”. Ele dormiu mais, teve um sono feliz e estava tranquilo e orgulhoso no enterro, apesar de ter emagrecido muito, e era honesto e firme, e no memorial, já em casa, diante de todas as pessoas reunidas, disse a todos que ela havia dito a ele “Eu te amo”. Todos congelaram porque sabiam que era a pura verdade — e a foto já não estava lá. A foto havia desaparecido da vida dele, havia desabado, perdera o interesse naquele momento, e ele, inesperadamente, ali à mesa, começou a mostrar a todos pequenas fotos de família apagadas, da esposa e dos filhos — todos aqueles passeios dos quais ele não havia participado, todas aquelas distrações, pobres mas felizes, pelos parques e planetários que ela organizava para as crianças, todas as tentativas dela de construir uma vida no pouco que havia restado para ela, naquela ilhazinha onde mantinha os filhos protegidos e onde precisava sempre se interpor no espaço à frente de todos, para encobrir a maldita foto da revista — mas ela havia ido embora, tudo havia acabado bem, e ela de todo jeito tinha conseguido dizer para ele a frase “Eu te amo”: sem palavras, já morta, mas tinha conseguido.

Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores

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