Com
o passar do tempo, todos os sonhos dele poderiam ter se realizado e
ele poderia ter se unido à mulher amada, mas o caminho era longo e
não levou a nada. A única coisa que o acompanhou por todo aquele
caminho longo e estéril foi uma imagem de revista com a fotografia
da mulher amada, e ainda por cima no trabalho dele só algumas
pessoas sabiam quem era ela — um par de pernas, e só isso, bem
roliças, sem meias, com sandálias de salto alto; ela mesma havia se
reconhecido na hora, sua bolsinha e a barra do vestido. Como ela
adivinhou que haviam fotografado sua metade inferior? O fotógrafo
havia corrido na rua e clicado uma vez, outra, depois publicou só a
saia e as pernas dela. Ele, a pessoa de quem estou falando, guardava
essa foto em casa sobre a mesa, presa com tachinhas, e a esposa não
o contradizia em nada, ainda que fosse uma mulher severa e mandasse
em toda a família, até na mãe, e depois nos filhos, sem falar nos
parentes distantes e nos alunos. Porém, era uma dona de casa boa,
acolhedora, generosa, só que não dava sossego aos filhos, e a mãe
vivia tranquila com ela, deitava na caminha, lia para os netinhos
enquanto podia, aproveitava o calor, a calma, a televisão. Depois,
passou muito tempo morrendo resignadamente, já quase não mexia a
cabeça, e um dia se foi em silêncio.
Quanto
a ele, depois de enterrar a sogra, ficou pacientemente esperando que
a mulher morresse. Por algum motivo ele sabia que ela morreria e o
libertaria, e ele se preparava para isso de forma muito ativa: levava
uma vida esportiva e saudável, corria de manhã, até brincava com
halteres, mantinha uma dieta rigorosa e com isso conseguia trabalhar
muito e chegou a ser chefe do departamento, viajava para o exterior —
e esperava. Sua escolhida, uma loira bonitinha e roliça, era o sonho
de todos os homens e quase uma Marilyn Monroe, trabalhava bem ao lado
dele e às vezes o acompanhava nas viagens a trabalho — e ali
começava a verdadeira vida: restaurantes, hotéis, passeios e
compras, simpósios e excursões. Que saudade ele sentia todas as
noites, ao voltar do paraíso para o inferno, para o ninho pobre e
quente onde turbilhonava a vida em família, atravancada, pesada, em
que as crianças adoeciam, enlouquecidas e enfurecidas, atrapalhando
a concentração, e eles precisavam acalmá-las; a situação chegava
a ponto de ter que recorrer ao cinto, e depois o pai se sentia ainda
mais humilhado e ofendido. A própria esposa gritava com as crianças,
a esposa não tinha tempo para nada, mal conseguia dar a volta na
casa inteira. Como em toda família que se preze, ali também moravam
uma gata e um cachorro, e a gata dava miados roucos a noite toda
quando estava no cio, e o cachorrinho latia cada vez que chegava o
elevador, e justamente à noite aquela família era especialmente
desagradável para o pai: ele ficava deitado na cama e, submergindo
em sonhos saudosos, ansiava pelo corpo, pela tranquilidade, pelos
encantos que emanavam daquela amiga ilícita durante as viagens.
Quando não estavam juntos, a loira também era perseguida pela vida:
o marido e a sogra subiam no pescoço dela, a sogra a obrigava a
esfregar o apartamento inteiro aos sábados, a ponto de limpar os
azulejos do banheiro com amônia! O marido bebia demais e não
deixava a coitada ir às festas do trabalho, aniversários etc.,
sempre fazia escândalo antes das viagens a trabalho, desconfiava,
ele e a sogra a pressionavam, como Cila e Caríbdis; além disso,
eles ainda faziam escândalos entre si, o marido e a mãe. A sogra
importunava a pobre loira, perguntava por que o marido dela nunca
beliscava alguma coisa quando bebia, e comia pouco em geral, até
disso ela era culpada! No trabalho a loira reclamava muito pouco, era
discreta e não desabafava com ele diretamente, como fazia a esposa.
Existem mulheres assim, ele pensava, esparramado na cama, o marido
solitário, e atrás da parede choravam e se esgoelavam os filhos
dele dormindo, um menino e uma menina, e a esposa cardíaca roncava,
cada vez mais velha e cada vez mais amorosa. Para a mente é
inconcebível que ela, uma velha de quarenta e tantos anos, o amasse
e cuidasse tanto dele! Parece que ela nunca acreditou que ele a
amava, que aquele homem chique, com as têmporas grisalhas, fosse
marido dela, e sempre se apagava e se recusava a ir com ele para
qualquer lugar. Ela costurava vestidos para si mesma, sempre com o
mesmo corte simples, longos e folgados, para esconder a gordura e os
remendos nas meias, para as quais sempre faltava dinheiro. Na língua
dos inúmeros convidados e parentes, isso se chamava “vestir-se com
bom gosto e discrição”; os convidados vinham em multidões em
todas as festas, adoravam os salgadinhos dela, os pãezinhos e as
saladas — eram todos convidados dela, amigos de escola, da mesma
idade, parentes — eles se lembravam dela jovem, bonita, com
covinhas, com uma trança grossa, e não reparavam que ela já não
era mais a mesma, já tinha se apagado.
Na
verdade, ela já havia descartado a trança e as covinhas fazia muito
tempo, cuidava do marido e da mãe, tomava conta dos filhos, corria
para comprar alimentos frescos na feira para ele, senhor da sua vida,
e não tinha tempo de ir a lugar nenhum, mas por algum milagre sempre
chegava na hora em todos os lugares, e assim tentava viver em ordem —
e, naturalmente, à noite ficava muito tempo com os livros na
cozinha, depois de pôr a família inteira para dormir, fazendo algum
trabalho extra naquelas mesmas noites, na mesma cozinha, ou
preparando as aulas. Ao chegar do trabalho, ela contava histórias
sobre seus alunos e às vezes cozinhava um balde de almôndegas e um
balde de mingau, e os alunos vinham visitá-la, traziam flores,
faziam um barulho tímido, comiam tudo o que houvesse e distraíam a
professora com canções absurdas e coletivas. Mas isso acontecia
quando o senhor estava fora em suas viagens a trabalho, e só nessas
horas.
Quando
os filhos nasceram, o menino e a menina, o primeiro pensamento dela
foi o marido: levá-lo ao trabalho depois do café da manhã,
recebê-lo com jantar na mesa quando chegava do trabalho, escutar
tudo o que ele queria dizer. Houve só um intervalo, quando a mãe
dela começou a morrer e no curso de três anos morreu; nesse momento
ela abandonou tudo, e as coisas de alguma forma andaram, não se sabe
como, e o pai da família, no café da manhã, comia sozinho o que
havia na mesa, e também jantava sozinho, ele mesmo ajeitava algo e
ia para o quarto carrancudo, mas mesmo assim foi o primeiro a
carregar o caixão, e não se diferenciava do resto em sua tristeza
genuína. Depois do enterro o quarto da mãe ficou vazio, fechado,
não havia forças e também a dona da casa em silêncio resistia,
dormia na sala com os filhos, ou melhor, ficava sempre sentada do
mesmo jeito na cozinha — tinha perdido o sono.
Para
o marido também foi um período difícil; seu amor começara a se
queixar e a exigir uma vida familiar completa, independente,
recusava-se a se trancar com ele no apartamento vazio de conhecidos,
como já se acostumara a levá-la no intervalo do almoço, e até ia
mais longe: ela estava flertando nos escritórios vizinhos e no bufê,
e os homens, farejando uma “defesa enfraquecida”, na expressão
dos colegas, abriram uma trilha para o escritório dela, e o telefone
tocava, e alguém passava para dar uma carona e por aí vai. Nosso
marido estava comendo o pão que o diabo amassou, estava roído de
amor e dívidas, e adotou uma postura inflexível e obstinada no
tratamento de sua amiga, apesar de às vezes chorar aliviado no ombro
dela, se conseguisse. O que podia fazer? A esposa, em todo o seu
desespero, notava que o marido havia murchado, que seu olhar estava
perdido e que ele parecia totalmente fora do ar. A esposa voltou a
si, rapidamente fez uma reforminha no quarto da mãe e lá se
instalou com os filhos, e a sala voltou a ser um lugar de encontro,
conversas e pequenas festas, e para os convidados o marido parecia um
pai de crianças maravilhosas e chefe da casa (e não um cachorro
abandonado e sem lar), e amado, um marido idolatrado como um semideus
(e não o antepenúltimo pretendente na fila de uma mulher sem dono).
Agora davam o café da manhã a ele antes de todos, de repente até
foram costurados alguns vestidos novos de lã barata, aos domingos a
esposa começou a levar os filhos para longos passeios, às vezes no
parque, às vezes no circo, às vezes no planetário. Mas no quarto
do marido, sobre a mesa, ainda estavam penduradas as perninhas nuas
roliças sob a saia, e de saltos: ele não se rendia.
Por
fim ouviu-se um trovão, e o marido da loira — “nosso marido”,
como o casal clandestino o chamava — perdeu as estribeiras,
enfureceu-se, perseguiu a loira com um machado, ela se trancou no
banheiro até a noite, de noite deu um jeito de escapar de casa,
ligou para o nosso herói de um telefone público, ele foi correndo
encontrar com ela, voltou quase de manhã, e de manhã novamente foi
tirado da cama por uma ligação terrível, como sempre são as
ligações ao amanhecer: o marido havia sido encontrado enforcado na
porta pela mãe. Claro que a pobre viúva recente passou o mês
seguinte com uma espécie de família de amigos condoída; nosso
herói mesmo assim não tomava a decisão de propor casamento, e ali,
naquela família amigável, a anfitriã de alguma forma reuniu forças
e expulsou a triste loira, bonitinha demais com sua palidez de luto,
o que era insuportável observar pelos cantos, ainda mais porque o
dono da casa começou a experimentar sentimentos platônicos de
amizade e compaixão pela loira, o que era bem mais perigoso do que
uma simples sujeira humana, entra e sai e pronto.
Não
foi logo, mas tudo se acalmou. A loira ganhou seu próprio
apartamento, alguém gostou do apartamento devastado da velha sogra,
convenceram-na a trocar aquele lugar terrível por algo perto da
sobrinha. A loira ganhou um apartamento mais distante e pior, mas só
dela, e então nosso marido, nosso herói, precisava tomar uma
decisão definitiva, sim ou não, e começar a reforma — móveis,
instalação elétrica, vedação das janelas — no novíssimo
apartamento de sua escolhida. Em vez disso ele começou a trabalhar
com muito empenho em sua própria casa, colou papel de parede na sala
com os filhos, retomou os exercícios físicos, ducha e corrida,
passou a mostrar uma dedicação redobrada pelas crianças e a
discipliná-las, porque sua descendência tinha crescido um pouco e
começava a atrapalhar, era essa a questão. Com a loira ele
permaneceu no papel de conselheiro e visitante, ela cuidou de tudo
sozinha, aquilo a ocupava, ela se aconselhava, mostrava uns projetos,
e já havia alguém que levava para ela, de carro, os azulejos de
Mettlach para o banheiro e os móveis da cozinha. A loira estava
avaliando bem a situação e não perdia ninguém de vista, pois
tinha diante de si a perspectiva da solidão.
A
foto estava sobre a mesa como antes, e o marido tinha até um dia
fixo para visitar a loira — aliás, ele agora havia sido
transferido para outro instituto onde recebia um bom salário, e a
relação com o antigo local de trabalho tinha se complicado muito
quando a loira precisou ser promovida, e receberia um aumento, mas
não recebeu por causa da raiva geral. Ele saiu em sinal de protesto
e prometeu levá-la para o seu trabalho com o tempo; a esposa não
entendeu nada e ficou radiante de alívio, e na casa houve uma festa,
assaram salgadinhos porque finalmente o marido tinha largado Aquela.
Mas a foto ainda estava pendurada.
Ele
saiu e se instalou bem no novo local de trabalho, as crianças
estavam crescendo, esportivas, disciplinadas, adestradas, como
acontece quando a família é estável e se assenta no culto ao pai
com uma adoração reforçada e na submissão voluntária da mãe
abnegada. A palavra do pai era a lei, e eles andavam seguindo uma
ordem: o pai na frente, as crianças lado a lado, e atrás a mãe,
acabada, chefiando a família à distância. Era uma alegria olhar
para eles, mas a fotografia das perninhas ainda assim estava
presente.
A
mãe da família esperou até que o menino, o mais novo, entrasse na
faculdade, e então se rendeu por completo, como a mãe dela havia
feito. De pé na cozinha, ela desabou diante de todos um dia, começou
a agonizar e assim continuou por três dias no hospital. A família,
disciplinada e trabalhadora, se reagrupou, estabeleceu um sistema de
turnos e foram contatados velhos amigos e parentes, alunos antigos e
ainda devotados, e o marido arrancou sua esposa da beira da cova, da
morte e do esquecimento. Quando a levaram para casa, ela já era uma
velhinha miúda, só mexia a mão direita um pouco, não se entendia
o que falava, e volta e meia seus olhos vertiam lágrimas. Ela
parecia se desculpar por sua aparência naquela situação, se
desculpava por toda a vida passada, por não poder criar nada para o
seu semideus e no fim das contas cair naquela história de paralisia
e arrastá-lo. Com o passar do tempo os moradores da casa se
acostumaram àquele peso, ainda que às vezes se irritassem e
gritassem um pouco uns com os outros: mesmo com todas aquelas
comadres, com as limpezas diárias, as escaras e os pensamentos
involuntários, por quantos anos iria se estender aquele estado
animalesco ou vegetativo — esses pensamentos os atormentavam. O pai
pareceu se tranquilizar de repente, a alma dele estava como que
estacionada, todos os movimentos dele em volta da esposa eram
fluidos, pacientes, a voz era suave. Os filhos ainda gritavam um
pouco uns com os outros e com a mãe, eles tinham seus momentos de
instabilidade, sentiam-se destituídos de mãe, ou seja, de uma base
e suporte, e se tornaram pais inexperientes da própria mãe, ainda
fracos, sentiam que algo ali não estava certo, não havia
perspectiva; ou melhor, havia, mas era terrível. Os filhos acusavam
um ao outro, lavavam a roupa suja, que lástima, na frente da mãe!
Mas o zelo deles não afrouxou, e a paciente continuava limpa,
fresca, punham um radinho debaixo do ouvido e às vezes liam em voz
alta para ela; mas mesmo assim ela sempre chorava e tentava dizer
algo só com os sons das vogais, sem a língua.
Na
noite em que ela morreu e foi levada, o marido caiu na cama e
adormeceu, e de repente ouviu que ela estava ali, deitada com a
cabeça junto à dele no travesseiro, e disse: “Eu te amo”. Ele
dormiu mais, teve um sono feliz e estava tranquilo e orgulhoso no
enterro, apesar de ter emagrecido muito, e era honesto e firme, e no
memorial, já em casa, diante de todas as pessoas reunidas, disse a
todos que ela havia dito a ele “Eu te amo”. Todos congelaram
porque sabiam que era a pura verdade — e a foto já não estava lá.
A foto havia desaparecido da vida dele, havia desabado, perdera o
interesse naquele momento, e ele, inesperadamente, ali à mesa,
começou a mostrar a todos pequenas fotos de família apagadas, da
esposa e dos filhos — todos aqueles passeios dos quais ele não
havia participado, todas aquelas distrações, pobres mas felizes,
pelos parques e planetários que ela organizava para as crianças,
todas as tentativas dela de construir uma vida no pouco que havia
restado para ela, naquela ilhazinha onde mantinha os filhos
protegidos e onde precisava sempre se interpor no espaço à frente
de todos, para encobrir a maldita foto da revista — mas ela havia
ido embora, tudo havia acabado bem, e ela de todo jeito tinha
conseguido dizer para ele a frase “Eu te amo”: sem palavras, já
morta, mas tinha conseguido.
Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores
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