quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Capítulo Primeiro | “ELES”


A
E
I
O
Um verão de dezembro enrodilhava tudo com um abraço de calor, com um asfixiar aquecido que enrolava a rua, as casas, as árvores e até começava a esquentar a sombra das coisas com uma mornidez espreguicenta.
E por ser dezembro e por ser verão e por ser manhã, já desperta fazia tempo pelos galos alheios, foi que Ananias esfregou um pé no outro e arregalou bem os olhos num contentamento quase infantil.
Tinha muito mais coisas atrás do verão, da manhã e do calor. Acontece que Ananias sabia ser mais uma manhã de Natal.
E quando clareou de todo, Ananias se levantou e, não se contendo, sacudiu Antão, que dormia calmo, sem roncar nem nada, numa plácida beatitude. Seus olhos se abriram sem pressa e pareceram mais escuros por causa do rosto ensombrecido pela barba grande. Analisou friamente o rosto do outro, e o sorriso de Ananias foi morrendo, foi morrendo, e o rosto voltou ao comum das expressões. Tentou justificar-se:
Hoje...
Nada disse o outro.
Hoje é dia de Natal.
Antão estirou as pernas compridas e magras, sacudindo de lado as cobertas encardidas. Sentou-se na beira da cama e bumba, preparou o sermão. Antes, porém, Raça Dura veio da ponta da cama, miou um romão amigo e se aninhou no colo entre as mãos também compridas de Antão.
Você não toma jeito...
Ananias se coçou todo, com a alma, quase desanimado, foi até à janela e bastou empurrar, porque ela estava presa apenas por um papel enrolado.
Logo um dia sem-vergonha penetrou alegre, cantando verão. Ananias viu tudo lá fora, até a cerca de bambu emborcada no chão e apodrecendo no tempo.
Desvirou-se e, humildemente, encarou Antão. Doía perguntar, mas perguntou.
Quer dizer que não me comportei bem este ano?
Os longos cabelos de Antão acompanharam lentamente o menear da negação.
Quer dizer que este ano ainda não serei santo?
Ainda este ano você não será santo, Ananias. Ainda este ano, não...
Falava com tristeza absoluta e de tristeza também se encheu o olhar do outro. Por mais um bocadinho, chorava. Tombou a cabeça aos poucos.
Mas eu fiz o possível.
Não fez.
Fiz sim.
Acha mesmo que fez o possível?
Acho.
Pois eu não acho, e não vai aqui nenhuma injustiça. Sente-se, Ananias. Ali, bem defronte aos meus olhos.
Ananias obedeceu e a cama rangeu grungrunhenta.
Diga, meu irmão, o que você fez no dia 6 de fevereiro?
Eu plantei bananeira no fundo do quintal com a meninada.
Bem. E no dia 10 de maio?
Soltei papagaio com a meninada no meio da rua e levei uma carreira do caminhão da Light.
E 12 de setembro?
Joguei dois mil-réis na borboleta.
Então?
É.
Você procedeu apenas regular. Não foi perfeito. Portanto, vai esperar mais um ano. Tenho receios de que você nunca passará da condição de anjo, Ananias.
Veio humildade nos olhos do anjo.
Mas hoje é dia de Natal, Ricardo.
Antão não se zangou, mas sombras longínquas perpassaram seus olhos, que agora na luz eram claros.
Ridículo! Simplesmente ridículo. Nós prometemos, faz muito tempo. Não sou Ricardo e você não é Roberto, Ananias.
Mas mesmo assim não deixa de ser hoje o dia de Natal.
Natal é um dia como outro qualquer. Você se comporta como uma criança e nem parece um velho de 86 anos, Ananias.
Ananias, quase morto de triste, saiu. Abriu a porta da cozinha e danou-se a espiar a continuação da manhã. Lá fora o dia chegava sem alardes, mas tinha muita música. O mato crescia afogando a terra ressequida do quintal. Como crescera o mato tão depressa! Nos fundos, a cerca de bambus se encontrava mais deitada que em pé. Os coleiros se festejavam no capinzal num alarido miúdo, como se fossem bolinhas de gude se entrechocando.
Aproximou-se do tanque e abriu a bica. A água estava morna de ternura por causa do verão, que vinha grande. Lavou o rosto barbado. O contato das mãos na barba fez que se lembrasse que hoje era dia “daquilo”. Lavou a boca e entrou.
Incontinente, retornou à porta e, levantando a voz, fez minchinho! minchinho! minchinho! E do meio do capinzal amarelo uma gata também amarela, de olhos amarelos, comprida e magra, e cuja cauda se fosse mais comprida poderia balançar o corpo, veio de lá e se roçou na perna de Ananias.
Então ele disse:
Você não dormiu em casa, não foi? E eu fiquei muito preocupado, não sabe?
Dobrou-se e fez plim-plim-plim com as mãos no pelo da gata amarela.
Doçurou a voz e perguntou:
Sulamita, minha querida, você viu Tricolinete?
Nem foi preciso resposta, porque Tricolinete, parecendo adivinhar, subiu pela beira do valão; corria nas suas patinhas curtas e se achegou com muito cheiro natural de porco.
Ananias se abaixou de todo e se alisou na porquinha. Demorou dois dedos espremendo macio as orelhas da Tricolinete, enquanto murmurava quase grunhindo também:
Você sabe que eu lhe quero muito bem, não sabe, minha filha?
Tricolinete fora ganha quando ele fez um milagre, curando, com mijo novo de criança de menos de dez anos, a erisipela de Dona Pifânia. Mas logo que logo, ficou arrependido de ter pensado naquele orgulho todo, pois já que ele não era santo, só anjo, e anjo não fazia milagres. Só graça. Santo era Antão, que era duro e calmo de excessos.
A gata Sulamita continuava fazendo ronguim, ronguim, e não custava pegar no colo, pois que não custava mesmo, pegou.
Entretanto, Dona Bárbara botou a cabeça arrepiada por lá daquele lado da cerca, mostrando um sorriso bondoso na cara que ainda não tivera tempo de ser lavada, gritou:
Seu Ananias, viu minha galinha nanica? Bom dia.
Não vi, Dona Bárbara. Bom dia.
Acho que ela anda botando no seu mato. Bem lá, na beirinha do valão.
Vou e espio.
A galinha estava.
Apalpe para ver se está com ovo, por seu favor?
E enfiou o dedo e sentiu quente e viu que tinha ovo.
Tem sim, senhora.
Quer uma caneca de café?
Aceito sim. Duas. Antão já acordou.
Ela foi lá e voltou com as duas canecas. De alumínio uma era e a outra, de lata velha de chocolate em pó.
Hoje não tem aula, tem, seu Antão?
Hoje, não. É dia de Natal.
Então, boas festas para os senhores.
Muito obrigado. Para os seus também. Se ganhar uma folhinha de paisagem eu lhe dou.
Entrou.
A vida deles era aquela simplicidade compridamente.
Lembrou-se “daquilo”. Abriu a primeira gaveta da velha cômoda. Vazia. Abriu a outra. Vaziíssima. Abriu a terceira, e como era aquilo que estava procurando, foi bom. Apanhou, pois, a tesoura.
Antão botou com cuidado de cristal Raça Dura no chão e, passando por Ananias, que balançava a tesoura na mão direita, foi fazer as abluções da manhã. Parou também na porta e olhou. Nem se apressou com a manhã que tinha se adiantado e que estava mesmo muito bonita. O sol agora aureolava a festa dos coleiros e as cigarras brotavam de canto nos espinheiros mais longe. Fechou os olhos para ouvir num enlevo místico a beleza da música das coisas que só ele sabia escutar. Nem gostava de suspirar para ouvir tudo, no canto do seu silêncio, na natureza que começava a despertar.
Tomou prumo e caminhou para a bica. Tricolinete grungrunhou juntinho dele, mas nem se abaixou. Acariciar com os olhos é tão mais doce. Felizmente o dia estava quente e quase não chovia no verão. Pois se acontecia chover, ruim se tornava o dia e a noite. A casa goteirava toda e cada vez mais as telhas se abriam para a passagem das águas. Para ele não significava sofrer, mas para Ananias, que era anjo ainda, tornava-se duro suportar. E via o irmão emburrar e ficar às vezes uma semana com raiva da eternidade. Até que este ano Ananias tinha dado mostras de progresso e compreensão. Fruto da idade que avançava, naturalmente.
Voltou. Ananias, sentado numa cadeira velha, bem velha, mostrou a tesoura entre os dedos.
Concordou indiferente.
Hoje é dia.
E levaram a cadeira para bem fora e se sentaram ao sol, porque o sol faz bem.
Eu, primeiro?
Primeiro eu, Ananias.
Ananias começou a aparar os cabelos dele. E os cabelos iam caindo lindos, louros, no chão. Era difícil ver um cabelo branco. Raro mesmo.
Antão, que idade você vai mesmo fazer em janeiro?
Se eu sou mais velho que você, naturalmente 96 anos.
Todos os dias de Natal faziam aquilo. E sempre naquele dia Ananias ficava mais pressuroso. Veio a suave reprimenda.
Ananias, que pressa é essa?
Continuou a cortar sem a mesma animação. Eram bonitos os cabelos do irmão que se sujavam na terra.
Apareceu uma crise de ternura e Antão comentou:
Meu irmãozinho, não fique zangado. Você é bom. Você está com oitenta e seis anos e já é anjo. Ora, já é anjo desde os oitenta anos. Os outros só atingem isso depois de oitenta e cinco.
Ananias suspirou. Como desejava possuir a idade do irmão e ser santo em sua plenitude. Mas qual. Não por ser ruim e muito mais por ingenuidade...
Fosse porque fosse... Daquele jeito ele nunca chegaria a santo, mesmo que alcançasse os cem anos...
Mas também era bobagem. Ser santo era ser santo. E há cinco anos – no conceito de eternidade explicado por Antão – a idade não tinha tempo. E sentia que realmente não tinham envelhecido. Nem Antão na sua santidade, nem ele na graça de anjo.
Suas mãos expressivas e transparentes suspenderam o queixo do irmão e apararam um pouco a barba ainda mais loura.
A minha cresceu mais.
É engano, a minha é mais cacheada e se enrosca nas pontas.
A gente pode medir.
E mesmo que fosse, que importância teria?
Você sempre briga comigo.
Não é brigar. Você sempre faz pouco caso da minha barba, dizendo que ela é loura demais.
Riram e Antão acariciou a mão do irmão.
Você sempre criança.
Depois chegou a vez de Ananias, e Antão foi devagar cortando o cabelo dele.
Seus cabelos não se sujavam tanto no chão, porque eram mais escuros.

•••

De noite, Antão acendeu uma vela bem enorme. A sala se clareou. Sentou-se numa cadeira de fundo esburacado, mas muito boa para pensar. A luz banhou em cheio os olhos meio tristes do anjo que se sentara numa cadeira mais velha ainda e ficou analisando mais uma vez o interior da sala. Vendo a confusão das sombras que cresciam e diminuíam, conforme o balanço da chama.
Pouca coisa morava na sala. Uma cômoda com velas de todos os tamanhos e na parede o relógio, redondo e comido de cupim, parecia um velho queijo preto. Mostrava um resto de dourado no pêndulo parado e inútil. Sua impressionante mudez completa e... bastava dar um pouco de corda para que ele revivesse, trabalhasse e cantasse a música da sua monotonia.
Relembrou quantas vezes pedira ao irmão para fazer aquilo. Pelo menos na noite de hoje. Mas a noite de hoje fora proibida de lembrar qualquer coisa.
Não obstante a sala se impregnava de recordações, estava repleta de fantasmas. A sala tinha vida naquele vazio todo. Na mudez dos móveis e vestição de sombras.
Não conseguiu afastar para longe que hoje era o dia de Natal. As casas dos vizinhos pareciam ter morrido de silêncio. As casas dos vizinhos mais próximos se escondiam na noite apagada de todo. Todo mundo tinha saído.
Dia de presepe. Noite de Missa do Galo. Ninguém mandava ruído para demonstrar cordialidade. Lá fora só o abandono da noite quente de verão. O cheiro do capim ressecado. Estrelas fazendo figuras no céu. Talvez a Ursa Maior, na certa o Cruzeiro do Sul e provavelmente Escorpião. Ananias não sabia mais e, se tanto sabia, o culpado fora o Padre Roquete, que ensinara apontando o dedo para o céu. E ele com medo de que nascesse verruga no nariz do padre, e nunca que nascia. Só se nasceu depois.
Antão pensava calmo. E no que estaria pensando? Mal e mal os seus dedos percorriam o pelo de Raça Dura no seu colo.
Ananias voltou a fixar o relógio. Seus olhos se pregaram nos ponteiros e teve quase a impressão de que o relógio revivia. O seu áspero tic-tac quase chegava aos seus ouvidos, tal era a vontade de que o seu sonido quebrasse a dureza daquele abandono...
Um foguete estourou ao longe, dando um pequeno grito para o céu. Ananias estremeceu.
O relógio parado. O relógio parado. O relógio parado. A noite quieta e Antão pensando. A noite quieta e Antão pensando. A noite quieta e Antão pensando...
Outro foguete estourou mais forte.
Levantou-se e se postou olhando a noite.
Outro foguete ainda.
O relógio parado, a noite quieta e Antão pensando. E nem sentia vontade de cantar uma canção bonita. Falou devagar, quase para ele mesmo, para o pequenino mundo do seu abandono.
Dia de festa. Missa do Galo. De Papai Noel. Dia de presepe...
Antão se virou ternamente e observou as costas do anjo. Sabia que por pouco mais as lágrimas estourariam no silêncio. Sentiu pena da imperfeição do irmão e da sua infantilidade.
Ananias, venha cá.
Tornou a virar-se e fungou grande.
Puxe sua cadeira para perto da minha.
Ananias engoliu um pouco de lágrimas e limpou os olhos.
Eu vou falar com você, quer?
Engoliu menos lágrimas. Sentou-se perto.
De que você quer que eu fale?
O anjo pensou, pensou e nada disse.
Quer que eu conte uma história para você?
Ananias riu e disse que sim.
Conto o quê?
Conte de quando eu era pequenininho.
Você uma vez foi muito pequenininho.
Só? Só isso? É pouco, diga mais...
Antão foi contando assim, não da maneira de era uma vez, mas do modo da ternura que passeia pela rua do mais ou menos:
Quando você era pequenininho, era um nenê lindo. Tão gordo que fazia pulseirinha nos pulsos. Um nenê que ria por tudo. Eu sempre peguei você no colo. Vi você crescer. Na verdade foi o irmão de que eu mais gostei...
Ananias ouvia enlevado, porque aquilo era muito bonito mesmo. Possuía canções largas de infância, doçura de berço morno, uma ligação de amizade.
Antão falou mais um bocado e passou o braço nos ombros do irmão.
Meu irmãozinho.
Ananias escorregou mansamente a cabeça no colo de Antão. Seus dedos ficaram acariciando os seus cabelos por muito tempo. Os olhos de Ananias se fechavam e se abriam. Ananias olhava o relógio parado, sentia a noite quieta e Antão pensando, mas, dessa vez, acarinhando sua cabeça. Não tinha nem vontade de cantar, mesmo que soubesse todas as canções bonitas da vida. O sono começava a se enroscar nas pestanas e a vela caminhava para bem longe. O balanço das chamas confundia o branco das paredes manchadas. Fechou de vez as pálpebras no acalanto do sono feliz.

José Mauro de Vasconcelos, in Rua Descalça

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