A
E
I
O
Um
verão de dezembro enrodilhava tudo com um abraço de calor, com um
asfixiar aquecido que enrolava a rua, as casas, as árvores e até
começava a esquentar a sombra das coisas com uma mornidez
espreguicenta.
E
por ser dezembro e por ser verão e por ser manhã, já desperta
fazia tempo pelos galos alheios, foi que Ananias esfregou um pé no
outro e arregalou bem os olhos num contentamento quase infantil.
Tinha
muito mais coisas atrás do verão, da manhã e do calor. Acontece
que Ananias sabia ser mais uma manhã de Natal.
E
quando clareou de todo, Ananias se levantou e, não se contendo,
sacudiu Antão, que dormia calmo, sem roncar nem nada, numa plácida
beatitude. Seus olhos se abriram sem pressa e pareceram mais escuros
por causa do rosto ensombrecido pela barba grande. Analisou friamente
o rosto do outro, e o sorriso de Ananias foi morrendo, foi morrendo,
e o rosto voltou ao comum das expressões. Tentou justificar-se:
– Hoje...
Nada
disse o outro.
– Hoje
é dia de Natal.
Antão
estirou as pernas compridas e magras, sacudindo de lado as cobertas
encardidas. Sentou-se na beira da cama e bumba, preparou o sermão.
Antes, porém, Raça Dura veio da ponta da cama, miou um romão amigo
e se aninhou no colo entre as mãos também compridas de Antão.
– Você
não toma jeito...
Ananias
se coçou todo, com a alma, quase desanimado, foi até à janela e
bastou empurrar, porque ela estava presa apenas por um papel
enrolado.
Logo
um dia sem-vergonha penetrou alegre, cantando verão. Ananias viu
tudo lá fora, até a cerca de bambu emborcada no chão e apodrecendo
no tempo.
Desvirou-se
e, humildemente, encarou Antão. Doía perguntar, mas perguntou.
– Quer
dizer que não me comportei bem este ano?
Os
longos cabelos de Antão acompanharam lentamente o menear da negação.
– Quer
dizer que este ano ainda não serei santo?
– Ainda
este ano você não será santo, Ananias. Ainda este ano, não...
Falava
com tristeza absoluta e de tristeza também se encheu o olhar do
outro. Por mais um bocadinho, chorava. Tombou a cabeça aos poucos.
– Mas
eu fiz o possível.
– Não
fez.
– Fiz
sim.
– Acha
mesmo que fez o possível?
– Acho.
– Pois
eu não acho, e não vai aqui nenhuma injustiça. Sente-se, Ananias.
Ali, bem defronte aos meus olhos.
Ananias
obedeceu e a cama rangeu grungrunhenta.
– Diga,
meu irmão, o que você fez no dia 6 de fevereiro?
– Eu
plantei bananeira no fundo do quintal com a meninada.
– Bem.
E no dia 10 de maio?
– Soltei
papagaio com a meninada no meio da rua e levei uma carreira do
caminhão da Light.
– E
12 de setembro?
– Joguei
dois mil-réis na borboleta.
– Então?
– É.
– Você
procedeu apenas regular. Não foi perfeito. Portanto, vai esperar
mais um ano. Tenho receios de que você nunca passará da condição
de anjo, Ananias.
Veio
humildade nos olhos do anjo.
– Mas
hoje é dia de Natal, Ricardo.
Antão
não se zangou, mas sombras longínquas perpassaram seus olhos, que
agora na luz eram claros.
– Ridículo!
Simplesmente ridículo. Nós prometemos, faz muito tempo. Não sou
Ricardo e você não é Roberto, Ananias.
– Mas
mesmo assim não deixa de ser hoje o dia de Natal.
– Natal
é um dia como outro qualquer. Você se comporta como uma criança e
nem parece um velho de 86 anos, Ananias.
Ananias,
quase morto de triste, saiu. Abriu a porta da cozinha e danou-se a
espiar a continuação da manhã. Lá fora o dia chegava sem alardes,
mas tinha muita música. O mato crescia afogando a terra ressequida
do quintal. Como crescera o mato tão depressa! Nos fundos, a cerca
de bambus se encontrava mais deitada que em pé. Os coleiros se
festejavam no capinzal num alarido miúdo, como se fossem bolinhas de
gude se entrechocando.
Aproximou-se
do tanque e abriu a bica. A água estava morna de ternura por causa
do verão, que vinha grande. Lavou o rosto barbado. O contato das
mãos na barba fez que se lembrasse que hoje era dia “daquilo”.
Lavou a boca e entrou.
Incontinente,
retornou à porta e, levantando a voz, fez minchinho! minchinho!
minchinho! E do meio do capinzal amarelo uma gata também amarela, de
olhos amarelos, comprida e magra, e cuja cauda se fosse mais comprida
poderia balançar o corpo, veio de lá e se roçou na perna de
Ananias.
Então
ele disse:
– Você
não dormiu em casa, não foi? E eu fiquei muito preocupado, não
sabe?
Dobrou-se
e fez plim-plim-plim com as mãos no pelo da gata amarela.
Doçurou
a voz e perguntou:
– Sulamita,
minha querida, você viu Tricolinete?
Nem
foi preciso resposta, porque Tricolinete, parecendo adivinhar, subiu
pela beira do valão; corria nas suas patinhas curtas e se achegou
com muito cheiro natural de porco.
Ananias
se abaixou de todo e se alisou na porquinha. Demorou dois dedos
espremendo macio as orelhas da Tricolinete, enquanto murmurava quase
grunhindo também:
– Você
sabe que eu lhe quero muito bem, não sabe, minha filha?
Tricolinete
fora ganha quando ele fez um milagre, curando, com mijo novo de
criança de menos de dez anos, a erisipela de Dona Pifânia. Mas logo
que logo, ficou arrependido de ter pensado naquele orgulho todo, pois
já que ele não era santo, só anjo, e anjo não fazia milagres. Só
graça. Santo era Antão, que era duro e calmo de excessos.
A
gata Sulamita continuava fazendo ronguim, ronguim, e não custava
pegar no colo, pois que não custava mesmo, pegou.
Entretanto,
Dona Bárbara botou a cabeça arrepiada por lá daquele lado da
cerca, mostrando um sorriso bondoso na cara que ainda não tivera
tempo de ser lavada, gritou:
– Seu
Ananias, viu minha galinha nanica? Bom dia.
– Não
vi, Dona Bárbara. Bom dia.
– Acho
que ela anda botando no seu mato. Bem lá, na beirinha do valão.
– Vou
e espio.
A
galinha estava.
– Apalpe
para ver se está com ovo, por seu favor?
E
enfiou o dedo e sentiu quente e viu que tinha ovo.
– Tem
sim, senhora.
– Quer
uma caneca de café?
– Aceito
sim. Duas. Antão já acordou.
Ela
foi lá e voltou com as duas canecas. De alumínio uma era e a outra,
de lata velha de chocolate em pó.
– Hoje
não tem aula, tem, seu Antão?
– Hoje,
não. É dia de Natal.
– Então,
boas festas para os senhores.
– Muito
obrigado. Para os seus também. Se ganhar uma folhinha de paisagem eu
lhe dou.
Entrou.
A
vida deles era aquela simplicidade compridamente.
Lembrou-se
“daquilo”. Abriu a primeira gaveta da velha cômoda. Vazia. Abriu
a outra. Vaziíssima. Abriu a terceira, e como era aquilo que estava
procurando, foi bom. Apanhou, pois, a tesoura.
Antão
botou com cuidado de cristal Raça Dura no chão e, passando por
Ananias, que balançava a tesoura na mão direita, foi fazer as
abluções da manhã. Parou também na porta e olhou. Nem se apressou
com a manhã que tinha se adiantado e que estava mesmo muito bonita.
O sol agora aureolava a festa dos coleiros e as cigarras brotavam de
canto nos espinheiros mais longe. Fechou os olhos para ouvir num
enlevo místico a beleza da música das coisas que só ele sabia
escutar. Nem gostava de suspirar para ouvir tudo, no canto do seu
silêncio, na natureza que começava a despertar.
Tomou
prumo e caminhou para a bica. Tricolinete grungrunhou juntinho dele,
mas nem se abaixou. Acariciar com os olhos é tão mais doce.
Felizmente o dia estava quente e quase não chovia no verão. Pois se
acontecia chover, ruim se tornava o dia e a noite. A casa goteirava
toda e cada vez mais as telhas se abriam para a passagem das águas.
Para ele não significava sofrer, mas para Ananias, que era anjo
ainda, tornava-se duro suportar. E via o irmão emburrar e ficar às
vezes uma semana com raiva da eternidade. Até que este ano Ananias
tinha dado mostras de progresso e compreensão. Fruto da idade que
avançava, naturalmente.
Voltou.
Ananias, sentado numa cadeira velha, bem velha, mostrou a tesoura
entre os dedos.
Concordou
indiferente.
– Hoje
é dia.
E
levaram a cadeira para bem fora e se sentaram ao sol, porque o sol
faz bem.
– Eu,
primeiro?
– Primeiro
eu, Ananias.
Ananias
começou a aparar os cabelos dele. E os cabelos iam caindo lindos,
louros, no chão. Era difícil ver um cabelo branco. Raro mesmo.
– Antão,
que idade você vai mesmo fazer em janeiro?
– Se
eu sou mais velho que você, naturalmente 96 anos.
Todos
os dias de Natal faziam aquilo. E sempre naquele dia Ananias ficava
mais pressuroso. Veio a suave reprimenda.
– Ananias,
que pressa é essa?
Continuou
a cortar sem a mesma animação. Eram bonitos os cabelos do irmão
que se sujavam na terra.
Apareceu
uma crise de ternura e Antão comentou:
– Meu
irmãozinho, não fique zangado. Você é bom. Você está com
oitenta e seis anos e já é anjo. Ora, já é anjo desde os oitenta
anos. Os outros só atingem isso depois de oitenta e cinco.
Ananias
suspirou. Como desejava possuir a idade do irmão e ser santo em sua
plenitude. Mas qual. Não por ser ruim e muito mais por
ingenuidade...
Fosse
porque fosse... Daquele jeito ele nunca chegaria a santo, mesmo que
alcançasse os cem anos...
Mas
também era bobagem. Ser santo era ser santo. E há cinco anos – no
conceito de eternidade explicado por Antão – a idade não tinha
tempo. E sentia que realmente não tinham envelhecido. Nem Antão na
sua santidade, nem ele na graça de anjo.
Suas
mãos expressivas e transparentes suspenderam o queixo do irmão e
apararam um pouco a barba ainda mais loura.
– A
minha cresceu mais.
– É
engano, a minha é mais cacheada e se enrosca nas pontas.
– A
gente pode medir.
– E
mesmo que fosse, que importância teria?
– Você
sempre briga comigo.
– Não
é brigar. Você sempre faz pouco caso da minha barba, dizendo que
ela é loura demais.
Riram
e Antão acariciou a mão do irmão.
– Você
sempre criança.
Depois
chegou a vez de Ananias, e Antão foi devagar cortando o cabelo dele.
Seus
cabelos não se sujavam tanto no chão, porque eram mais escuros.
•••
De
noite, Antão acendeu uma vela bem enorme. A sala se clareou.
Sentou-se numa cadeira de fundo esburacado, mas muito boa para
pensar. A luz banhou em cheio os olhos meio tristes do anjo que se
sentara numa cadeira mais velha ainda e ficou analisando mais uma vez
o interior da sala. Vendo a confusão das sombras que cresciam e
diminuíam, conforme o balanço da chama.
Pouca
coisa morava na sala. Uma cômoda com velas de todos os tamanhos e na
parede o relógio, redondo e comido de cupim, parecia um velho queijo
preto. Mostrava um resto de dourado no pêndulo parado e inútil. Sua
impressionante mudez completa e... bastava dar um pouco de corda para
que ele revivesse, trabalhasse e cantasse a música da sua monotonia.
Relembrou
quantas vezes pedira ao irmão para fazer aquilo. Pelo menos na noite
de hoje. Mas a noite de hoje fora proibida de lembrar qualquer coisa.
Não
obstante a sala se impregnava de recordações, estava repleta de
fantasmas. A sala tinha vida naquele vazio todo. Na mudez dos móveis
e vestição de sombras.
Não
conseguiu afastar para longe que hoje era o dia de Natal. As casas
dos vizinhos pareciam ter morrido de silêncio. As casas dos vizinhos
mais próximos se escondiam na noite apagada de todo. Todo mundo
tinha saído.
Dia
de presepe. Noite de Missa do Galo. Ninguém mandava ruído para
demonstrar cordialidade. Lá fora só o abandono da noite quente de
verão. O cheiro do capim ressecado. Estrelas fazendo figuras no céu.
Talvez a Ursa Maior, na certa o Cruzeiro do Sul e provavelmente
Escorpião. Ananias não sabia mais e, se tanto sabia, o culpado fora
o Padre Roquete, que ensinara apontando o dedo para o céu. E ele com
medo de que nascesse verruga no nariz do padre, e nunca que nascia.
Só se nasceu depois.
Antão
pensava calmo. E no que estaria pensando? Mal e mal os seus dedos
percorriam o pelo de Raça Dura no seu colo.
Ananias
voltou a fixar o relógio. Seus olhos se pregaram nos ponteiros e
teve quase a impressão de que o relógio revivia. O seu áspero
tic-tac quase chegava aos seus ouvidos, tal era a vontade de que o
seu sonido quebrasse a dureza daquele abandono...
Um
foguete estourou ao longe, dando um pequeno grito para o céu.
Ananias estremeceu.
O
relógio parado. O relógio parado. O relógio parado. A noite quieta
e Antão pensando. A noite quieta e Antão pensando. A noite quieta e
Antão pensando...
Outro
foguete estourou mais forte.
Levantou-se
e se postou olhando a noite.
Outro
foguete ainda.
O
relógio parado, a noite quieta e Antão pensando. E nem sentia
vontade de cantar uma canção bonita. Falou devagar, quase para ele
mesmo, para o pequenino mundo do seu abandono.
– Dia
de festa. Missa do Galo. De Papai Noel. Dia de presepe...
Antão
se virou ternamente e observou as costas do anjo. Sabia que por pouco
mais as lágrimas estourariam no silêncio. Sentiu pena da
imperfeição do irmão e da sua infantilidade.
– Ananias,
venha cá.
Tornou
a virar-se e fungou grande.
– Puxe
sua cadeira para perto da minha.
Ananias
engoliu um pouco de lágrimas e limpou os olhos.
– Eu
vou falar com você, quer?
Engoliu
menos lágrimas. Sentou-se perto.
– De
que você quer que eu fale?
O
anjo pensou, pensou e nada disse.
– Quer
que eu conte uma história para você?
Ananias
riu e disse que sim.
– Conto
o quê?
– Conte
de quando eu era pequenininho.
– Você
uma vez foi muito pequenininho.
– Só?
Só isso? É pouco, diga mais...
Antão
foi contando assim, não da maneira de era uma vez, mas do modo da
ternura que passeia pela rua do mais ou menos:
– Quando
você era pequenininho, era um nenê lindo. Tão gordo que fazia
pulseirinha nos pulsos. Um nenê que ria por tudo. Eu sempre peguei
você no colo. Vi você crescer. Na verdade foi o irmão de que eu
mais gostei...
Ananias
ouvia enlevado, porque aquilo era muito bonito mesmo. Possuía
canções largas de infância, doçura de berço morno, uma ligação
de amizade.
Antão
falou mais um bocado e passou o braço nos ombros do irmão.
– Meu
irmãozinho.
Ananias
escorregou mansamente a cabeça no colo de Antão. Seus dedos ficaram
acariciando os seus cabelos por muito tempo. Os olhos de Ananias se
fechavam e se abriam. Ananias olhava o relógio parado, sentia a
noite quieta e Antão pensando, mas, dessa vez, acarinhando sua
cabeça. Não tinha nem vontade de cantar, mesmo que soubesse todas
as canções bonitas da vida. O sono começava a se enroscar nas
pestanas e a vela caminhava para bem longe. O balanço das chamas
confundia o branco das paredes manchadas. Fechou de vez as pálpebras
no acalanto do sono feliz.
José Mauro de Vasconcelos, in Rua Descalça
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