quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Rio de sangue | 9

Donana roubou a faca do coldre esquecido no alpendre da casa sede da Fazenda Caxangá no começo da tarde. Havia viajantes em visita naquele dia. Aproveitou a breve confusão e o desleixo depois da cavalgada para surrupiar o objeto. Aproveitou que os vaqueiros, que acompanhavam os senhores, haviam baixado a guarda. Aproveitou seu caminho desviado pela estrada que dava na casa de seus senhores. Ao parar para se abrigar do sol que comia seu juízo, deu com o coldre pendurado no gradil. Retirou seu chapéu grande e o encolheu entre as mãos. Pensou que era uma faca bonita, feita uma relíquia da casa grande onde nunca pôde pôr os pés. Tinha um cabo com um material feito mármore, não sabia do que se tratava. Mas a lâmina era brilhosa como as coisas finas que os senhores carregavam. Parecia ser de prata. Devia valer um bom dinheiro. Foi quando se lembrou dos filhos que precisavam de calçados e roupas novas, porque não havia mais como cerzir os trapos esgarçados. “Eles tiram da gente e nós tiramos deles”, foi o que passou por seu pensamento. Pediria perdão a Deus e aos seus guias. Colocou o objeto no seu cesto de palha, em meio aos aipins colhidos naquela manhã, entre cansaço e desalento. No exato momento disse apenas “Deus me perdoe” e deixou a sombra que lhe serenou o corpo, levando consigo talvez um tesouro, sem ser notada.
Mas no caminho a certeza de que Deus a perdoaria foi crescendo. Afinal, aquela gente lhe devia muita coisa. O trabalho que não era remunerado, o sol que ardia impiedoso sobre sua cabeça na lavoura queimava inclemente, e seu chapéu, não poderia ser ingrata a esse ponto, de fato, era um refúgio, mas ainda assim incapaz de defendê-la da exposição pela longa jornada. Naquele inferno chamado Caxangá, o inferno de escravidão a que se acostumou como se fosse sua terra, não teve autorização para parir seu filho em casa. Zeca nasceu no meio da roça, dentro de um charco, com a ajuda das trabalhadoras da fazenda, debaixo deste mesmo sol que agora fervilhava seu juízo. Era sua por merecimento. Certamente, Deus a perdoaria.
Mas os propósitos iniciais de seu pequeno crime não se concretizaram. Donana se afeiçoou de tal forma ao objeto que o enterrou debaixo da própria cama. Temeu quando correu conversa entre os trabalhadores, procuravam pela faca de um visitante, convidado do senhor da Caxangá. Mas guardou aquele temor para si, sem comentar com ninguém. Qualquer passo em falso poderia significar a vergonha da exposição pública. Esses homens, que ameaçavam mandar seus capatazes entrar de casa em casa à procura da faca, poderiam castigar de forma exemplar quem fosse pego, despejando-o da fazenda sem as mãos. Depois, a notícia era de que o homem a tinha perdido na cavalgada que culminou naquela tarde, bem viva na lembrança de Donana. O povo foi convocado a procurar pelos milharais, pelas roças de aipim, cana e mamona. Mas nada foi encontrado e o tempo tratou de fazê-los esquecer do desaparecimento.
Primeiro Donana enterrou a faca para matutar, enquanto não terminasse a procura, onde poderia vender sua joia de caça. Não poderia ser na cidade, porque todos se conheciam. Iriam perguntar o que aquela mulher sem eira nem beira queria com uma faca rica e bem talhada. E as suspeitas voariam mais rápido que qualquer outra coisa. Foi quando cogitou a possibilidade de vender mais barato a um mascate ou cigano, desde que eles não tivessem relação com a casa grande. Desde que pudesse fazer alguma coisa pelos filhos com o que ganhasse. Mas esse dia foi sendo adiado, porque Donana não se animava a desenterrar o objeto, não sentia confiança em nenhum mascate que chegava à sua porta. Por último, pensou que poderia deixar como herança para alguns dos filhos.
Quando ninguém mais falava no desaparecimento da faca, e os trabalhadores não mais procuravam pelas moitas e roças, Donana a desenterrou, longe dos olhos de todos. Limpou a faca, poliu o metal com um tecido velho e a embrulhou ali mesmo. Era um troço bonito. A coisa mais rica em que havia posto as mãos, era assim que sentia ao admirar o objeto do engano. Guardava de novo para si, limpava, polia, devolvia ao buraco debaixo da cama. Para não ter que enterrar e desenterrar a cada vez que quisesse pôr as mãos e os olhos, colocou um tapete de couro de caititu recobrindo o buraco onde a escondia.
A faca não se prestou a nenhuma das destinações a que sua guardadora havia se proposto de início. Nem vendida a mascate, nem deixada de herança para a família. Bem, foi assim que ela pensou, depois de ver uma das netas perder a língua. Deus não havia perdoado. Pior, havia ferido a carne de sua carne, a neta por quem zelava, rezava contra quebranto e mau olhado. As netas a quem planejava ensinar os segredos dos encantados, como havia ensinado ao seu filho mais velho. Não para que fossem curadoras, queria antes que fossem livres, até mesmo das obrigações que a seguiram por toda a vida. Queria ensinar os mistérios dos feitiços e dos encantados para os problemas diversos. Queria ensinar para que se desenvolvessem sozinhas no mundo, para que ajudassem aos que precisassem, e mais ainda, para que procurassem pela liberdade que lhes foi negada desde os ancestrais. De fazenda em fazenda, de Caxangá à Água Negra, havia vivido uma vida cativa. Queria vê-las livres, senhoras do próprio destino.
Quando a faca serviu ao derradeiro fim em suas mãos, ao fim que nunca havia considerado, Donana se viu enredada numa trama de vida e morte para o resto de seus dias. Tudo ocorreu quando o filho mais velho já havia deixado a Fazenda Caxangá rumo a outra terra, onde pudesse ter trabalho e morada. Ela se viu de novo sozinha, sem o esteio de Zeca e com os filhos menores, que depois ganhariam o mundo, para criar. Chegou trabalhador novo. Um homem gentil que estendeu sua força para ajudar Donana na roça. Terminava o trabalho que lhe era destinado e ajudava a mulher que tinha o corpo doído de tanta labuta. Donana, na sua solidão, permitiu que se achegasse e se abrigasse em seu casebre, que se juntasse à sua luta e aquecesse sua cama, fazendo-a se sentir viva, apesar de toda fadiga. Foi assim que o homem ficou ao seu lado, o homem que Donana esqueceu o nome, impronunciável, o homem que nem o filho nem mais ninguém que não habitasse o casebre da Caxangá saberia da existência. Ele que havia chegado de onde haviam se esquecido, da mesma forma que se foi de um jeito que só a mulher que envelhecia saberia.
Quando Donana encontrou a filha Carmelita, moça há poucos anos, debaixo do corpo do seu homem, de calças arriadas, na cama onde se deitava do cansaço sem fim, se envergou no chão como um jumento que não quer seguir o caminho que lhe resta. Retesou todo o corpo como se nunca mais fosse deixar aquela posição. Gritou com grande cólera, pôs os meninos em prontidão, sua fúria era seu próprio desespero. Carmelita andava arredia, chorosa pelos cantos da casa, ela percebia, mas não passava por sua cabeça nada do que havia visto. Quase não olhava para a mãe. Donana pensou que era ciúme de filha que não aceitava o novo companheiro. Mas se passou um ano, dois. Adentrava o terceiro. Os machucados que a filha escondia, como se estivesse boba de atenção esbarrando em tudo, caindo em todo lugar. Tudo fazia sentido. Seu homem batia, maltratava, violava e ameaçava sua filha debaixo do seu teto com sua concordância? Carmelita implorou à mãe por perdão. A mãe que não conseguia mais olhar para a própria filha. A filha que agora queria ir embora de casa. Encontraria seu rumo como havia feito o irmão. E o homem não se redimiu: ficou mais forte, mandava em tudo, mandava na casa, tinha a mulher sob seu cabresto.
Foi numa noite em que a lua escureceu, por trás das nuvens que no dia seguinte lavariam a terra com a chuva, que tomou a decisão. As águas que ainda não tinham precipitado, mas que previa no cenário da noite, lavariam a terra de tal forma que não restaria vestígio de nada. Ele saiu para pescar levando uma garrafa de bebida. Era um hábito que o acompanhava desde a chegada. Donana, que seguiu em sua companhia algumas vezes, não pescou mais ao seu lado. Se sentou em casa e seu juízo foi sendo carcomido pelo rancor, o que havia visto, o que a machucava, o que destruía Carmelita. Quando chegou ao local onde ele estava viu que dormia, prosternado na beira do rio. Parecia morto antes mesmo de ser sangrado. Não havia luz, não havia candeeiro nas mãos de Donana. Não queria deixar rastros ou lembranças de seus passos e atos. Ninguém saberia de nada, diria apenas que ele havia partido sem deixar indicação do destino. Antes de pensar na justificativa que daria, sangrou o homem como se sangrasse um porco. Arrastou seu corpo com os bolsos cheios de pedras, que ela mesma colocou, para dentro do rio. Não temeu que viessem lhe perguntar pelo desaparecimento do companheiro nos dias que se seguiriam. Voltou para casa encharcada do esforço. As poucas horas desde que havia deixado sua morada para dar fim ao seu último erro nas terras de Caxangá foram suficientes para que sua filha fosse embora sem indicar o paradeiro. O resto da história foi vagar seus últimos anos vendo o rosto de Carmelita em todas as crianças que havia amado.
Na madrugada que se seguiu, teve apenas uma certeza: Deus jamais a perdoaria. Pior: devolveria o malfeito em dobro.
E o cheiro da chuva, que cairia nas primeiras horas da manhã, já podia ser sentido.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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