Donana roubou a faca do coldre esquecido
no alpendre da casa sede da Fazenda Caxangá no começo da tarde.
Havia viajantes em visita naquele dia. Aproveitou a breve confusão e
o desleixo depois da cavalgada para surrupiar o objeto. Aproveitou
que os vaqueiros, que acompanhavam os senhores, haviam baixado a
guarda. Aproveitou seu caminho desviado pela estrada que dava na casa
de seus senhores. Ao parar para se abrigar do sol que comia seu
juízo, deu com o coldre pendurado no gradil. Retirou seu chapéu
grande e o encolheu entre as mãos. Pensou que era uma faca bonita,
feita uma relíquia da casa grande onde nunca pôde pôr os pés.
Tinha um cabo com um material feito mármore, não sabia do que se
tratava. Mas a lâmina era brilhosa como as coisas finas que os
senhores carregavam. Parecia ser de prata. Devia valer um bom
dinheiro. Foi quando se lembrou dos filhos que precisavam de calçados
e roupas novas, porque não havia mais como cerzir os trapos
esgarçados. “Eles tiram da gente e nós tiramos deles”, foi o
que passou por seu pensamento. Pediria perdão a Deus e aos seus
guias. Colocou o objeto no seu cesto de palha, em meio aos aipins
colhidos naquela manhã, entre cansaço e desalento. No exato momento
disse apenas “Deus me perdoe” e deixou a sombra que lhe serenou o
corpo, levando consigo talvez um tesouro, sem ser notada.
Mas no caminho a certeza de que Deus a
perdoaria foi crescendo. Afinal, aquela gente lhe devia muita coisa.
O trabalho que não era remunerado, o sol que ardia impiedoso sobre
sua cabeça na lavoura queimava inclemente, e seu chapéu, não
poderia ser ingrata a esse ponto, de fato, era um refúgio, mas ainda
assim incapaz de defendê-la da exposição pela longa jornada.
Naquele inferno chamado Caxangá, o inferno de escravidão a que se
acostumou como se fosse sua terra, não teve autorização para parir
seu filho em casa. Zeca nasceu no meio da roça, dentro de um charco,
com a ajuda das trabalhadoras da fazenda, debaixo deste mesmo sol que
agora fervilhava seu juízo. Era sua por merecimento. Certamente,
Deus a perdoaria.
Mas os propósitos iniciais de seu
pequeno crime não se concretizaram. Donana se afeiçoou de tal forma
ao objeto que o enterrou debaixo da própria cama. Temeu quando
correu conversa entre os trabalhadores, procuravam pela faca de um
visitante, convidado do senhor da Caxangá. Mas guardou aquele temor
para si, sem comentar com ninguém. Qualquer passo em falso poderia
significar a vergonha da exposição pública. Esses homens, que
ameaçavam mandar seus capatazes entrar de casa em casa à procura da
faca, poderiam castigar de forma exemplar quem fosse pego,
despejando-o da fazenda sem as mãos. Depois, a notícia era de que o
homem a tinha perdido na cavalgada que culminou naquela tarde, bem
viva na lembrança de Donana. O povo foi convocado a procurar pelos
milharais, pelas roças de aipim, cana e mamona. Mas nada foi
encontrado e o tempo tratou de fazê-los esquecer do desaparecimento.
Primeiro Donana enterrou a faca para
matutar, enquanto não terminasse a procura, onde poderia vender sua
joia de caça. Não poderia ser na cidade, porque todos se conheciam.
Iriam perguntar o que aquela mulher sem eira nem beira queria com uma
faca rica e bem talhada. E as suspeitas voariam mais rápido que
qualquer outra coisa. Foi quando cogitou a possibilidade de vender
mais barato a um mascate ou cigano, desde que eles não tivessem
relação com a casa grande. Desde que pudesse fazer alguma coisa
pelos filhos com o que ganhasse. Mas esse dia foi sendo adiado,
porque Donana não se animava a desenterrar o objeto, não sentia
confiança em nenhum mascate que chegava à sua porta. Por último,
pensou que poderia deixar como herança para alguns dos filhos.
Quando ninguém mais falava no
desaparecimento da faca, e os trabalhadores não mais procuravam
pelas moitas e roças, Donana a desenterrou, longe dos olhos de
todos. Limpou a faca, poliu o metal com um tecido velho e a embrulhou
ali mesmo. Era um troço bonito. A coisa mais rica em que havia posto
as mãos, era assim que sentia ao admirar o objeto do engano.
Guardava de novo para si, limpava, polia, devolvia ao buraco debaixo
da cama. Para não ter que enterrar e desenterrar a cada vez que
quisesse pôr as mãos e os olhos, colocou um tapete de couro de
caititu recobrindo o buraco onde a escondia.
A faca não se prestou a nenhuma das
destinações a que sua guardadora havia se proposto de início. Nem
vendida a mascate, nem deixada de herança para a família. Bem, foi
assim que ela pensou, depois de ver uma das netas perder a língua.
Deus não havia perdoado. Pior, havia ferido a carne de sua carne, a
neta por quem zelava, rezava contra quebranto e mau olhado. As netas
a quem planejava ensinar os segredos dos encantados, como havia
ensinado ao seu filho mais velho. Não para que fossem curadoras,
queria antes que fossem livres, até mesmo das obrigações que a
seguiram por toda a vida. Queria ensinar os mistérios dos feitiços
e dos encantados para os problemas diversos. Queria ensinar para que
se desenvolvessem sozinhas no mundo, para que ajudassem aos que
precisassem, e mais ainda, para que procurassem pela liberdade que
lhes foi negada desde os ancestrais. De fazenda em fazenda, de
Caxangá à Água Negra, havia vivido uma vida cativa. Queria vê-las
livres, senhoras do próprio destino.
Quando a faca serviu ao derradeiro fim em
suas mãos, ao fim que nunca havia considerado, Donana se viu
enredada numa trama de vida e morte para o resto de seus dias. Tudo
ocorreu quando o filho mais velho já havia deixado a Fazenda
Caxangá rumo a outra terra, onde pudesse ter trabalho e morada. Ela
se viu de novo sozinha, sem o esteio de Zeca e com os filhos menores,
que depois ganhariam o mundo, para criar. Chegou trabalhador novo. Um
homem gentil que estendeu sua força para ajudar Donana na roça.
Terminava o trabalho que lhe era destinado e ajudava a mulher que
tinha o corpo doído de tanta labuta. Donana, na sua solidão,
permitiu que se achegasse e se abrigasse em seu casebre, que se
juntasse à sua luta e aquecesse sua cama, fazendo-a se sentir viva,
apesar de toda fadiga. Foi assim que o homem ficou ao seu lado, o
homem que Donana esqueceu o nome, impronunciável, o homem que nem o
filho nem mais ninguém que não habitasse o casebre da Caxangá
saberia da existência. Ele que havia chegado de onde haviam se
esquecido, da mesma forma que se foi de um jeito que só a mulher que
envelhecia saberia.
Quando Donana encontrou a filha
Carmelita, moça há poucos anos, debaixo do corpo do seu homem, de
calças arriadas, na cama onde se deitava do cansaço sem fim, se
envergou no chão como um jumento que não quer seguir o caminho que
lhe resta. Retesou todo o corpo como se nunca mais fosse deixar
aquela posição. Gritou com grande cólera, pôs os meninos em
prontidão, sua fúria era seu próprio desespero. Carmelita andava
arredia, chorosa pelos cantos da casa, ela percebia, mas não passava
por sua cabeça nada do que havia visto. Quase não olhava para a
mãe. Donana pensou que era ciúme de filha que não aceitava o novo
companheiro. Mas se passou um ano, dois. Adentrava o terceiro. Os
machucados que a filha escondia, como se estivesse boba de atenção
esbarrando em tudo, caindo em todo lugar. Tudo fazia sentido. Seu
homem batia, maltratava, violava e ameaçava sua filha debaixo do seu
teto com sua concordância? Carmelita implorou à mãe por perdão. A
mãe que não conseguia mais olhar para a própria filha. A filha que
agora queria ir embora de casa. Encontraria seu rumo como havia feito
o irmão. E o homem não se redimiu: ficou mais forte, mandava em
tudo, mandava na casa, tinha a mulher sob seu cabresto.
Foi numa noite em que a lua escureceu,
por trás das nuvens que no dia seguinte lavariam a terra com a
chuva, que tomou a decisão. As águas que ainda não tinham
precipitado, mas que previa no cenário da noite, lavariam a terra de
tal forma que não restaria vestígio de nada. Ele saiu para pescar
levando uma garrafa de bebida. Era um hábito que o acompanhava desde
a chegada. Donana, que seguiu em sua companhia algumas vezes, não
pescou mais ao seu lado. Se sentou em casa e seu juízo foi sendo
carcomido pelo rancor, o que havia visto, o que a machucava, o que
destruía Carmelita. Quando chegou ao local onde ele estava viu que
dormia, prosternado na beira do rio. Parecia morto antes mesmo de ser
sangrado. Não havia luz, não havia candeeiro nas mãos de Donana.
Não queria deixar rastros ou lembranças de seus passos e atos.
Ninguém saberia de nada, diria apenas que ele havia partido sem
deixar indicação do destino. Antes de pensar na justificativa que
daria, sangrou o homem como se sangrasse um porco. Arrastou seu corpo
com os bolsos cheios de pedras, que ela mesma colocou, para dentro do
rio. Não temeu que viessem lhe perguntar pelo desaparecimento do
companheiro nos dias que se seguiriam. Voltou para casa encharcada do
esforço. As poucas horas desde que havia deixado sua morada para dar
fim ao seu último erro nas terras de Caxangá foram suficientes para
que sua filha fosse embora sem indicar o paradeiro. O resto da
história foi vagar seus últimos anos vendo o rosto de Carmelita em
todas as crianças que havia amado.
Na madrugada que se seguiu, teve apenas
uma certeza: Deus jamais a perdoaria. Pior: devolveria o malfeito em
dobro.
E o cheiro da chuva, que cairia nas
primeiras horas da manhã, já podia ser sentido.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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