Tinha tudo pra ser só mais uma tarde
normal na vida de um menino de 14 anos numa pequena cidade no
interior do Ceará. Porém foi naquela tarde que eu descobri o cheiro
da vida.
O dia começou como sempre começavam os
dias. Acordei bem cedinho – como se diz no sertão, “ao cagar dos
pintos”. Mamãe pediu – pediu não, mandou – que eu fosse lá
na bodega de Seu Nonato comprar pães e ovos para a merenda. (Nunca
me acostumei a chamar essa primeira refeição de “café da manhã”,
acho merenda mais bonito.)
Já fui logo dizendo:
– Mãe, posso comprar o troco de bila?
(Assim como merenda, nunca chamei bila de
“bola de gude”.)
– E fiado lá tem troco? – disse
mamãe, achando graça. – É pra anotar na caderneta.
Saí pela porta do quintal, que já
ficava de cara com a bodega, e fui.
– Seu Nonato, Mãe mandou o senhor
despachar uma dúzia de ovos, dez pães lá da padaria de Elizeu e 50
centavos de bila. Disse pro senhor anotar na conta dela.
Pronto. Escondi as bilas (para mamãe não
desconfiar), merendei nas carreiras e me danei pra praça dos
Alípios, que, naquela hora, já estava cheia de menino brincando. A
praça tinha vários canteiros de terra com grandes pés de
castanhola fazendo sombra, ambiente mais do que adequado para passar
a manhã inteira jogando bila.
Brincamos até dar 11h30, que era a hora
marcada de ir pra casa tomar banho (às vezes só lavava os pés e
molhava o cabelo), almoçar e correr pra escola.
Eu estudava na Escola Urcesina Moura
Cantídio. Era perto de casa, mas mesmo assim eu sempre pegava carona
com o carro da cerâmica de Osair que vinha buscar vovô todo dia e
no caminho passava ao lado da escola. Era uma F-1000 vermelha que
recolhia todos os peões e levava para o trabalho. Vovô trabalhou
por muitos anos nessa cerâmica, que é como chamamos fábrica de
telhas e tijolos.
Não lembro da aula nesse dia. Nada me
marcou.
Saí da escola às 17h e corri pra casa.
Nessa época, meus pais já haviam se separado, e eu, mamãe e meus
dois irmãos morávamos na casa de vovô e vovó.
Joguei a mochila num canto e corri pro
quintal. Fazia dias que eu vigiava uma goiaba, esperando ela ficar
madura. Finalmente havia chegado a hora.
Subi no galinheiro que ficava embaixo da
goiabeira e peguei a goiaba. Parecia um troféu nas minhas mãos.
Dei a primeira dentada ali mesmo, debaixo
do pé – fica até mais gostoso.
Entrei em casa com a goiaba na mão e já
ia saindo pra brincar na calçada, quando lembrei que ainda não
tinha pedido a bênção a vovó.
Minha avó, que era uma segunda mãe para
mim e meus irmãos, havia sido diagnosticada com um severo câncer de
fígado. Ela, que sempre fora uma mulher durona, saudável, cheia de
pose, definhou em pouco mais de quatro meses. E alguns dias antes,
tinha se prostrado de vez numa cama. Nessa altura da doença, os
cuidados eram apenas paliativos. Era um momento muito doloroso. Fazia
dois dias que ela apenas delirava, não falava mais coisa com coisa e
os olhos não se abriam.
Quando entrei no quarto, mamãe estava
sentada numa cadeira. Ao me ver, disse:
– Fique aqui com sua avó um pouquinho
enquanto vou passar um café.
Vovó estava de olhos fechados, a
respiração tão fraquinha, os ossos já se destacavam em sua pele.
Aquela cena me matava por dentro. A impressão era que nem existia
mais vida ali. Era como se vovó já estivesse morta.
Foi quando ouvi ela sussurrando alguma
coisa. Cheguei bem pertinho de sua boca para tentar entender. E ela
disse:
– Eu queria goiaba. Eu queria goiaba.
E rolou uma lágrima em seu rosto.
Perceber que, mesmo naquela situação,
no leito de morte, minha vó sentiu o cheiro da goiaba que estava em
minha mão, sentiu vontade de comer, criou força para falar, retomou
algum fragmento de consciência, talvez tenha conseguido ter uma
lembrança da infância (ela já havia me falado que adorava goiaba
desde pequenininha), tudo aquilo encheu meu coração de algum tipo
de esperança misturada com felicidade. Desde esse dia, goiaba pra
mim tem cheiro de vida!
Saí correndo pra chamar mamãe, eu
queria muito dar um pedaço da goiaba a vovó, mas claro que não
podia. Ela não conseguia mais mastigar nada, estava se alimentando
apenas com soro. Mamãe disse:
– Meu filho, sua avó não pode mais
comer nada. Os médicos já disseram que, até ela “descansar”,
só podemos molhar a boca da vovó com algodão úmido. Deus está
cuidando dela e da gente.
Saí de lá com raiva de Deus, dos
médicos, de mamãe. Voltei pro quintal e, debaixo do pé de goiaba,
chorei como nunca havia chorado. Era um choro de tristeza, de
revolta, de culpa e, talvez, já de saudade.
Foi a última vez que ouvi a voz de vovó
Maria. A noite chegou e, com ela, vieram familiares, vizinhos,
amigos, a casa foi ficando cheia. Entendi naquela ocasião que
existia aquele costume: quando alguém está perto de morrer em casa,
as pessoas vêm para se despedir, dar força à família, essas
coisas.
Já era tarde, talvez umas 11 da noite,
quando passei no corredor que dava acesso ao quarto e, pela porta, vi
vovô sentado numa cadeira posta na cabeceira da cama. Ele estava
calado, de cabeça baixa, e passava a mão calejada carinhosamente na
testa de sua companheira de vida. Vez por outra, um filho, um
parente, um amigo segurava na mão dela.
Dormi. Quando acordei, no dia seguinte,
corri para a porta do quarto, queria me certificar de que minha avó
ainda estava viva. A madrugada havia passado e meu avô continuava
exatamente na mesma posição, fazendo o mesmo gesto de carinho.
Tinha mais gente no quarto também.
Sentei numa cadeira de balanço na sala e
poucos minutos depois vi meu avô saindo do quarto. Senti uma
dormência naquele momento. Um vazio. Eu sabia que ele só soltaria a
mão de vovó e sairia daquele quarto quando ela não estivesse mais
ali.
E assim foi.
A dor foi terrível. A saudade é valente
e latente. Mas saber que, no último suspiro de vida da vovó Maria,
tanta gente segurou em sua mão, foi um pingo de felicidade naquela
chuva de tristeza.
P.S. Sempre que sinto cheiro de goiaba,
tenho certeza de que estou vivo!
Bráulio Bessa, in Um carinho na alma
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