sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Metafísica do amor

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Quando o instinto dos sexos se manifesta na consciência de cada indivíduo de uma maneira vaga, geral e sem determinação precisa, é a vontade de viver absoluta, fora de todo o fenômeno, que surge. Quando num ser consciente o instinto do amor se especializa num determinado indivíduo, é essa mesma vontade que aspira a viver num ente novo e distinto, exatamente determinado. E, nesse caso, o instinto do amor todo subjetivo dá ilusão à consciência, e sabe muito bem cobrir-se com a máscara de uma admiração objetiva, porque a natureza carece desse estratagema para atingir os seus fins. Por muito desinteressada e ideal que possa parecer a admiração por uma pessoa amada, o alvo final é na realidade a criação de um novo ser, determinado na sua natureza: prova-o o fato de o amor não se contentar com um sentimento recíproco, mas exigir a posse, o essencial, isto é, o gozo físico. A certeza de ser amado não poderia consolar a privação daquela de que se ama; e, em semelhante caso, mais de um amante tem dado um tiro nos miolos. Sucede, ao contrário, que há pessoas muito apaixonadas que, não conseguindo ser correspondidas, se contentam com a posse, isto é, com o gozo físico.
Dá-se esse caso em todos os casamentos obrigados, nos amores venais ou nos que se obtêm pela violência. Que uma criança seja gerada, é esse o alvo único, verdadeiro, de todo o romance de amor, embora os namorados não se dêem por isso: a intriga que conduz ao desenlace é coisa acessória. – As almas nobres, sentimentais, ternamente apaixonadas podem protestar contra o áspero realismo da minha doutrina; os seus protestos não têm razão de ser. Não são a constituição e o caráter preciso e determinado da geração futura um alvo infinitamente mais elevado, infinitamente mais nobre que os seus sentimentos impossíveis e as suas quimeras ideais? E então, entre todos os fins que tem a vida humana, pode haver um mais considerável? Só esse explica os profundos ardores do amor, a gravidade do papel que ele representa, a importância que comunica aos mais ligeiros incidentes. Não se deve perder de vista esse fim real, se quisermos explicar tantas manobras, tantos rodeios, tantos esforços, e esses tormentos infinitos para se obter o ente amado, quando, à primeira vista, parecem tão desproporcionados. É a geração futura, na sua determinação absolutamente individual, que caminha para a existência por meio dessas dores e desses esforços.
Sim, é ela própria que se agita já na escolha circunspecta, determinada, teimosa, procurando satisfazer esse instinto que se chama o amor; é já a vontade de viver do novo indivíduo que os amantes podem e desejam gerar. Que digo eu? Já na troca dos olhares cheios de desejos se ilumina uma vida nova, se anuncia um ente futuro, criação completa, harmoniosa. Aspiram a uma união verdadeira, a uma fusão num único ser; esse ente que vão gerar será como que o prolongamento da sua existência, será a plenitude; nele as qualidades hereditárias dos pais, reunidas, continuam a viver. Ao contrário, uma antipatia recíproca e obstinada entre um homem e uma donzela é sinal de que não podiam gerar senão um ente mal constituído, sem harmonia e desgraçado. É portanto com um profundo sentido que Calderon representa a cruel Semiramis, a quem chama uma filha do ar, com o fruto de uma violação, seguida pelo assassínio do esposo. Essa força soberana que atrai exclusivamente um para o outro dois indivíduos de sexo diferente é a vontade de viver manifesta em toda a espécie: procura realizar-se segundo os seus fins na criança que deve nascer deles; terá do pai a vontade ou o caráter; da mãe, a inteligência; de ambos, a constituição física; entretanto, as feições reproduzirão mais vezes as do pai; a figura assemelhar-se-á mais frequentemente à da mãe…
Se é difícil explicar o caráter muito especial e exclusivamente individual de cada homem, não é menos difícil compreender o sentimento igualmente particular e exclusivo que impele duas pessoas uma para a outra; no fundo, essas duas coisas formam uma apenas. A paixão é implicitamente o que a individualidade é explicitamente. O primeiro passo para a existência, o verdadeiro punctum saliens da vida, é, na realidade, o momento em que os nossos pais começam a se amar – to fancy each other, segundo uma admirável expressão inglesa –, e, como dissemos, é do encontro e da atração dos seus olhares ardentes que nasce o primeiro germe do novo ente, gérmen frágil, pronto a desaparecer como todos os germens. Esse novo indivíduo é de algum modo uma nova ideia platônica: e como todas as ideias empregam um esforço violento para chegarem a se manifestar no mundo dos fenômenos, ávidos de se apoderarem da matéria favorável que a lei da causalidade lhes dá em partilha, assim essa ideia particular de uma individualidade humana tende com uma violência, um ardor extremo, a realizar-se num fenômeno. Essa energia, essa impetuosidade, é justamente a paixão que os futuros pais experimentam um pelo outro. Tem graus infinitos cujos dois extremos poderiam ser designados sob o nome de amor vulgar e de amor divino – mas quanto à essência do amor, é em toda a parte e sempre a mesma. Nos seus diversos graus, é tanto mais poderosa quanto é mais individualizada; em outros termos, é tanto mais forte quanto a pessoa amada, pelas suas qualidades e pelas suas maneiras de ser, é mais capaz, com exclusão de todas as pessoas, de responder ao desejo particular e à necessidade determinada que fez nascer naquele que a ama.
O amor, por essência e ao primeiro movimento, é impelido para a saúde, para a força, para a beleza, para a mocidade, que é sua expressão, porque a vontade deseja, antes de tudo, criar entes capazes de viver com o caráter integral da espécie humana; o amor vulgar não vai mais longe. Depois sucedem-se outras exigências mais especiais, que aumentam e fortificam a paixão. O amor forte só pode existir na perfeita conformidade de dois entes… E como não existem dois indivíduos absolutamente semelhantes, todo homem deve encontrar numa determinada mulher as qualidades que correspondam melhor às suas próprias qualidades, sempre do ponto de vista das crianças que hão de nascer. Quanto mais raro é esse encontro, mais raro é também o amor verdadeiramente apaixonado. É precisamente porque cada um de nós tem em si esse grande amor que compreendemos a descrição que o gênio dos poetas nos faz desse sentimento. Dado o caso dessa paixão do amor visar exclusivamente ao ente futuro e às qualidades que devem adorná-lo, pode suceder que entre um rapaz e uma rapariga, aliás agradáveis e bem conformados, nasça uma simpatia de sentimento, de caráter e de espírito que dê origem a uma amizade estranha ao amor; pode mesmo suceder que, sobre este último ponto, haja entre eles uma certa antipatia. O resultado seria faltar às crianças que nascessem deles a harmonia intelectual ou física, e, numa palavra, a sua existência e a sua constituição não corresponderiam aos planos a que se propõe: a vontade de viver no interesse da espécie. Pode suceder, pelo contrário, que, a despeito da dessemelhança dos sentimentos, do caráter e do espírito, a despeito da repugnância e mesmo da aversão que daí resultem, o amor contudo nasça e subsista, porque é cego sobre essas incompatibilidades. Se daí resultar um casamento, esse enlace será necessariamente muito infeliz.
Aprofundemos agora o assunto. O egoísmo tem em cada homem raízes tão fundas que os motivos egoístas são os únicos com que se pode contar com segurança para excitar a atividade de um ser individual. A espécie, é certo, tem sobre o indivíduo um direito anterior, mais imediato e mais considerável que a individualidade efêmera. Todavia, quando urge que o indivíduo proceda e se sacrifique pela manutenção e pelo desenvolvimento da espécie, a sua inteligência completamente dirigida para as aspirações individuais apenas compreende a necessidade desse sacrifício, e a ela acaba por submeter-se logo. Para atingir o seu fim, é portanto necessário que a natureza engane o indivíduo com alguma ilusão, em virtude da qual ele veja a própria felicidade no que não é, realmente, senão o bem da espécie; o indivíduo torna-se, assim, o escravo inconsciente da natureza no momento em que julga obedecer apenas aos seus desejos. Uma pura quimera, logo desfeita, paira-lhe diante dos olhos o faz proceder.
Essa ilusão não é mais do que o instinto. É ele que, na maioria dos casos, representa o sentido da espécie, os interesses da espécie ante a vontade. Mas como aqui a vontade torna-se individual, deve ser enganada de modo que conceba, pelo sentido do indivíduo, os desígnios que o sentido da espécie tem sobre ela; assim, julga trabalhar em proveito do indivíduo, quando na realidade apenas trabalha para a espécie, no sentido mais especial. É no animal que o instinto representa o maior papel e que a sua manifestação exterior pode se observar melhor; mas quanto aos caminhos secretos do instinto, como para tudo o que é interior, não podemos aprender a conhecê-los senão em nós mesmos. Imagina-se, é verdade, que o instinto tem pouco império no homem, ou pelo menos que só se manifesta no recém-nascido, procurando apoderar-se do seio da mãe.
Mas, na realidade, há um instinto muito determinado, muito manifesto e principalmente muito complicado, que nos guia na escolha tão fina, tão séria, tão particular da pessoa que se ama e cuja posse se deseja. Se apenas se ocultasse sob o prazer do sentido a satisfação de uma necessidade imperiosa, a beleza ou a lealdade do outro indivíduo seria indiferente. A procura apaixonada pela beleza, o apreço que se dá a ela, a escolha a que se procede, não dizem, pois, respeito ao interesse pessoal daquele que escolhe, embora assim o imagine, mas evidentemente ao interesse do futuro ente, no qual importa manter o mais possível integral e puro o tipo da espécie. De fato, mil acidentes físicos e mil desgraças morais podem acusar um defeito no rosto humano; portanto, o verdadeiro tipo humano, em todo o seu conjunto, é sempre novamente restabelecido, graças a esse sentimento da beleza que sempre domina e dirige o instinto dos sexos, sem o que o amor não passaria de uma necessidade revoltante.
Não há, pois, homem nenhum que primeiro não deseje ardentemente e não prefira as criaturas mais belas, porque realizam o tipo mais puro da espécie; depois há de procurar principalmente as qualidades que lhe faltam, ou as imperfeições opostas àquelas que ele próprio tem e as considerará belas; daí vem, por exemplo, que as mulheres altas agradam aos homens baixos, e que os loiros gostam das morenas etc. O entusiasmo vertiginoso que se apodera do homem à vista de uma mulher cuja beleza responde ao seu ideal, e faz brilhar aos seus olhos a miragem da felicidade suprema se conseguir a ela se unir, não é outra coisa senão o sentido da espécie que reconhece o seu cunho claro e brilhante, e que por ela gostaria de se perpetuar.
Essas considerações derramam uma luz viva sobre a natureza íntima de todo o instinto; como se depreende delas, o seu papel consiste quase sempre em fazer que o indivíduo proceda para o bem da espécie. Porque, evidentemente, a solicitude de um inseto em encontrar uma certa flor, um determinado fruto, um excremento ou um bocado de carne, ou então, como o icnêumon, a larva de outro inseto para depor aí os ovos, e a indiferença com que enfrenta o trabalho e o perigo quando se trata de conseguir o almejado, são muito análogas à preferência exclusiva do homem por uma certa mulher, aquela cuja natureza individual corresponde à sua: procura-a com tão apaixonado zelo que, a despeito da razão, é mais fácil sacrificar a felicidade da sua vida do que errar o seu alvo; não recua ante um casamento insensato, nem ante ligações ruinosas, nem ante a desonra, nem ante atos criminosos, como o adultério e a violação, e isso apenas para servir aos fins da espécie, sob a lei soberana da natureza, em detrimento do próprio indivíduo. Em toda parte, o instinto parece dirigido por uma intenção individual, embora lhe seja completamente estranha.

Arthur Schopenhauer, in As Dores do mundo

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