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Quando o instinto dos sexos se manifesta
na consciência de cada indivíduo de uma maneira vaga, geral e sem
determinação precisa, é a vontade de viver absoluta, fora de todo
o fenômeno, que surge. Quando num ser consciente o instinto do amor
se especializa num determinado indivíduo, é essa mesma vontade que
aspira a viver num ente novo e distinto, exatamente determinado. E,
nesse caso, o instinto do amor todo subjetivo dá ilusão à
consciência, e sabe muito bem cobrir-se com a máscara de uma
admiração objetiva, porque a natureza carece desse estratagema para
atingir os seus fins. Por muito desinteressada e ideal que possa
parecer a admiração por uma pessoa amada, o alvo final é na
realidade a criação de um novo ser, determinado na sua natureza:
prova-o o fato de o amor não se contentar com um sentimento
recíproco, mas exigir a posse, o essencial, isto é, o gozo físico.
A certeza de ser amado não poderia consolar a privação daquela de
que se ama; e, em semelhante caso, mais de um amante tem dado um tiro
nos miolos. Sucede, ao contrário, que há pessoas muito apaixonadas
que, não conseguindo ser correspondidas, se contentam com a posse,
isto é, com o gozo físico.
Dá-se esse caso em todos os casamentos
obrigados, nos amores venais ou nos que se obtêm pela violência.
Que uma criança seja gerada, é esse o alvo único, verdadeiro, de
todo o romance de amor, embora os namorados não se dêem por isso: a
intriga que conduz ao desenlace é coisa acessória. – As almas
nobres, sentimentais, ternamente apaixonadas podem protestar contra o
áspero realismo da minha doutrina; os seus protestos não têm razão
de ser. Não são a constituição e o caráter preciso e determinado
da geração futura um alvo infinitamente mais elevado, infinitamente
mais nobre que os seus sentimentos impossíveis e as suas quimeras
ideais? E então, entre todos os fins que tem a vida humana, pode
haver um mais considerável? Só esse explica os profundos ardores do
amor, a gravidade do papel que ele representa, a importância que
comunica aos mais ligeiros incidentes. Não se deve perder de vista
esse fim real, se quisermos explicar tantas manobras, tantos rodeios,
tantos esforços, e esses tormentos infinitos para se obter o ente
amado, quando, à primeira vista, parecem tão desproporcionados. É
a geração futura, na sua determinação absolutamente individual,
que caminha para a existência por meio dessas dores e desses
esforços.
Sim, é ela própria que se agita já na
escolha circunspecta, determinada, teimosa, procurando satisfazer
esse instinto que se chama o amor; é já a vontade de viver do novo
indivíduo que os amantes podem e desejam gerar. Que digo eu? Já na
troca dos olhares cheios de desejos se ilumina uma vida nova, se
anuncia um ente futuro, criação completa, harmoniosa. Aspiram a uma
união verdadeira, a uma fusão num único ser; esse ente que vão
gerar será como que o prolongamento da sua existência, será a
plenitude; nele as qualidades hereditárias dos pais, reunidas,
continuam a viver. Ao contrário, uma antipatia recíproca e
obstinada entre um homem e uma donzela é sinal de que não podiam
gerar senão um ente mal constituído, sem harmonia e desgraçado. É
portanto com um profundo sentido que Calderon representa a cruel
Semiramis, a quem chama uma filha do ar, com o fruto de uma violação,
seguida pelo assassínio do esposo. Essa força soberana que atrai
exclusivamente um para o outro dois indivíduos de sexo diferente é
a vontade de viver manifesta em toda a espécie: procura realizar-se
segundo os seus fins na criança que deve nascer deles; terá do pai
a vontade ou o caráter; da mãe, a inteligência; de ambos, a
constituição física; entretanto, as feições reproduzirão mais
vezes as do pai; a figura assemelhar-se-á mais frequentemente à da
mãe…
Se é difícil explicar o caráter muito
especial e exclusivamente individual de cada homem, não é menos
difícil compreender o sentimento igualmente particular e exclusivo
que impele duas pessoas uma para a outra; no fundo, essas duas coisas
formam uma apenas. A paixão é implicitamente o que a
individualidade é explicitamente. O primeiro passo para a
existência, o verdadeiro punctum saliens da vida, é, na
realidade, o momento em que os nossos pais começam a se amar – to
fancy each other, segundo uma admirável expressão inglesa –,
e, como dissemos, é do encontro e da atração dos seus olhares
ardentes que nasce o primeiro germe do novo ente, gérmen frágil,
pronto a desaparecer como todos os germens. Esse novo indivíduo é
de algum modo uma nova ideia platônica: e como todas as ideias
empregam um esforço violento para chegarem a se manifestar no mundo
dos fenômenos, ávidos de se apoderarem da matéria favorável que a
lei da causalidade lhes dá em partilha, assim essa ideia particular
de uma individualidade humana tende com uma violência, um ardor
extremo, a realizar-se num fenômeno. Essa energia, essa
impetuosidade, é justamente a paixão que os futuros pais
experimentam um pelo outro. Tem graus infinitos cujos dois extremos
poderiam ser designados sob o nome de amor vulgar e de amor divino –
mas quanto à essência do amor, é em toda a parte e sempre a mesma.
Nos seus diversos graus, é tanto mais poderosa quanto é mais
individualizada; em outros termos, é tanto mais forte quanto a
pessoa amada, pelas suas qualidades e pelas suas maneiras de ser, é
mais capaz, com exclusão de todas as pessoas, de responder ao desejo
particular e à necessidade determinada que fez nascer naquele que a
ama.
O amor, por essência e ao primeiro
movimento, é impelido para a saúde, para a força, para a beleza,
para a mocidade, que é sua expressão, porque a vontade deseja,
antes de tudo, criar entes capazes de viver com o caráter integral
da espécie humana; o amor vulgar não vai mais longe. Depois
sucedem-se outras exigências mais especiais, que aumentam e
fortificam a paixão. O amor forte só pode existir na perfeita
conformidade de dois entes… E como não existem dois indivíduos
absolutamente semelhantes, todo homem deve encontrar numa determinada
mulher as qualidades que correspondam melhor às suas próprias
qualidades, sempre do ponto de vista das crianças que hão de
nascer. Quanto mais raro é esse encontro, mais raro é também o
amor verdadeiramente apaixonado. É precisamente porque cada um de
nós tem em si esse grande amor que compreendemos a descrição que o
gênio dos poetas nos faz desse sentimento. Dado o caso dessa paixão
do amor visar exclusivamente ao ente futuro e às qualidades que
devem adorná-lo, pode suceder que entre um rapaz e uma rapariga,
aliás agradáveis e bem conformados, nasça uma simpatia de
sentimento, de caráter e de espírito que dê origem a uma amizade
estranha ao amor; pode mesmo suceder que, sobre este último ponto,
haja entre eles uma certa antipatia. O resultado seria faltar às
crianças que nascessem deles a harmonia intelectual ou física, e,
numa palavra, a sua existência e a sua constituição não
corresponderiam aos planos a que se propõe: a vontade de viver no
interesse da espécie. Pode suceder, pelo contrário, que, a despeito
da dessemelhança dos sentimentos, do caráter e do espírito, a
despeito da repugnância e mesmo da aversão que daí resultem, o
amor contudo nasça e subsista, porque é cego sobre essas
incompatibilidades. Se daí resultar um casamento, esse enlace será
necessariamente muito infeliz.
Aprofundemos agora o assunto. O egoísmo
tem em cada homem raízes tão fundas que os motivos egoístas são
os únicos com que se pode contar com segurança para excitar a
atividade de um ser individual. A espécie, é certo, tem sobre o
indivíduo um direito anterior, mais imediato e mais considerável
que a individualidade efêmera. Todavia, quando urge que o indivíduo
proceda e se sacrifique pela manutenção e pelo desenvolvimento da
espécie, a sua inteligência completamente dirigida para as
aspirações individuais apenas compreende a necessidade desse
sacrifício, e a ela acaba por submeter-se logo. Para atingir o seu
fim, é portanto necessário que a natureza engane o indivíduo com
alguma ilusão, em virtude da qual ele veja a própria felicidade no
que não é, realmente, senão o bem da espécie; o indivíduo
torna-se, assim, o escravo inconsciente da natureza no momento em que
julga obedecer apenas aos seus desejos. Uma pura quimera, logo
desfeita, paira-lhe diante dos olhos o faz proceder.
Essa ilusão não é mais do que o
instinto. É ele que, na maioria dos casos, representa o sentido da
espécie, os interesses da espécie ante a vontade. Mas como aqui a
vontade torna-se individual, deve ser enganada de modo que conceba,
pelo sentido do indivíduo, os desígnios que o sentido da espécie
tem sobre ela; assim, julga trabalhar em proveito do indivíduo,
quando na realidade apenas trabalha para a espécie, no sentido mais
especial. É no animal que o instinto representa o maior papel e que
a sua manifestação exterior pode se observar melhor; mas quanto aos
caminhos secretos do instinto, como para tudo o que é interior, não
podemos aprender a conhecê-los senão em nós mesmos. Imagina-se, é
verdade, que o instinto tem pouco império no homem, ou pelo menos
que só se manifesta no recém-nascido, procurando apoderar-se do
seio da mãe.
Mas, na realidade, há um instinto muito
determinado, muito manifesto e principalmente muito complicado, que
nos guia na escolha tão fina, tão séria, tão particular da pessoa
que se ama e cuja posse se deseja. Se apenas se ocultasse sob o
prazer do sentido a satisfação de uma necessidade imperiosa, a
beleza ou a lealdade do outro indivíduo seria indiferente. A procura
apaixonada pela beleza, o apreço que se dá a ela, a escolha a que
se procede, não dizem, pois, respeito ao interesse pessoal daquele
que escolhe, embora assim o imagine, mas evidentemente ao interesse
do futuro ente, no qual importa manter o mais possível integral e
puro o tipo da espécie. De fato, mil acidentes físicos e mil
desgraças morais podem acusar um defeito no rosto humano; portanto,
o verdadeiro tipo humano, em todo o seu conjunto, é sempre novamente
restabelecido, graças a esse sentimento da beleza que sempre domina
e dirige o instinto dos sexos, sem o que o amor não passaria de uma
necessidade revoltante.
Não há, pois, homem nenhum que primeiro
não deseje ardentemente e não prefira as criaturas mais belas,
porque realizam o tipo mais puro da espécie; depois há de procurar
principalmente as qualidades que lhe faltam, ou as imperfeições
opostas àquelas que ele próprio tem e as considerará belas; daí
vem, por exemplo, que as mulheres altas agradam aos homens baixos, e
que os loiros gostam das morenas etc. O entusiasmo vertiginoso que se
apodera do homem à vista de uma mulher cuja beleza responde ao seu
ideal, e faz brilhar aos seus olhos a miragem da felicidade suprema
se conseguir a ela se unir, não é outra coisa senão o sentido da
espécie que reconhece o seu cunho claro e brilhante, e que por ela
gostaria de se perpetuar.
Essas considerações derramam uma luz
viva sobre a natureza íntima de todo o instinto; como se depreende
delas, o seu papel consiste quase sempre em fazer que o indivíduo
proceda para o bem da espécie. Porque, evidentemente, a solicitude
de um inseto em encontrar uma certa flor, um determinado fruto, um
excremento ou um bocado de carne, ou então, como o icnêumon, a
larva de outro inseto para depor aí os ovos, e a indiferença com
que enfrenta o trabalho e o perigo quando se trata de conseguir o
almejado, são muito análogas à preferência exclusiva do homem por
uma certa mulher, aquela cuja natureza individual corresponde à sua:
procura-a com tão apaixonado zelo que, a despeito da razão, é mais
fácil sacrificar a felicidade da sua vida do que errar o seu alvo;
não recua ante um casamento insensato, nem ante ligações ruinosas,
nem ante a desonra, nem ante atos criminosos, como o adultério e a
violação, e isso apenas para servir aos fins da espécie, sob a lei
soberana da natureza, em detrimento do próprio indivíduo. Em toda
parte, o instinto parece dirigido por uma intenção individual,
embora lhe seja completamente estranha.
Arthur Schopenhauer, in As Dores do mundo
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