Minha educação angelical começou muito
cedo. Tomei minhas primeiras lições num salão de barbeiro. Havia
lá um calendário tranquilizador: uma paisagem bucólica, um menino
e uma menina, irmãozinhos, pés descalços, pelas trilhas da
floresta, sozinhos, é possível que sua mamãe os tivesse mandado
entregar uma cesta de frutas e queijos à vovozinha que morava no
outro lado da floresta, prestes a atravessar uma frágil pinguela
sobre um abismo. Era tão fácil cair! Mas não havia razões para
temer. Protegia-os um anjo de beleza forte e brancas enormes asas.
Com um quadro daqueles na parede, os pais e as mães podiam dormir
tranquilos. Era o Anjo da Guarda que, segundo se acredita, continua a
guardar as criancinhas que atravessam pontes nas florestas.
Pergunto-me o que terá acontecido com eles. Haverá anjos da guarda
encarregados de proteger as crianças nas ruas? É preciso que um
artista pinte o quadro.
Numa loja de sírios aprendi sobre os pés
dos anjos. O senhor humilde se aproximou do balcão e pediu:
“Um pé-de-anjo número 29.”
Seu Nagib entendeu imediatamente.
Trouxe-lhe um par de tênis brancos. Só que, naqueles tempos,
ninguém conhecia a palavra “tênis”. Era pé-de-anjo. É fácil
compreender por quê. O maior orgulho dos pais católicos beatos era
que a filha desfilasse na procissão vestida de anjo, o que era o
terror dos patos, cujas penas eram arrancadas sem dó nem piedade
para a confecção das asas dos seres celestes. Inúteis eram os
grasnados dos patos. Patos não têm anjos da guarda que os protejam
dos seres humanos. Branca a grinalda, brancas as asas, branco o
vestido — os sapatos teriam de ser brancos também. Pé-de-anjo...
Depois foi na escola dominical da igreja
protestante, que eu frequentava contra a vontade. Me faziam cantar um
hino que dizia: “Eu quero ser um anjo, um anjo do bom Deus, e
imitar na terra os anjos lá do céu”. Foi então que se manifestou
minha vocação para a heresia. Pensei que o hino estava errado: se
Deus me fizera menino era porque ele queria que eu fosse menino.
Aquele hino era um desafio à vontade divina. Deus queria que eu
fosse menino. Mas os religiosos eram mais piedosos que o próprio
Deus e queriam que eu fosse anjo. Eu não queria ser anjo, pois
achava que vida dos anjos devia ser muito chata. Os anjos obedecem
sempre às suas mães. Preferi continuar a ser menino.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Nenhum comentário:
Postar um comentário