quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O nome dos inimigos (capítulo dois)


A boca do inimigo jamais seria ofendida, toca do espírito à tona do corpo, ao fundo da eternidade. À morte, cortada a cabeça no alegre cântico, a boca aberta haveria de exalar na mudez suas palavras antigas, essa língua suja, e descansar por um instante. Depois, a comunidade abaeté escolheria as pedras mais polidas e, um a um, deixariam no côncavo daquele espanto a promessa de tudo se reimaginar, nascendo de outro jeito, e o inimigo encantaria para a abundância da mata, o órgão vital, e passaria a ser educado na acalmia pela Verdadeiríssima Divindade.
À deposição da pedra, todos, opacos guerreiros, opacas femininas e transparentes pronunciavam o nome que o pajé intuíra para abrigar o espírito inimigo na gentileza abaeté. Pai Todo intuíra que aquele seria Lonjura Serena, haveria de perdurar a espiar o céu distante. E cada guerreiro, feminina e transparente se abeirou da cabeça quieta no entrançado de folhas e entoou:
Lonjura Serena, nossas ilhas, nossos igarapés e três mares, nossa memória e alegria, todos os bichos e todas as originalidades te celebrem com a sacralização eterna e a paz, e teu espírito esteja aninhado no coro da Pedra Que Soa até que regresse na promessa do osso do relâmpago.
E as pedras podiam já cobrir o rosto e cair empilhando-se em volta, porque os abaeté estavam férteis, eram mais do que nunca, nasciam dos ventres incansáveis, ovos chocando ao cimo das pernas das femininas jovens e confiantes.
Limpavam os ossos que usariam de adorno triunfante e para suas flautas. Cuidavam da fortuna do corpo do inimigo, que sucumbira à astúcia da comunidade sempre valente e atenta, seguindo os rituais ancestrais de dignificação da mais importante caça. O corpo do inimigo semelhante era específico, a Verdadeiríssima Divindade deixara claro na infinidade de intuições de mil gerações de pajés. O semelhante era o melhor inimigo, deveria valer pelo espírito que se mudaria para a encantaria vencedora e se veria por ele amada e protegida. O terreiro organizava o ofício enquanto, a todo o momento, a encantaria vinha perto e se ocupava desse que acabava de chegar à morte. Sobre o espaço abaeté se punha o sopro vocabular do vento que dizia aos maduros a maravilha daquele gesto. E os maduros anunciavam aos mais novos a boa notícia e a comunidade demorava com esmero nas honrarias e nos prazeres.
Lonjura Serena ficou no entrançado de folhas e o povo cantou:
obrigado por nosso irmão, obrigado por nossas ilhas, cada dente é uma fera, em cada fera outra fera. A mata traz, a mata liberta.
E cantou:
abençoado povo dos três mares, do pequeno e do grande igarapé, dos bandos vermelhos, da cova de jacaré, da cova de jacaré, da grande cova de jacaré, do caminho da subida, da Pedra Que Soa e da paz e sua guerra até ao último guerreiro em pé.
Suavam os fumos das fogueiras, levantados agora à lua pelas copas. Naquela noite, em todas as noites assim, no terreiro, em torno do coto da figueira, acordavam as aves, todas as aves dispersando na imensidão o espírito do inimigo agora convidado a ser culto.
No alvoroço, misturado com tantos mais transparentes, um curumim azarava diferente, medrando em sua complexidade uma dúvida. Era antes de poder verbalizar, de saber proferir o que significava seu próprio corpo intruso, mas muito pouco antes. Crescia para sua opacidade e todos os guerreiros e todas as femininas haviam já entendido que ele se media e meditava, esperavam aquele instante receosos. Pai Todo, chefiando a comunidade, foçou o curumim e perguntou:
Honra, porque não depositaste ainda a pedra. É tua vez de criar irmandade com o inimigo que a morte educa. Educa o morto.
O curumim, resistindo em seu interior, moveu-se para junto da cabeça exposta e tomava em mão a pedra que escolhera, mas hesitava. Sabia a fala de abrigo, sabia o que pronunciar, mas era retraído por uma qualquer fúria que não definia. Pai Todo chefiou:
proclama, abriga teu novo irmão.
E o pequeno Honra, subindo um pouco em seu orgulho, respondeu:
não sinto.
Quando fugiu aldeia fora, mata adentro, talvez a caminho do pequeno igarapé, a cobra amistosa, Honra não se explicou e ofendera o pajé sem limite. Qualquer ofensa assim poderia protelar sua maturação e obrigar a que mantivesse um modo de vida pueril, impedido de ser guerreiro, formar família, ter a graça de uma feminina para as folias da fertilidade e do surgimento dos filhos. Diria, depois, que gerava euforia pelo instante de caçar e matar, mas não pelo abrigo. Não sentia euforia por abrigar o espírito do inimigo na encantaria abaeté, confessava mais, preferia que isso não acontecesse. E era superior à sua força. Perigava na gentileza. Boa de Espanto, mãe de Honra, obrigava a que sensibilizasse seu ser, pela vergonha e pela falta de inteligência.
O vento sobrevoava os dois na conversa já do sol seguinte e Boa de Espanto alertava:
a Verdadeiríssima Divindade culpará cada erro no espírito de quem retém o ódio. Odeia apenas na defesa. Jamais quem soa se pode propor ao ataque.
E o curumim entoou:
descubro minha fúria muito antes do ataque, mãe, descubro a fúria muito antes da defesa, ela é o tempo inteiro. Conte, sagrada mãe. Conte como foi que intuíram meu nome. Pai Todo intuiu que eu sou o Honra. Que farei dessa obrigação.
A feminina silenciou. Não entendia se seria demasiado cedo para que o filho soubesse. Melhor seria que Pai Todo bem medisse o tempo e o usasse para as notícias e conhecimentos. O curumim havia ficado noite toda junto ao igarapé pequeno. Estava líquido. Seus olhos turvos. Seu espírito ondulava.
Primeira educação dos abaeté era feita por essa cobra amistosa, o estreito curso de água que seguia pelas duas aldeias, a subida e a litoral. Entre os cinco e os dez tempos das estações mais quentes, antes da opacidade, todos os curumins e todas as curatãs precisavam de ficar ali esperando que a expressão da água descodificasse. Observando, nadando, os corpos de pouca altura demoravam naquele lugar, mantendo-se limpos, em movimento, escutando como no interior mais protegido da ilha corria infinitamente a água que podiam beber e com a qual se glorificavam. Beber era convidar o órgão vital a mexer a toca do espírito e a frescura era uma graça das coisas eternas. Abriam também a boca e uns aos outros se espreitavam. Entoavam:
toca do teu espírito é funda, dá para ver nada, só que não termina, é gigante. Tu também és gigante.
Depois, em jogos, banhando à pressa, os pequenos corpos vermelhos eram como guerras do próprio sangue azarando por sobre e ao fundo das águas. E os transparentes inventavam nomes para Honra, que se cansava a protestar. Tristeza Branca, Maior Inimigo, Medo Branco, Fedor, Feio. Alguém chefiava que acalmassem. Aquietavam na generosidade da mata e prestavam atenção.
Os abaeté haviam intuído que se faziam adultos pela complexidade. O conhecimento era complexo e chegava aos que perdiam para sempre a candura inútil da distracção. O igarapé educava para a atenção e para a mudança de vontade, porque mantinha o movimento, mas o mesmo gesto podia fazer-se gentil ou trazer o perigo. Em algum instante, todos os transparentes começariam a contar cada peixe correndo. Em algum instante, todos os transparentes começariam a caçar os peixes correndo para favorecer suas fomes e as fomes da comunidade. Lenta mas gratamente, cada curumim e cada curatã conquistavam sua opacidade, esse segredo que a mata ia revelando e que se inscrevia em suas forças sem muita possibilidade de ser explicado, verbalizado. Era importante deixar livres as coisas que não queriam ter nome. O nome é uma palavra habitada mas algumas entidades eram no desabrigo puro, acolhidas pela criação sem necessidade de maior forma, sem necessidade de som. Eram atributos puros do silêncio. Assim se explicavam quando alguém questionava. Respondiam que havia sido um atributo puro do silêncio. Tinha nenhum nome. Era sem vocábulo. De entre todos os pequenos corpos, Honra era quem mais pressentia sua inevitável perdição. Ávido por crescer, abusador em todas as coragens, alimentando mais do que adultos condecorados pela opacidade, Honra ficava junto do igarapé numa fúria que apenas aumentava, sem poder declarar razão concreta para seu estado sempre malcontente. Via os outros como à distância de muitas estações quentes, tão mais entretidos em suas incúrias, distracções absolutas que os tornavam imprestáveis. Se houvessem de estar em perigo, nenhum se pouparia a morrer. Ele era o único que poderia golpear um jacaré, tomar uma cobra pelo esganado da boca e levá-la ao arrependimento por o ter querido morder. Era perfeitamente capaz de agarrar cada peixe correndo ilha líquida abaixo, mas já se cansara de o fazer e fugia do mais macio da água. Honra fugia do macio da água, esses lugares onde ela parava um pouco, ficava mais larga abrindo entre pedras onde se podiam sentar, encostar descansando, só lavando a pele. Aí, todos se demoravam a mirar seus rostos.
Cintilavam na superfície, movendo-se os sorrisos e as caretas, os lábios cantando alegres. Era para todos uma alegria claríssima que o igarapé oferecesse um olhar reverso. Menos para Honra, que espiara tantas vezes em seu rosto as marcas pálidas do inimigo que fecundara sua mãe.
O inimigo branco feriu Honra no ventre de uma feminina abaeté. O inimigo feriu o filho no ventre de uma feminina. E ela restou na mata, distante, batida para morrer mas não morreu por completo. A encantaria lhe entoou que voltasse a casa. A Voz Coral esclareceu:
volta a respirar. Teu ovo imaginará um guerreiro. Teu guerreiro te amará e essa alegria será boa para a mata.
Quando Boa de Espanto se levantou e caminhou lenta para a aldeia, enganou o caminho e foi para junto do areal onde Altura Verde escavava com afinco o tronco que viraria piroga e a escutou num gemido pequeno. O guerreiro a tomou nos braços e lhe notou o sangue entre as pernas e no alto da cabeça, ele entendeu o quanto ela esteve perto de morta e perguntou:
sagrada Boa de Espanto, quem foi teu inimigo.
E a feminina respondeu:
sagrado Altura Verde, foi o branco.
E por que não te matou, perguntou ele novamente.
E ela entoou:
matou. Mas a encantaria não deu licença de passar à Pedra Que Soa. Meu ovo imaginará um guerreiro. Fiquei agora responsável por aguardar que seja capaz de me amar.
Altura Verde, abeirado muito sobre o rosto ainda aflito da feminina, prometeu:
então eu serei teu duplo. Farei desse guerreiro um gentil. Isso será bom para a mata.
E a feminina respondeu que sim. Era como o deveriam fazer.
Os guerreiros abaeté sempre escolhiam as femininas por compromisso decente. Amavam quando era certo amar. E Altura Verde amou Boa de Espanto e nasceu a partir da tristeza daquele dia uma obrigação e dessa obrigação a grata alegria de se terem juntado.
Em algumas ocasiões, ela voltava a contar como fora colhida pelo corpo pálido.
De cada vez que contava, ficava com a impressão de melhor lembrar seu rosto. Pai Todo lhe explicou que era modo de o chamar. Quando tivesse nenhuma dúvida de suas feições, seu inimigo estaria diante de si, inteiro, trazido à sua cobrança pelo verdadeiríssimo direito à vingança. Então, Boa de Espanto jurava que teria sempre a coragem de lembrar. Recontaria sua humilhação a vida toda. Recontaria porque isso ensinaria até as verdadeiríssimas dúvidas a duvidarem menos e a saberem como novamente levar à mata abaeté o inimigo que teriam o orgulho de matar.
Honra abeirou o pajé e imediatamente se prostrou aos seus pés emudecido. E o pajé o deixou. O curumim rastejou para trás e para diante aos afazeres de Pai Todo que, sem palavra, seguia suas tarefas importantes, e ninguém se intrometia para saber que era de Honra naquela horizontalidade até ridícula. Subitamente, o velho sentou e tomou seu cachimbo, acendendo-o, e chefiou:
que sentes.
Honra respondeu:
sagrado Pai Todo, sou branco. Sei agora e não sei como não o via mesmo que vendo. Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. Sou uma possessão. Um espírito baixado sobre minha dignidade abaeté. Sou um bicho como nenhum outro da mata. Um inimigo menos semelhante. Um excremento do branco no ventre de minha mãe. Sou a morte, sagrado Pai Todo, eu sou a morte. Minha transparência terminou há muito e sou deixado no igarapé para continuar distraído, mas não existe mais distracção para minhas evidências porque eu sou evidente. Não necessito sequer de ver meu rosto, basta qualquer nico de meus dedos, qualquer nico de qualquer parte de meu corpo. Tenho essa cor grotesca do inimigo que vive no exterior de nossa Divindade. Tenho essa prova grotesca de ser metade inimigo e de me ofender a mim mesmo, que sei da pureza de nossa comunidade e sonhei com o esplendor de crescer para essa pureza. Entendo agora minha fúria que me avisava tão antes de meus olhos enxergarem isto que fica diante de todos. Sagrado Pai Todo, o que poderei ser eu. Como matarei de mim o que me invade, esta metade intrusa, que recuso. Eu recuso maturar esta brancura feia. Que feminina se deitará com este corpo. Que feminina suportará que seu ventre perpetue esta ocupação, esta sujidade de minha cor, a sujidade de meu sangue. E como ocuparia eu, agora consciente, o corpo de um filho quando chegasse a hora de o saber fazer, de o ter de fazer. Como poderia oferecer-lhe a mesma maldade. Que propósito sobra para um guerreiro horrendo como eu. Que propósito senão o de matar até morrer também. Se sou uma ocupação, serei tornado vazio quando me secar a última gota de sangue. Sagrado Pai Todo, que grau de tristeza se declara para o que sinto. Suplico-lhe, que grau de tristeza se declara para o que sinto.
O santo mais perguntou:
assim sabes.
O feio respondeu:
este é o paladar da minha palavra. Minha palavra Honra.
Pai Todo chefiou:
conversa mais sobre o paladar da tua palavra.
O feio entoou:
o ódio não é abaeté. Talvez eu não seja abaeté.
O santo bateu-lhe a cara e chefiou:
cantarás nossas canções em torno da cabeça que ainda espera, cantarás por amor ao novo irmão. Deixarás que as escute, entregando-lhe seus mistérios e sua alegria. Depois, levaremos Lonjura Serena ao escondido da terra e ele estará pronto e grato para a eternidade. Assim farás, gentil. Procura amansar teus pensamentos porque são os únicos que te valerão a pena. Honra, canta. Honra, canta nossas mais belas e sapientes canções. Isso acalmará a tua presença intrusa. Usa a flauta, toca. Faz a alegria que te compete e alegra-te. O teu propósito é demasiado importante. Estaremos todos prontos para o conhecer.
E Honra tomou a flauta, o osso longo de algum inimigo anterior, e, estremecendo de olhar faiscado, entoou:
sempre que os meus lábios se aproximam dos ossos aperfeiçoados para o som, mais me apetece morder, roer como as estúpidas cutias, para que não sobre nada. Sagrado Pai Todo, se eu pudesse, roeria os ossos e os espíritos inimigos, faria com que fossem desfeitos por meus dentes furiosos e até serem incapazes de encontrar o sopro vocabular do vento, o caminho da encantaria, a robustez infinita da Pedra Que Soa. Seriam uma poeira irreconhecível a sair-me da boca, iguais a palavras repugnantes que jamais se poderiam voltar a entoar. Algumas palavras deveriam morrer quando fossem entoadas, para deixarem de poder abrigar sob sua graça aquilo que nos
ofende. Alguns nomes deveriam matar, para deixarem de lembrar quem nos ofendeu. Seríamos livres, sagrado Pai Todo, seríamos livres porque, nem querendo muito, saberíamos como recuperar aquela lembrança e assim para sempre.
Pai Todo lhe bateu de novo. O rosto descido do curumim não podia paz alguma, mas o gesto do grande pajé era obrigação de domínio. Honra consumava sua pequenez animal e aninhou. Pediu perdão e o homem santo voltou a chefiar:
canta. Entrega nossas mais belas canções a teu novo irmão, deixa que saiba seus conhecimentos e mistérios e o abriga na nossa morte. Na nossa verdadeiríssima morte. Entoa seu nome. Honra, entoa a fala de abrigo.
E Honra entoou:
Lonjura Serena, nossas ilhas, nossos igarapés e três mares, nossa memória e alegria, todos os bichos e todas as originalidades te celebrem com a sacralização eterna e a paz, e teu espírito esteja aninhado no coro da Pedra Que Soa até que regresse na promessa do osso do relâmpago.
Para melhor dominar o incauto de Honra, Pai Todo novamente lhe bateu o rosto e olhou. O animal do curumim ficou rente ao chão e esperou. Pediu perdão. Depois, tomou a flauta com cuidado e foi cantar.
Pela mata, sozinho, o feio entregava seu nome às árvores e às águas. Entoava:
Honra.
E ficava reparando como pousava de sua voz.
Às conversas com o órgão vital, ao verdadeiríssimo ouvido, o guerreiro branco procurava um modo de cindir seu ser em dois. Depois, a metade abaeté poderia matar a metade intrusa e sarar. Às carobas mais garridas, abraçado até, o feio prometia:
brotarei novos braços, novo peito, coração ou olhos, se a metade inimiga for aí e meus braços, meu peito, coração ou olhos precisarem de ser arrancados e mortos. Eu brotarei cada bocado do corpo onde esteja meu inimigo que seja levado para sempre de mim. Nem que brote braços pequenos, um palmo de peito, um resto de coração ou olhos ínfimos de mosquito. Eu bastarei de qualquer jeito, desde que me salve de ser também inimigo e arriscar obedecer à sua cultura avessa. Posso ser menor, ridículo, mas vermelho. Para que uma cutia valha mais do que uma onça basta que a cutia pense mais do que uma onça. A mata também é uma velocidade interior. Corre por dentro. Eu sei que ela corre por dentro.
As carobas não o negariam. Os guarás levantaram em bando. Eram fogos sob as copas e depois sobre as copas e depois acendendo por sobre os mares até ao fim do mundo inteiro.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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