A lua cheia ia descendo na alheta de
boreste...
Não, assim não dá. Tenho de reprimir a
minha vultosa cultura naval e explicar ao leitor ignaro que acontecia
o seguinte: era noite de lua cheia; aliás, já era madrugada, coisa
de 4 horas, pouco mais. Sendo assim, a lua já atravessara a maior
parte do céu e agora descia lá atrás de nosso barco, um pouco à
nossa direita. Se a lua estivesse baixando exatamente sobre nossa
popa, isso queria dizer que estávamos navegando exatamente em
direção a Leste. Certo? Mas não; ela descambava para trás e para
a direita, isto é, nós navegávamos para Leste e também para o
Sul.
Mais para Leste que para o Sul. Digamos:
Leste-Sueste. Na roda dos ventos graduada de 0 a 360 graus, o rumo
era mais ou menos 125. Acho que estou sendo bastante claro, a não
ser para os leitores mineiros, goianos e outros mato-grossenses e
homens de terra adentro, que, aliás, é melhor que não me leiam,
pois comecei esta narrativa em pleno mar e irei até o fim sem pisar
terra firme; sinto que os que chegaram até aqui já começam a se
sentir mareados.
Aguentem-se. Quando eu era rapazola
alguém me deu a ler O Tufão, de Conrad, em tradução
brasileira. Achei formidável, embora não entendesse nenhuma
daquelas manobras com enxárcias, bujarronas, mastaréus e paus de
giba, joanetes e sobregatas, traquetes e gurupés. Eu não sabia o
que queria dizer nada disso. Nem por isso senti menos os açoites do
vento e o terror das vagas; não naufraguei porque eu já era um
homenzinho — mas sofri muito. Nenhuma tempestade do cinema sonoro e
colorido me impressionou tanto como aquela. Veja-se a força da
literatura e o impacto violento das palavras, sobretudo as
desconhecidas, sobre o espírito humano.
Mas navigare est necesse; voltemos
ao nosso barco. Esclareço que estou falando da noite de 27 de
fevereiro de 1983, domingo, ou melhor, da madrugada de 28,
segunda-feira. O oceano é o Pacífico, a pouco mais de 90 graus de
longitude Oeste de Greenwich; isto quer dizer uns 900km à esquerda
do ponto mais esquerdo da América do Sul, para quem olha um mapa;
quanto à latitude, é zero; estamos na altura da linha do Equador.
Passamos esta linha do Sul para o Norte esta noite mesmo; e agora
voltamos a cruzá-la em sentido contrário. É que demos a volta ao
Cabo Wolf, ponta norte da ilha Isabela (ou Albemable), a maior de
todas as Galápagos. Na cabina de comando, atrás do homem da roda do
leme, eu via o céu e o mar, tudo azul e manso.
Na minha frente, um pouco à esquerda,
uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante.
Ela era Antares, ele, Júpiter. Estão
vendo como eu sei as coisas? (Na verdade quem os identificou para mim
foi o imediato, um genovês. Eu conquistara sua simpatia
mostrando-lhe que conhecia alguma coisa de seu dialeto, por exemplo:
trabalho é laburo, moça bonita é una bela figlia e
cinco é cinco mesmo, escrito e falado como em português, e
não, como em italiano, cinque, que se pronuncia tchinque.
Aliás o que me prejudica o estilo é esta cultura polimórfica, que
me faz abrir parênteses a todo instante.) “Antares”, disse ele
amavelmente, “é a Alfa de Escorpião.”
Coisa que eu já sabia, mas fiquei
calado, pois é antipático mostrar que a gente sabe coisa demais.
Referi-lhe uma crença, comum na Marinha brasileira e certamente em
outras, que atribui a Antares influências maléficas. É uma estrela
muito oferecida e fácil de trabalhar com ela, mas apesar disso,
quando querem determinar, por exemplo, a posição do navio, muitos
nautas preferem usar outras estrelas menores e mais difíceis. Eu
sabia disso pelo comandante Renato Bayma Archer, que me assessora
habitualmente em assuntos navais e outros. Lembro-me de que fiquei
apreensivo ao conhecer essa fama de Antares, porque Érico Veríssimo,
a quem muito prezava, acabava de publicar o romance Incidente em
Antares. Calei-me e não passei a informação a ninguém, muito
menos ao Érico, homem de coração fraco; ele ainda viveu quatro
anos.
Agora o imediato me aponta algumas
estrelas um pouco à nossa direita, na frente: “aquelas você
conhece.” Era o Cruzeiro do Sul, já tombado, pertinho do
horizonte, com as duas maiores estrelas do Centauro em cima dele.
Aqui no Equador, o Cruzeiro, quando aparece, é num cantinho de céu
estreito. É como se, aí no Rio, ele nascesse diante de minha
varanda mais ou menos por cima da laje da Cagarra e já descesse na
Filhote da Redonda. Comovi-me um pouco ao ver aquelas estrelas tão
familiares, e até amigas, que tantas vezes miro depois do jantar, da
minha rede. “Boa noite”, murmurei vagamente, e quase acrescentei:
“este mundo é muito pequeno.”
Nem tanto. Lembrei-me de que se ali eram
quatro horas da madrugada, no Rio já seriam sete da manhã, tudo
inundado de sol de verão, a praça General Osório bufando de
ônibus, já fazendo calor.
Eu disse que havia “na minha frente, um
pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta
brilhante”. E mais adiante acrescentei que o Cruzeiro do Sul estava
“um pouco à nossa direita”.
A linguagem certa seria localizar Antares
e Júpiter na bochecha de bombordo e o Cruzeiro na bochecha de
boreste. É assim que se diz. Mas eu escrevo para o leitor rude e
terráqueo, que não pretendo confundir, mas ilustrar. Lendo-me, ele
pode não entender muita coisa, mas sempre irá aprendendo alguma.
Isso de “bochecha” de navio é
engraçado. Avisa-me porém, o antigo primeiro-tenente do 1º Grupo
de Aviação de Caça na Itália, hoje Brigadeiro Luiz Felipe
Perdigão Medeiros da Fonseca, oriundo da Marinha, que, em suas
origens, muitos termos navais eram alusivos ao corpo humano; mais
precisamente, ao corpo da mulher. Coisa de marinheiro, ávido e
saudoso de carinho feminino. Tanto que em inglês o barco não se
designa pelo neutro it, mas pelo carinhoso she.
Em matéria de sexo há uma dúvida no
Brasil que só o Estado-Maior das Forças Armadas — digam: EMFA —
poderá resolver um dia: hélice na Marinha é masculino e na
Aeronáutica é feminino. Quem tem razão? Para nós, paisanos, o
melhor é dizer humildemente: o hélice do navio, a hélice do avião.
(Não criar caso com os homens de farda; eles sempre têm razão, de
um lado e de outro; e se você brincar, mandam-lhe em cima a Lei de
Segurança Nacional.) Isto me faz lembrar uma vez em que fui
interrogado. Eu dei uma resposta muito boa ao coronel que me
interrogava; o diabo é que agora não me lembro se respondi aquilo
mesmo na hora ou se foi depois que atinei com a resposta, quando já
era tarde. Sou desses sujeitos sem a chamada “presença de
espírito”. Meu espírito às vezes só se faz presente horas, dias
depois da ocasião. O caso é que o homem se mostrava indignado e
também um tanto intrigado com um artigo meu, publicado meses antes:
— O que é que você quer dizer com isto?
Expliquei-lhe que eu queria dizer aquilo
mesmo que estava escrito. Eu vivo de escrever, sei escrever
corretamente em português do Brasil, e tenho até “redação
própria”, como dizia de Otto Lara Resende, com admiração, um
contínuo seu da TV Globo, vendo-o bater à máquina sem olhar papel
nenhum.
Entendo esse contínuo: trata-se do
chamado “mistério da criação”. Vá você domingo à praça
General Osório ver a tal feira hippie. Há ali quadros de muitos
pintores, representando paisagens de céu, terra e mar, e figuras de
toda espécie, de mulher nua até negro velho de cachimbo. As pessoas
passam, olham rapidamente, vão andando. Mas vem um artista, arma um
cavalete e começa a pintar ali mesmo um retrato ou qualquer outra
coisa; e logo um monte de gente se forma atrás dele, fascinante. É
o encanto da coisa in fieri.
É claro que não expliquei tudo isto ao
oficial que me interrogava em um quartel de São Cristóvão. Apenas,
se bem me lembro, disse que eu tinha muita prática de escrever e,
por isso, sabia dizer por escrito o que eu queria dizer. Assim,
respondi à sua pergunta: o que eu queria dizer ao escrever aquilo
era exatamente o que ali estava escrito.
Ocorreu-me então uma resposta melhor.
Foi na hora, ou depois que isto ocorreu? Não me lembro,
sinceramente, e às vezes tenho a impressão de que a resposta me
ocorreu na hora, mas eu achei que não ficava bem.
Pois ficava. Ele queria saber o que eu
queria (ou quisera) dizer num artigo que escrevera, e eu me lembrei
do aviso que existe no talão do jogo de bicho. Antigamente havia um
carimbo em cada talão avisando: “Só vale o que está escrito.”
Com o tempo isto foi reduzido a uma fórmula mais concisa: “Vale o
escrito.” Com isto o bicheiro se livra de reclamações tipo “mas
eu mandei você botar invertido na cabeça”. Tenha mandado isso ou
não tenha, se não está escrito não vale.
“Vale o escrito.” Regra de ouro para
infirmar alegações ingênuas ou capciosas de leitores de
entrelinhas. “Vale o escrito.” É perfeito.
Também muito bonita foi uma resposta que
eu (não) dei ao Paulo Bittencourt, que era diretor do Correio da
Manhã, onde eu trabalhei, mas, no tempo dessa conversa, ainda
não trabalhava. Eu ajustava com ele o preço de umas reportagens que
ia fazer no exterior para vários jornais, e a certa altura, a
propósito não me lembro de que, ele disse que então preferia usar
a prata da casa! Mais adiante, na conversa, ele falou outra vez na
prata da casa. Só muitos dias depois me ocorreu que eu lhe devia ter
dito na hora: “Então está tudo muito bem, Paulo, eu desisto,
mesmo porque eu não sou prata da casa de ninguém.”
Bela resposta, e soberba! Paulo, que
tinha muito de um gentil-homem, era capaz até de gostar. “Eu não
sou prata da casa de ninguém!” Ou então assim: “Pois fique o
senhor sabendo que eu não sou prata da casa de ninguém!” Famosa
resposta! E pensar que não a dei...
Só agora percebo que comecei a falar das
ilhas Galápagos, e me perdi. Vamos deixar isso para lá.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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