Não se pode negar que tive alguns
críticos bons. Não me refiro às adesões de banquetes literários
nem falo tampouco das injúrias que involuntariamente provoquei.
Refiro-me a outras pessoas. Entre os
livros sobre minha poesia, além dos escritos por jovens fervorosos,
devo declinar o nome em lugar destacado do soviético León Ospovat.
Este jovem chegou a dominar a língua espanhola e viu minha poesia
com algo mais que a simples análise de sentido e som: deu a ela uma
perspectiva vindoura, atribuindo-lhe a luz boreal de seu mundo.
Emir Rodríguez Monegal, crítico de
primeira ordem, publicou um livro sobre minha obra poética,
intitulando-o El viajero inmóvil. Observa-se, de relance, que
não é tolo este estudioso. Viu logo que gosto de viajar sem me
mover de casa, sem sair de meu país, sem me apartar de mim mesmo.
(Em um exemplar que tenho desse maravilhoso livro de literatura
policial intitulado A pedra lunar, há uma gravura de que
gosto muito. Representa um velho cavaleiro inglês, envolto em sua
túnica ou gibão ou sobrecasaca ou lá o que seja, sentado diante da
lareira com um livro na mão, o cachimbo na outra e dois cães
sonolentos a seus pés. Assim gostaria de ficar sempre, diante do
fogo, junto ao mar, entre dois cães, lendo os livros que bastante
trabalho me custou para reunir, fumando meus cachimbos.)
O livro de Amado Alonso, Poesia y
estilo de Pablo Neruda, é válido para muitos. É interessante
sua apaixonada análise na sombra, buscando os níveis entre as
palavras e a escorregadia realidade. Além disso, o estudo de Alonso
revela a primeira preocupação séria em nosso idioma pela obra de
um poeta contemporâneo. E isso me honra além da conta.
Para estudar e expressar uma análise de
minha poesia, muitos críticos recorreram a mim, entre eles o mesmo
Amado Alonso, que me encurralava com perguntas e me encostava contra
a parede da claridade, onde muitas vezes não podia segui-lo então.
Alguns me creem um poeta surrealista,
outros um realista e outros ainda não me creem poeta. Todos eles têm
um pouco de razão e um pouco de falta de razão.
Residencia en la tierra está
escrita, ou pelo menos começada, antes do apogeu surrealista, como
também Tentativa del hombre infinito, mas nisso de datas não
se deve confiar. O ar do mundo transporta as moléculas da poesia,
leve como o pólen ou duro como o chumbo e essas semeites caem nos
sulcos ou sobre as cabeças, dão às coisas ar de primavera ou de
batalha, produzem igualmente flores e projéteis.
Quanto ao realismo devo dizer, por que
não me convém fazê-lo, que detesto o realismo quando se trata da
poesia. E mais, a poesia não precisa ser super-realista ou
surrealista, mas pode ser anti-realista, com toda a razão, com toda
a falta de razão, isto é, com toda a poesia.
Gosto do livro, da densa matéria do
trabalho poético, do bosque da literatura, gosto de tudo, até das
lombadas dos livros, mas não dos rótulos das escolas. Quero livros
sem escolas e sem classificação, como a vida.
Gosto do “herói positivo” em Walt
Whitman e em Maiakovski, quer dizer, naqueles que o encontraram sem
fórmula e o incorporaram, não sem sofrimento, à intimidade de
nossa vida corporal, fazendo-o compartilhar conosco o pão e o sonho.
A sociedade socialista tem que terminar
com a mitologia de uma época apressada, na qual valiam mais os
rótulos do que as mercadorias e na qual as essências foram deixadas
de lado. Mas a necessidade mais imperiosa para os escritores é
escrever bons livros. Do mesmo modo que gosto do “herói positivo”
encontrado nas turbulentas trincheiras das guerras civis pelo
norte-americano Whitman ou pelo soviético Maiakovski, cabe também
em meu coração o herói enlutado de Lautréamont, o cavaleiro
suspirante de Laforgue e o soldado negativo de Charles Baudelaire.
Cuidado ao separar estas metades da maçã da criação porque talvez
cortássemos nosso coração e deixássemos de ser. Cuidado! Devemos
exigir ao poeta lugar na rua e no combate, assim como na luz e na
sombra. Talvez os deveres do poeta fossem sempre os mesmos na
história. O valor da poesia foi sair à rua, foi tomar parte num e
noutro combate. Não se assustou o poeta quando o chamaram de
rebelde. A poesia é uma insurreição. Não se ofendeu o poeta
porque o chamaram de subversivo. A vida ultrapassa as estruturas e há
novos códigos para a alma. De todas as partes salta a semente, todas
as ideias são exóticas, esperamos cada dia mudanças imensas,
vivemos com entusiasmo a mutação da ordem humana: a primavera é
insurrecional. Dei tudo que tinha. Lancei minha poesia na arena e
muitas vezes sangrei com ela, sofrendo as agonias e exaltando as
glórias que me coube presenciar e viver. Algumas vezes fui
incompreendido, e isto não é de todo mau.
Um crítico equatoriano disse que em meu
livro Las uvas y el viento não tem mais de seis páginas de
verdadeira poesia. Acontece que o equatoriano leu sem amor meu livro
por ser este um livro político, assim como outros críticos
superpolíticos detestaram Residencia en la tierra por
considerá-la subjetiva e sombria. O próprio Juan Marinello, tão
eminente, condenou-a em outra época em nome dos princípios. Acho
que ambos cometeram um erro, oriundo das mesmas fontes.
Às vezes também eu posso ter falado
contra Residencia en la tierra. Mas não o fiz pensando não
na poesia, mas sim no clima duramente pessimista que esse livro meu
respira. Não posso esquecer que há poucos anos um rapaz de Santiago
se suicidou ao pé de uma árvore, deixando aberto meu livro no poema
“Significa sombras”.
Creio que tanto Residencia en la
tierra, livro sombrio e essencial dentro de minha obra, como Las
uvas y el viento, livro de grandes espaços e muita luz, têm
direito de existir de alguma maneira. E não estou me contradizendo
ao dizer isto.
A verdade é que tenho certa predileção
por Las uvas y el viento, talvez por ser meu livro mais
incompreendido ou porque através de suas páginas eu saí a andar
pelo mundo. Ele tem pó de caminhos e água de rios, tem seres,
continuidades e ultramar de outros lugares que eu não conhecia e que
me foram revelados de tanto andar. É um dos livros de que mais
gosto, repito.
De todos meus livros, Estravagario
não é o que canta mais, mas é o que salta melhor. Seus versos
dançarinos passam ao largo da ordem, do respeito, da proteção
mútua, das instituições e das obrigações, para auspiciar o
reverente desacato. Por sua irreverência é meu livro mais íntimo.
Por seu alcance logra transcendência dentro de minha poesia. No meu
modo de gostar, é um livro difícil, com esse gosto de sal que tem a
verdade.
Nas Odas Elementales me propus uma
base originária, nascedoura. Quis reescrever muitas coisas já
cantadas, ditas e reditas. Meu ponto de partida deliberado devia ser
o do menino que empreende, chupando o lápis, uma composição
obrigatória sobre o sol, o quadronegro, o relógio ou a família
humana. Nenhum tema podia ficar fora de minha órbita, eu devia tocar
tudo andando ou voando, submetendo minha expressão à máxima
transparência e pureza.
Porque comparei umas pedras com uns
patinhos, um crítico uruguaio se escandalizou. Ele tinha decretado
que os patinhos não eram material poético, como tampouco outros
pequenos animais. A esta falta de seriedade chegou a verborréia
literária. Querem obrigar os criadores a não tratar senão de temas
sublimes. Mas estão enganados. Faremos poesia até com as coisas
mais desprezadas pelos mestres do bom gosto.
A burguesia exige uma poesia cada vez
mais isolada da realidade. O poeta que sabe chamar o pão de pão e o
vinho de vinho é perigoso para o agonizante capitalismo. Mais
conveniente é que o poeta acredite ser “um pequeno deus”, como
dissera Vicente Huidobro. Esta crença ou atitude não incomoda as
classes dominantes. O poeta permanece assim comovido por seu
isolamento divino e não é necessário suborná-lo ou esmagá-lo.
Ele mesmo se terá subornado ao se condenar ao céu. Enquanto isso, a
terra treme em seu caminho, em seu fulgor.
Nossos povos americanos têm milhões de
analfabetos. A falta de cultura é preservada como circunstância
hereditária e privilégio do feudalismo. Poderíamos dizer, em que
pese os nossos setenta milhões de analfabetos, que nossos leitores
não nasceram ainda. Devemos apressar esse parto para que leiam a nós
e a todos os poetas. É preciso abrir a matriz da América para tirar
dela a gloriosa luz.
Frequentemente os críticos de livros se
prestam a condescender com as ideias dos empresários feudais. No ano
de 1961, por exemplo, apareceram três livros meus: Canción de
gesta, Las piedras de Chile e Cantos cerimoniales. Nem
sequer os títulos foram mencionados pelos críticos de meu país
durante todo o ano.
Quando foi publicado pela primeira vez
meu poema “Alturas de Machu Picchu”, tampouco ninguém se atreveu
a mencioná-lo no Chile. O editor do poema chegou aos escritórios do
jornal chileno mais volumoso, El Mercurio, um diário que se
publica há quase um século e meio. Levava uma notícia paga que
anunciava a aparição do livro. Aceitaram-na sob a condição de que
suprimisse meu nome.
– Mas se Neruda é o autor –
protestava Neira.
– Não importa – responderam.
“Alturas de Machu Picchu”
teve que aparecer como de autor anônimo no anúncio. De que serviam
cento e cinquenta anos de vida a esse jornal? Em tanto tempo não
aprendeu a respeitar a verdade, nem os fatos, nem a poesia.
Às vezes as paixões negativas contra
mim não obedecem simplesmente a um exasperado reflexo da luta de
classes, mas sim a outras causas. Com mais de quarenta anos de
trabalho, honrado com vários prêmios literários, meus livros
editados nos idiomas mais surpreendentes, não passa um dia sem que
receba algum pequeno golpe ou golpes seguidos da inveja circundante.
Tal é o caso de minha casa. Comprei há vários anos esta casa em
Isla Negra, em um lugar deserto, quando aqui não havia água potável
nem eletricidade. À custa de livros a melhorei e a ampliei. Trouxe
amadas estátuas de madeira, carrancas de velhos barcos, que em meu
lar encontraram asilo e descanso depois de longas viagens.
Porém muitos não podem tolerar que um
poeta tenha alcançado, como fruto de sua obra publicada em toda
parte, o conforto material que merecem todos os escritores, todos os
músicos, todos os pintores. Os anacrônicos escribas reacionários,
que pedem a toda hora honras para Goethe, negam aos poetas de hoje o
direito à vida. O fato de eu ter um automóvel os exaspera
particularmente. Segundo eles, o automóvel deve ser exclusividade
dos comerciantes, dos especuladores, dos gerentes de prostíbulos,
dos agiotas e dos trapaceiros.
Para que fiquem mais furiosos darei minha
casa de Isla Negra para o povo, para que ali se façam reuniões
sindicais e colônia de férias para mineiros e camponeses. Minha
poesia estará vingada.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi
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