segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Crítica e autocrítica

Não se pode negar que tive alguns críticos bons. Não me refiro às adesões de banquetes literários nem falo tampouco das injúrias que involuntariamente provoquei.
Refiro-me a outras pessoas. Entre os livros sobre minha poesia, além dos escritos por jovens fervorosos, devo declinar o nome em lugar destacado do soviético León Ospovat. Este jovem chegou a dominar a língua espanhola e viu minha poesia com algo mais que a simples análise de sentido e som: deu a ela uma perspectiva vindoura, atribuindo-lhe a luz boreal de seu mundo.
Emir Rodríguez Monegal, crítico de primeira ordem, publicou um livro sobre minha obra poética, intitulando-o El viajero inmóvil. Observa-se, de relance, que não é tolo este estudioso. Viu logo que gosto de viajar sem me mover de casa, sem sair de meu país, sem me apartar de mim mesmo. (Em um exemplar que tenho desse maravilhoso livro de literatura policial intitulado A pedra lunar, há uma gravura de que gosto muito. Representa um velho cavaleiro inglês, envolto em sua túnica ou gibão ou sobrecasaca ou lá o que seja, sentado diante da lareira com um livro na mão, o cachimbo na outra e dois cães sonolentos a seus pés. Assim gostaria de ficar sempre, diante do fogo, junto ao mar, entre dois cães, lendo os livros que bastante trabalho me custou para reunir, fumando meus cachimbos.)
O livro de Amado Alonso, Poesia y estilo de Pablo Neruda, é válido para muitos. É interessante sua apaixonada análise na sombra, buscando os níveis entre as palavras e a escorregadia realidade. Além disso, o estudo de Alonso revela a primeira preocupação séria em nosso idioma pela obra de um poeta contemporâneo. E isso me honra além da conta.

Para estudar e expressar uma análise de minha poesia, muitos críticos recorreram a mim, entre eles o mesmo Amado Alonso, que me encurralava com perguntas e me encostava contra a parede da claridade, onde muitas vezes não podia segui-lo então.
Alguns me creem um poeta surrealista, outros um realista e outros ainda não me creem poeta. Todos eles têm um pouco de razão e um pouco de falta de razão.
Residencia en la tierra está escrita, ou pelo menos começada, antes do apogeu surrealista, como também Tentativa del hombre infinito, mas nisso de datas não se deve confiar. O ar do mundo transporta as moléculas da poesia, leve como o pólen ou duro como o chumbo e essas semeites caem nos sulcos ou sobre as cabeças, dão às coisas ar de primavera ou de batalha, produzem igualmente flores e projéteis.
Quanto ao realismo devo dizer, por que não me convém fazê-lo, que detesto o realismo quando se trata da poesia. E mais, a poesia não precisa ser super-realista ou surrealista, mas pode ser anti-realista, com toda a razão, com toda a falta de razão, isto é, com toda a poesia.
Gosto do livro, da densa matéria do trabalho poético, do bosque da literatura, gosto de tudo, até das lombadas dos livros, mas não dos rótulos das escolas. Quero livros sem escolas e sem classificação, como a vida.
Gosto do “herói positivo” em Walt Whitman e em Maiakovski, quer dizer, naqueles que o encontraram sem fórmula e o incorporaram, não sem sofrimento, à intimidade de nossa vida corporal, fazendo-o compartilhar conosco o pão e o sonho.
A sociedade socialista tem que terminar com a mitologia de uma época apressada, na qual valiam mais os rótulos do que as mercadorias e na qual as essências foram deixadas de lado. Mas a necessidade mais imperiosa para os escritores é escrever bons livros. Do mesmo modo que gosto do “herói positivo” encontrado nas turbulentas trincheiras das guerras civis pelo norte-americano Whitman ou pelo soviético Maiakovski, cabe também em meu coração o herói enlutado de Lautréamont, o cavaleiro suspirante de Laforgue e o soldado negativo de Charles Baudelaire. Cuidado ao separar estas metades da maçã da criação porque talvez cortássemos nosso coração e deixássemos de ser. Cuidado! Devemos exigir ao poeta lugar na rua e no combate, assim como na luz e na sombra. Talvez os deveres do poeta fossem sempre os mesmos na história. O valor da poesia foi sair à rua, foi tomar parte num e noutro combate. Não se assustou o poeta quando o chamaram de rebelde. A poesia é uma insurreição. Não se ofendeu o poeta porque o chamaram de subversivo. A vida ultrapassa as estruturas e há novos códigos para a alma. De todas as partes salta a semente, todas as ideias são exóticas, esperamos cada dia mudanças imensas, vivemos com entusiasmo a mutação da ordem humana: a primavera é insurrecional. Dei tudo que tinha. Lancei minha poesia na arena e muitas vezes sangrei com ela, sofrendo as agonias e exaltando as glórias que me coube presenciar e viver. Algumas vezes fui incompreendido, e isto não é de todo mau.
Um crítico equatoriano disse que em meu livro Las uvas y el viento não tem mais de seis páginas de verdadeira poesia. Acontece que o equatoriano leu sem amor meu livro por ser este um livro político, assim como outros críticos superpolíticos detestaram Residencia en la tierra por considerá-la subjetiva e sombria. O próprio Juan Marinello, tão eminente, condenou-a em outra época em nome dos princípios. Acho que ambos cometeram um erro, oriundo das mesmas fontes.
Às vezes também eu posso ter falado contra Residencia en la tierra. Mas não o fiz pensando não na poesia, mas sim no clima duramente pessimista que esse livro meu respira. Não posso esquecer que há poucos anos um rapaz de Santiago se suicidou ao pé de uma árvore, deixando aberto meu livro no poema “Significa sombras”.
Creio que tanto Residencia en la tierra, livro sombrio e essencial dentro de minha obra, como Las uvas y el viento, livro de grandes espaços e muita luz, têm direito de existir de alguma maneira. E não estou me contradizendo ao dizer isto.
A verdade é que tenho certa predileção por Las uvas y el viento, talvez por ser meu livro mais incompreendido ou porque através de suas páginas eu saí a andar pelo mundo. Ele tem pó de caminhos e água de rios, tem seres, continuidades e ultramar de outros lugares que eu não conhecia e que me foram revelados de tanto andar. É um dos livros de que mais gosto, repito.
De todos meus livros, Estravagario não é o que canta mais, mas é o que salta melhor. Seus versos dançarinos passam ao largo da ordem, do respeito, da proteção mútua, das instituições e das obrigações, para auspiciar o reverente desacato. Por sua irreverência é meu livro mais íntimo. Por seu alcance logra transcendência dentro de minha poesia. No meu modo de gostar, é um livro difícil, com esse gosto de sal que tem a verdade.
Nas Odas Elementales me propus uma base originária, nascedoura. Quis reescrever muitas coisas já cantadas, ditas e reditas. Meu ponto de partida deliberado devia ser o do menino que empreende, chupando o lápis, uma composição obrigatória sobre o sol, o quadronegro, o relógio ou a família humana. Nenhum tema podia ficar fora de minha órbita, eu devia tocar tudo andando ou voando, submetendo minha expressão à máxima transparência e pureza.
Porque comparei umas pedras com uns patinhos, um crítico uruguaio se escandalizou. Ele tinha decretado que os patinhos não eram material poético, como tampouco outros pequenos animais. A esta falta de seriedade chegou a verborréia literária. Querem obrigar os criadores a não tratar senão de temas sublimes. Mas estão enganados. Faremos poesia até com as coisas mais desprezadas pelos mestres do bom gosto.
A burguesia exige uma poesia cada vez mais isolada da realidade. O poeta que sabe chamar o pão de pão e o vinho de vinho é perigoso para o agonizante capitalismo. Mais conveniente é que o poeta acredite ser “um pequeno deus”, como dissera Vicente Huidobro. Esta crença ou atitude não incomoda as classes dominantes. O poeta permanece assim comovido por seu isolamento divino e não é necessário suborná-lo ou esmagá-lo. Ele mesmo se terá subornado ao se condenar ao céu. Enquanto isso, a terra treme em seu caminho, em seu fulgor.
Nossos povos americanos têm milhões de analfabetos. A falta de cultura é preservada como circunstância hereditária e privilégio do feudalismo. Poderíamos dizer, em que pese os nossos setenta milhões de analfabetos, que nossos leitores não nasceram ainda. Devemos apressar esse parto para que leiam a nós e a todos os poetas. É preciso abrir a matriz da América para tirar dela a gloriosa luz.
Frequentemente os críticos de livros se prestam a condescender com as ideias dos empresários feudais. No ano de 1961, por exemplo, apareceram três livros meus: Canción de gesta, Las piedras de Chile e Cantos cerimoniales. Nem sequer os títulos foram mencionados pelos críticos de meu país durante todo o ano.
Quando foi publicado pela primeira vez meu poema “Alturas de Machu Picchu”, tampouco ninguém se atreveu a mencioná-lo no Chile. O editor do poema chegou aos escritórios do jornal chileno mais volumoso, El Mercurio, um diário que se publica há quase um século e meio. Levava uma notícia paga que anunciava a aparição do livro. Aceitaram-na sob a condição de que suprimisse meu nome.
Mas se Neruda é o autor – protestava Neira.
Não importa – responderam.
Alturas de Machu Picchu” teve que aparecer como de autor anônimo no anúncio. De que serviam cento e cinquenta anos de vida a esse jornal? Em tanto tempo não aprendeu a respeitar a verdade, nem os fatos, nem a poesia.
Às vezes as paixões negativas contra mim não obedecem simplesmente a um exasperado reflexo da luta de classes, mas sim a outras causas. Com mais de quarenta anos de trabalho, honrado com vários prêmios literários, meus livros editados nos idiomas mais surpreendentes, não passa um dia sem que receba algum pequeno golpe ou golpes seguidos da inveja circundante. Tal é o caso de minha casa. Comprei há vários anos esta casa em Isla Negra, em um lugar deserto, quando aqui não havia água potável nem eletricidade. À custa de livros a melhorei e a ampliei. Trouxe amadas estátuas de madeira, carrancas de velhos barcos, que em meu lar encontraram asilo e descanso depois de longas viagens.
Porém muitos não podem tolerar que um poeta tenha alcançado, como fruto de sua obra publicada em toda parte, o conforto material que merecem todos os escritores, todos os músicos, todos os pintores. Os anacrônicos escribas reacionários, que pedem a toda hora honras para Goethe, negam aos poetas de hoje o direito à vida. O fato de eu ter um automóvel os exaspera particularmente. Segundo eles, o automóvel deve ser exclusividade dos comerciantes, dos especuladores, dos gerentes de prostíbulos, dos agiotas e dos trapaceiros.
Para que fiquem mais furiosos darei minha casa de Isla Negra para o povo, para que ali se façam reuniões sindicais e colônia de férias para mineiros e camponeses. Minha poesia estará vingada.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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