Esta é a história da morte de Iñe-e. E
também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E
ainda a história de como permanece em vigilância. De como foi
levada mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por artes
deles, perdeu e também recuperou a sua voz. Preste atenção, essa
voz que eu apresento agora não é a mesma voz que ecoava pela mata
chamando pelos seus irmãos mais velhos enquanto colhia frutas para
levar para a maloca. E muito menos é a voz que foi silenciada por
baixo das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por
vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas e,
depois, contida pelos risos nervosos dos cortesãos e pela
impaciência rude das Fraülein.
Tampouco é a voz que ignorou o que
diziam sobre ela os jornais e as revistas da época, as cartas
escritas em letras flexíveis como o broto do cipó. Essa voz que
você ocasionalmente escutará em sua cabeça e que se confundirá
com a sua própria voz, ou com a voz da sua filha, ou da criança da
mulher vizinha, ou até, quem sabe, com a voz de sua avó, seja ela
quem for, não é a mesma voz com que Iñe-e nasceu. Não é aquela
que virou pedra em sua garganta quando ela foi viver no grande
castelo entre pessoas quase transparentes de tão brancas, suas
carnes moles e azedas se movimentando por entre os panos coloridos e
brilhantes que, embora bonitos, não poderiam disfarçar o feiume dos
seus captores, seus cabelos, a maioria desbotados, carecendo da
beleza esplendente que a tinta negra do huito pode dar. Também não
foi aquela voz que ela escondeu, tesouro muito bem guardado, para que
os inimigos não tivessem nada mais dela.
Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa
língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas
umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque
agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora
ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade
sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em
apreendê-la. Assim, se há uma recusa em usar a palavra taxidermia e
se escolhe usar a palavra desencantamento, há teimosia nisso. E pode
ter certeza de que Iñe-e aprovaria esse recurso. Se, em lugar de
rio, ela falar muaai ou até Fluss , pode se tratar de uma
admoestação a respeito do que lhe fizeram. Para contar esta
história, Iñe-e adverte que não é possível ser tolerante.
Ademais, usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz
possível ferir melhor. É possível envenená-la, zarabatana, como
fazem os guerreiros do povo miranha com o curare preparado com o suor
e sangue de suas mulheres. É possível incendiá-la, curare quente e
amargo. E de todo modo, como já se disse, é possível usá-la como
se quiser.
Essa é a voz do morto, na língua do
morto, nas letras do morto. Tudo eivado de imperfeição, é verdade,
mas o que posso fazer senão contar, entre as rachaduras, esta
história? Feito planta que rompe a dureza do tijolo, suas raízes
caminhando pelo escuro, a força de suas folhas impondo nova
paisagem, esta história procura o sol.
Quando Iñe-e morreu ela estava com doze
anos de idade. Então, essa é a voz da menina morta. E se alguém
perceber nela um acento rascante, e acaso a confundir com uma voz
muito velha que se eleva de uma sepultura congelada, garanto que é
da infância que essa voz brota, nasce e se levanta. E toda voz da
infância, sabe-se, é selvagem, animal, insubordina os sentidos.
E agora que já se sabe, sigamos pelo
começo de tudo. Por aquilo que foi determinado como o começo de
tudo. E embora alguém possa refutar e dizer que esta história
começou com um rei que, com o bisaco cheio de moedas da ávida
burguesia, resolveu lançar-se ao mar, aquele mesmo, o Tenebroso, eu
desminto e digo que tudo começou mesmo em Iñe-e.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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