domingo, 14 de novembro de 2021

História da morte de Iñe-e

Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância. De como foi levada mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou a sua voz. Preste atenção, essa voz que eu apresento agora não é a mesma voz que ecoava pela mata chamando pelos seus irmãos mais velhos enquanto colhia frutas para levar para a maloca. E muito menos é a voz que foi silenciada por baixo das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas e, depois, contida pelos risos nervosos dos cortesãos e pela impaciência rude das Fraülein.
Tampouco é a voz que ignorou o que diziam sobre ela os jornais e as revistas da época, as cartas escritas em letras flexíveis como o broto do cipó. Essa voz que você ocasionalmente escutará em sua cabeça e que se confundirá com a sua própria voz, ou com a voz da sua filha, ou da criança da mulher vizinha, ou até, quem sabe, com a voz de sua avó, seja ela quem for, não é a mesma voz com que Iñe-e nasceu. Não é aquela que virou pedra em sua garganta quando ela foi viver no grande castelo entre pessoas quase transparentes de tão brancas, suas carnes moles e azedas se movimentando por entre os panos coloridos e brilhantes que, embora bonitos, não poderiam disfarçar o feiume dos seus captores, seus cabelos, a maioria desbotados, carecendo da beleza esplendente que a tinta negra do huito pode dar. Também não foi aquela voz que ela escondeu, tesouro muito bem guardado, para que os inimigos não tivessem nada mais dela.
Empresta-se para Iñe-e essa voz e essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em apreendê-la. Assim, se há uma recusa em usar a palavra taxidermia e se escolhe usar a palavra desencantamento, há teimosia nisso. E pode ter certeza de que Iñe-e aprovaria esse recurso. Se, em lugar de rio, ela falar muaai ou até Fluss , pode se tratar de uma admoestação a respeito do que lhe fizeram. Para contar esta história, Iñe-e adverte que não é possível ser tolerante. Ademais, usa-se essa voz e essa língua porque é com ela que se faz possível ferir melhor. É possível envenená-la, zarabatana, como fazem os guerreiros do povo miranha com o curare preparado com o suor e sangue de suas mulheres. É possível incendiá-la, curare quente e amargo. E de todo modo, como já se disse, é possível usá-la como se quiser.
Essa é a voz do morto, na língua do morto, nas letras do morto. Tudo eivado de imperfeição, é verdade, mas o que posso fazer senão contar, entre as rachaduras, esta história? Feito planta que rompe a dureza do tijolo, suas raízes caminhando pelo escuro, a força de suas folhas impondo nova paisagem, esta história procura o sol.
Quando Iñe-e morreu ela estava com doze anos de idade. Então, essa é a voz da menina morta. E se alguém perceber nela um acento rascante, e acaso a confundir com uma voz muito velha que se eleva de uma sepultura congelada, garanto que é da infância que essa voz brota, nasce e se levanta. E toda voz da infância, sabe-se, é selvagem, animal, insubordina os sentidos.
E agora que já se sabe, sigamos pelo começo de tudo. Por aquilo que foi determinado como o começo de tudo. E embora alguém possa refutar e dizer que esta história começou com um rei que, com o bisaco cheio de moedas da ávida burguesia, resolveu lançar-se ao mar, aquele mesmo, o Tenebroso, eu desminto e digo que tudo começou mesmo em Iñe-e.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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