Apressado, Nelsinho desabotoava-lhe o
vestido.
– Antes peça perdão – defendeu-se
ela.
– Seja boba – acudiu o moço. – A
culpa foi sua.
– Se quiser, tem de pedir desculpa.
– Vai tirar ou não?
Ela sacudiu a cabeça, resoluta. Ao
empurrá-la, bêbados, cada um cambaleou de seu lado:
– Você é uma... sabe o quê! – e,
arrebatado de fúria, enfiou o sapato e vestiu o paletó.
– Se você sair, não precisa voltar –
a dona preveniu, um olho de ódio, outro de amor.
– É velha demais para mim.
Bem boa na cama e não tão velha assim.
– Fora daqui, seu moleque!
Risinho de pouco caso, bateu a porta.
Tateante avançou pelo corredor escuro; em vez de sair, foi dar na
cozinha. Orientou-se à claridade da vidraça e aplicou a boca na
torneira da pia. Bebeu a grandes goles, um fio de água molhava a
camisa. Enxugou o lábio na manga, de novo no corredor. Achou uma
porta e debaixo dela fina réstia.
Se não havia ninguém na casa, além
dele e Maria... Intrigado, experimentou o trinco: no quarto
cor-de-rosa penteadeira oval. Uma, duas, três bonecas de luxo. E, da
cama, sentadinha, sorria a gorda senhora.
– Entre, seu moço.
Dois passos no reino das bonecas: ar
adocicado de incenso, pó-de-arroz, esmalte de unha.
– É parenta da Maria?
– Não adivinha? – E sorria, faceira,
lábio muito pintado. – É minha filha.
– Tão jovem... – Bem a avozinha do
Chapeuzinho Vermelho. – Parece irmã!
No canto do espelho alinhavam-se os galãs
de cinema.
– Muito gentil. Você quem é?
– Amiguinho dela.
A gorda afastou o abajur, aninhada na
sombra misteriosa. Esqueceu no joelho a revista, em gesto pudico
fechou o quimono encarnado.
– Aceita um bombom? – e retirou do
lençol caixa dourada. – Como escondida... Lambeu o dedinho curto,
a tinir o bracelete:
– Segredo de nós dois!
– De mim ela não vai saber – e
beliscava o cacho loiro da boneca.
– Não quer sentar? vê-lo correr o
olho, encolheu-se no canto:
– Lugar para mais um.
Respeitoso na beira da cama, apanhou a
revista de fotonovela.
– Os dois brigaram?
– Sabe como ela é.
Aborrecido virava as páginas: dedo
peganhento de chocolate o olhinho gorducho.
– É recheado de licor! – e oferecia
na ponta da língua um bocado meio derretido.
Era a avozinha ou, no quimono fulgurante
de seda, o próprio lobo?
Largou a revista ao pé da cama. Na
mesinha o retrato em moldura prateada.
– Sou eu. A menina com a cesta de
amora. Já fui bonita.
– Ainda é – retrucou alegre –,
ainda é.
Muito sério ao dar na sombra com o olho
arregalado de sapo debaixo da pedra.
– Seu diabinho! – agarrou-lhe o
polegar na mão lambuzada e, antes de soltá-lo, um apertão e mais
outro.
Nada de avozinha, é mesmo o lobo. Ao
mexer a cabeça, girava a parede e, enxugando o suor da testa,
voltou-se para ela:
– Tem alguma bebida?
Exibiu os dentes alvares de pouco uso:
– Sou melhor que bebida.
Entre divertido e assustado, descansou o
cotovelo na cama: propunha-se o lobo devorá-lo? Vislumbrou a cara na
sombra: balofa, sem sobrancelha, o cabelo ralo. Por cima do quimono
apalpou-lhe o peito: apesar de velha, o seio durinho.
– Quer minha perdição? – Meu Deus,
a voz dengosa de menina. – Ai, diabinho peralta!
Brincalhona, correu a unha pela nuca. De
repente o gemido rouco:
– Feche a porta.
Encarou-a indeciso – fechada a porta
não poderia recuar. Mais que depressa ela prendeu-lhe a cabeça nas
mãos. Aplicou a língua em cheio na boca:
– Deite comigo senão fico louca.
Não era beijo amargo. Ele ergueu-se, deu
volta na chave. Desfez-se do sapato, atirou o paletó sobre a
revista. Sentado, deixou-se abraçar pela velha; foi beijar a
bochecha rechonchuda e arrepiou caminho – uma grossa verruga no
queixo, três cabelos crespos que nem molas de relógio.
Os dois a contemplar o teto, o bombom
licoroso na língua, ouviram o estalido do trinco.
– Mamãe? – a voz abafada de Maria. –
Está dormindo, mãe?
Dedo no lábio, a velhota deu sinal de
caluda.
– Responda, mãe. – A maçaneta girou
de mansinho, uma e duas vezes. – A luz acesa.
O silêncio do quarto ainda maior.
– A senhora está só?
Com a revelação, o grito de dor, os
murros na porta:
– Sei que está aí... aí com a
senhora...
Ficaram bem quietos, a filha parou de
soluçar, toda a casa em sossego.
Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba
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