domingo, 14 de novembro de 2021

Chapeuzinho Vermelho

Apressado, Nelsinho desabotoava-lhe o vestido.
Antes peça perdão – defendeu-se ela.
Seja boba – acudiu o moço. – A culpa foi sua.
Se quiser, tem de pedir desculpa.
Vai tirar ou não?
Ela sacudiu a cabeça, resoluta. Ao empurrá-la, bêbados, cada um cambaleou de seu lado:
Você é uma... sabe o quê! – e, arrebatado de fúria, enfiou o sapato e vestiu o paletó.
Se você sair, não precisa voltar – a dona preveniu, um olho de ódio, outro de amor.
É velha demais para mim.
Bem boa na cama e não tão velha assim.
Fora daqui, seu moleque!
Risinho de pouco caso, bateu a porta. Tateante avançou pelo corredor escuro; em vez de sair, foi dar na cozinha. Orientou-se à claridade da vidraça e aplicou a boca na torneira da pia. Bebeu a grandes goles, um fio de água molhava a camisa. Enxugou o lábio na manga, de novo no corredor. Achou uma porta e debaixo dela fina réstia.
Se não havia ninguém na casa, além dele e Maria... Intrigado, experimentou o trinco: no quarto cor-de-rosa penteadeira oval. Uma, duas, três bonecas de luxo. E, da cama, sentadinha, sorria a gorda senhora.
Entre, seu moço.
Dois passos no reino das bonecas: ar adocicado de incenso, pó-de-arroz, esmalte de unha.
É parenta da Maria?
Não adivinha? – E sorria, faceira, lábio muito pintado. – É minha filha.
Tão jovem... – Bem a avozinha do Chapeuzinho Vermelho. – Parece irmã!
No canto do espelho alinhavam-se os galãs de cinema.
Muito gentil. Você quem é?
Amiguinho dela.
A gorda afastou o abajur, aninhada na sombra misteriosa. Esqueceu no joelho a revista, em gesto pudico fechou o quimono encarnado.
Aceita um bombom? – e retirou do lençol caixa dourada. – Como escondida... Lambeu o dedinho curto, a tinir o bracelete:
Segredo de nós dois!
De mim ela não vai saber – e beliscava o cacho loiro da boneca.
Não quer sentar? vê-lo correr o olho, encolheu-se no canto:
Lugar para mais um.
Respeitoso na beira da cama, apanhou a revista de fotonovela.
Os dois brigaram?
Sabe como ela é.
Aborrecido virava as páginas: dedo peganhento de chocolate o olhinho gorducho.
É recheado de licor! – e oferecia na ponta da língua um bocado meio derretido.
Era a avozinha ou, no quimono fulgurante de seda, o próprio lobo?
Largou a revista ao pé da cama. Na mesinha o retrato em moldura prateada.
Sou eu. A menina com a cesta de amora. Já fui bonita.
Ainda é – retrucou alegre –, ainda é.
Muito sério ao dar na sombra com o olho arregalado de sapo debaixo da pedra.
Seu diabinho! – agarrou-lhe o polegar na mão lambuzada e, antes de soltá-lo, um apertão e mais outro.
Nada de avozinha, é mesmo o lobo. Ao mexer a cabeça, girava a parede e, enxugando o suor da testa, voltou-se para ela:
Tem alguma bebida?
Exibiu os dentes alvares de pouco uso:
Sou melhor que bebida.
Entre divertido e assustado, descansou o cotovelo na cama: propunha-se o lobo devorá-lo? Vislumbrou a cara na sombra: balofa, sem sobrancelha, o cabelo ralo. Por cima do quimono apalpou-lhe o peito: apesar de velha, o seio durinho.
Quer minha perdição? – Meu Deus, a voz dengosa de menina. – Ai, diabinho peralta!
Brincalhona, correu a unha pela nuca. De repente o gemido rouco:
Feche a porta.
Encarou-a indeciso – fechada a porta não poderia recuar. Mais que depressa ela prendeu-lhe a cabeça nas mãos. Aplicou a língua em cheio na boca:
Deite comigo senão fico louca.
Não era beijo amargo. Ele ergueu-se, deu volta na chave. Desfez-se do sapato, atirou o paletó sobre a revista. Sentado, deixou-se abraçar pela velha; foi beijar a bochecha rechonchuda e arrepiou caminho – uma grossa verruga no queixo, três cabelos crespos que nem molas de relógio.
Os dois a contemplar o teto, o bombom licoroso na língua, ouviram o estalido do trinco.
Mamãe? – a voz abafada de Maria. – Está dormindo, mãe?
Dedo no lábio, a velhota deu sinal de caluda.
Responda, mãe. – A maçaneta girou de mansinho, uma e duas vezes. – A luz acesa.
O silêncio do quarto ainda maior.
A senhora está só?
Com a revelação, o grito de dor, os murros na porta:
Sei que está aí... aí com a senhora...
Ficaram bem quietos, a filha parou de soluçar, toda a casa em sossego.

Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba

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