[…]
No dia seguinte, na escola, ela voltou a
mostrar o estêncil para Eaton e perguntou ao menino se ele não vira
alguém usando aquilo. Ele disse que não, mas Sharon sabia que podia
estar mentindo. Ela perguntou se o menino a vira na véspera. Muito
lentamente, ele balançou a cabeça em negativa, o preto úmido de
seus olhos sem piscar.
Naquele dia, ela tentou estimular uma
aula de leitura, mas a maioria das crianças estava inquieta,
recusando-se a acompanhar, então ela os colocou para montar animais
com cola e cartolina. De qualquer modo, estava quase na hora do
almoço.
Quando as crianças saíram para o
recreio, Sharon se viu pensando nas pichações que vira no dia
anterior, desejando revisitá-las, como se tivesse encontrado Adam
ali. Ele tinha nove anos quando David a deixara. Ela temia que o
ex-marido lutasse pela custódia do filho, mas ele não demonstrou
nenhum interesse. Adam se tornara uma criança calada. E um leitor
mal-humorado.
Ela erguia a cabeça e ele estava no
sofá, depois passou para o outro lado da sala e, então, havia
desaparecido.
Enquanto as crianças corriam pelo
gramado e se penduravam no trepa-trepa, ela se lembrou de como Adam
gostava de atletismo quando criança, de sua velocidade e graça ao
correr. O truque de não pensar nele no tempo presente já se tornara
um hábito. Ela não pensava em onde ele poderia estar naquele
momento, ou o que poderia estar fazendo, mas mantinha suas emoções
firmemente ligadas à vida deles antes da fuga, e ela iria tão longe
quanto necessário nessas emoções, a fim de se lembrar de um menino
que não tinha raiva de nada, que não via injustiça em cada
empreendimento humano.
Essa era sua qualidade mais agressiva, o
seu senso de justiça, e ele não admitia meios-termos. No início da
adolescência, quando tomavam o desjejum após a missa, ele começou
a lhe fazer perguntas. Logo ela viu o filho lendo a história do
catolicismo, então do cristianismo em geral, e começou a ficar com
medo de se sentar com ele à mesa de jantar, preocupada com o que
Adam poderia querer lhe dizer.
Certa vez, o menino insistiu que ela
ficasse calada enquanto recitava a história das Cruzadas. Ele não
parou até ela começar a chorar, e ele a repreendeu por isso. Então,
perguntou se ela sabia qual fora o posicionamento de sua igreja
durante a Segunda Guerra Mundial. Quando a nova guerra começou, ele
já estava irredutível em relação a assuntos ligados à igreja ou
ao Estado.
Na última noite, enquanto espalhava
pimenta vermelha sobre a carne assada, ele disse:
— Mas, mãe, você realmente acredita
que o céu ou o inferno são lugares de verdade, onde as pessoas
moram, e que serão bons ou ruins dependendo de quão bem você
seguir alguma das interpretações da Bíblia?
Ele cortava a carne com golpes breves e
firmes.
— Bem, eu acredito — respondeu ela. —
Claro que acredito.
— Por favor, olhe à sua volta —
continuou Adam, ainda mastigando. — Apenas por um segundo, pense na
realidade, na expansão da matéria, na forma do universo. Você
realmente acredita que o folclore criado por pessoas completamente
selvagens e sem instrução de algum modo explica tudo isso? — Ele
mordia cada palavra, e sua cara feia denunciava um desgosto
alarmante. — E você vai votar tendo isso como critério?
Ela manteve a cabeça voltada para o
assado. Por que ele não falava como os outros adolescentes? Por quê?
Será que ele não podia olhar para o teto sobre suas cabeças, para
a comida à mesa, e admitir a bondade essencial da vida? Deus sabe
que Sharon tinha razões suficientes para ser amargurada, mas ela
persistiu. Persistiu com a fé, e nada mais.
— Então, como você justifica votar em
um idiota belicista e perdulário em nome de seu Deus pacifista e não
materialista?
Ela baixou o garfo calmamente.
— Sabe, você já deixou muito claro
que não compartilha de minhas crenças. Eu acredito que devemos
apoiar nossos líderes e suas decisões. Você não. Mas, como sou
aquela que nos fornece alimento e abrigo, acho que você poderia
fazer a gentileza de não me atacar por discordarmos sobre política.
Ele saltou sobre o comentário da mãe
como um gato sobre um rato.
— Aí está! Não se trata apenas de
uma diferença de opinião! — Ele se inclinou sobre o prato, o
cabelo louro caindo ligeiramente diante de seu rosto. — Não é
apenas um desentendimento. Estou falando de questões fundamentais
sobre o bem e o mal.
— Ah! — exclamou ela. — Mas você
não disse que o céu e o inferno não existem? Então como haveria o
bem e o mal?
Ele fez uma pausa. Sharon pensou ter sido
porque ela o pegara.
— O que você quer dizer com isso?
— Se você diz que não há céu e
inferno, então o que é o bem e o mal? Por que ser bom, afinal de
contas?
Ele pareceu autenticamente horrorizado.
— Mãe, você está me dizendo que, se
não houver céu, não há motivo para ser bom?
Sharon deu de ombros. Ela não achava ter
dito aquilo, mas talvez sim. Parecia mais idiota quando ele repetia.
— Ser bom significa fazer as coisas sem
pensar em recompensa, mãe. Era você quem deveria ensinar isso para
mim.
Ele ficou em silêncio e, então, pareceu
satisfeito. Adam comeu a comida que ela preparara, talheres retinindo
contra o prato. Mais uma vez, a casa escura acomodou-se ao redor dos
dois. Mas, pela primeira vez, ela acalentou uma raiva silenciosa.
Como se o filho tivesse quebrado algo que lhe era caro por nenhum
outro motivo afora ver aquilo se quebrar. Ela não conseguia suportar
sua presunção, vê-lo se divertir à sua custa enquanto mastigava a
carne assada que ela preparara. Por que deveria tolerar tamanho
desrespeito?
— Eu me pergunto: se você é tão
esperto, por que não tem amigos? Hein?
Ele baixou a faca e olhou para ela.
— Se você sabe tudo, Senhor
Bem-Informado, então talvez possa me dizer por que nunca vai a uma
festa? Diga-me por que você não tem uma namorada? Já que é tão
mais esperto do que todo mundo, deveria saber.
Ele se levantou da mesa. Ela viu a sombra
do filho sobre seu prato, mas não ergueu os olhos.
Sharon estava quase tremendo de medo do
que ele poderia dizer.
— Você nem mesmo é capaz de ver quão
doente está. — A voz de Adam soou trêmula de desgosto.
Ele se afastou.
Como alguém podia dizer aquilo para a
própria mãe? Qual seria a cura para um menino que teve todas as
bênçãos, exceto, talvez, um bom pai, mas que ainda assim insistia
em ver a escuridão em tudo? Ela achava que, na verdade, o filho
estava implorando pela luz de Cristo, e que parte de sua inquietude
derivava de sua incapacidade de entender aquilo. Então ela rezou
naquela noite, pedindo que a luz de Cristo o encontrasse.
Ele foi embora dois dias depois, deixando
um breve bilhete explicando que não voltaria mais.
[…]
Nic Pizzolatto, in Daqui até o Mar Amarelo e outros contos
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